O Globo
Pena não termos traduzido para o português
a palavra réveillon. Ela virou sinônimo de roupa branca e foguetório. Perdeu-se
o sentido original contido no verbo réveiller:
acordar.
Seria bonito receber o novo ano com uma
manchete do tipo “Cariocas celebram o Despertar de 2022 com flores e
oferendas”, em vez de com um Reveiôn que a gente nunca sabe exatamente como se
escreve.
2022 acordaria de sonhos intranquilos (2021
foi um pesadelo), não transformado num artrópode asqueroso, mas revigorado,
bem-disposto e de alma lavada (a crer na meteorologia, hoje tem chuva — e
forte).
Sem a pequena morte / de toda noite / como sobreviver à vida / de cada dia?, escreveu o poeta José Paulo Paes. Para chegar medianamente sãos e relativamente salvos ao fim de mais um giro do planeta, é preciso enterrar o ano morto, elaborar o luto de tudo o que se perdeu e iniciar, hoje, a regeneração. Mais ou menos como quem adormece para que o corpo esqueça o cansaço e renasça na manhã seguinte. E começar de novo sem voltar ao marco zero, mas a outro ponto de partida, a que se terá incorporado o aprendizado de 365 dias — e mesmo número de pequenas mortes e renascimentos.
Este janeiro não será igual àquele que
passou, com disparada de casos de Covid-19. Em fevereiro talvez tenha carnaval
— se a vacinação avançar e a Ômicron assim o permitir. Março há de trazer
promessas de vida — e então as cores de abril, o vento de maio... e, quando
entrar setembro, que não apareça ninguém “autorizando” golpe. Outros outubros
virão, mas este terá eliminatórias no dia 2 e final na urna eletrônica no dia
30. Em novembro, no Dia da Consciência Negra, não há de haver novas cartilhas
com as mesmas velhas falácias — apenas o bom combate à desigualdade e ao
preconceito. E talvez tenhamos o dezembro de um ano dourado.
O príncipe Dom Pedro deve ter começado
assim o ano de 1822, sem imaginar que nove meses depois — antes que um
aventureiro o fizesse — se tornaria imperador de um país independente. Em 1922,
a vida cultural era sacudida por Mário e Oswald de Andrade, Anita Malfatti,
Victor Brecheret, Villa-Lobos, Di Cavalcanti e os sapos de Manuel Bandeira. Em
1972, enquanto Médici fazia as honras do sesquicentenário (o Brasil dos anos de
chumbo anunciado como “potência de amor e paz”), Milton Nascimento mostrava que
nada seria como antes, com o seu seminal “Clube da esquina”.
Que disco gravado em 2022 poderá ser ouvido
com o mesmo prazer e frescor — porque sonhos não envelhecem — daqui a meio
século? Que movimento desta nossa maltratada cultura ainda terá influência no
longínquo 2122? O que os viventes no cabalístico ano de 2222 lerão nos livros
de História sobre estes tempos bicudos?
Depende do que fizermos a partir de hoje,
neste ano que temos, novinho em folha, pela frente. Um ano com nada de novo —
que tanto pode significar que não haverá novidades quanto que nada se repetirá.
E com tudo de novo, que quer dizer a mesmíssima coisa. Porque, neste 1º de
janeiro de 2022, lá vamos nós, de novo, despertar para mais um tudo ou nada.
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