Folha de S. Paulo
Novo ano não tem o direito de ser uma
simples extensão do macabro 2021
Mandela acreditava
que tantas coisas "sempre parecem impossíveis, até serem feitas".
Neste Réveillon, desisti do fácil, até do possível. Busco o impossível.
1. Ao longo de 2022, a pandemia se
reduzirá a uma endemia como outras. Antes disso, que as sociedades finalmente
sigam a ciência, eliminando a espessa camada de superstições depositada sobre a
vida cotidiana.
Basta de controles aleatórios de temperatura, luvinhas plásticas em restaurantes self-service, máscaras ao ar livre fora de aglomerações. Abaixo o teatro do sanitarismo.
2. Que a Sociedade Brasileira de
Cardiologia exclua Marcelo
Queiroga, o estafeta que opera como sabotador da vacinação infantil. Que os
conselhos de medicina punam os médicos charlatães da cloroquina, ivermectina e
despachos similares.
Por quanto tempo os representantes
corporativos continuarão a manchar a imagem de uma categoria constituída,
majoritariamente, por profissionais sérios e dedicados?
3. Não pedirei a derrota eleitoral
acachapante de Bolsonaro, para não desejar o simplesmente provável. Quero que, depois
dela, procuradores e juízes contrariem a inclinação brasileira à conciliação
entre as elites, julgando a coleção de crimes de um presidente infame.
4. Pazuello violou o regulamento do
Exército ao usar o microfone num comício de Bolsonaro —e
não sofreu sanção. Que, só para variar, os comandantes das Forças Armadas
cumpram as regras militares.
5. Nostalgia é, geralmente, uma atitude
reacionária --mas há exceções. Recordo um passado recente no qual, em polêmicas
públicas, ninguém reivindicava a posição de porta-voz de etnias, raças ou
gêneros.
O pacto implícito era que cada um só
expressava seu próprio ponto de vista. Ou seja: indivíduos conversando, não
representantes autoproclamados de grupos identitários. Eis um desejo
impossível: retornar a um tempo no qual o argumento não era refém do
"lugar de fala".
6. Na era das redes sociais, isto é,
da desinformação
em massa, o jornalismo profissional tornou-se ainda mais necessário.
Contudo, justamente nessa era, a imprensa
adotou o atalho errado, imitando as próprias redes e conferindo o estatuto de
notícia a meras fofocas ou arranca-rabos entre celebridades. Que o jornalismo
redescubra sua função, apostando na inteligência dos leitores.
7. As plataformas globais da internet
transformaram-se, basicamente, em órgãos oficiosos de regimes autoritários e
movimentos extremistas.
O Facebook, em especial, foi a ferramenta
escolhida para a condução de crimes incontáveis, da
limpeza étnica dos rohingya, em Mianmar, à invasão do Capitólio, em
Washington.
Que os acionistas e diretores dessas
empresas sejam responsabilizados juridicamente pela difusão de correntes de
fake news destinadas a destruir instituições democráticas e promover o ódio
étnico ou religioso.
8. Eleições são, ou deveriam ser, um
diálogo nacional sobre o passado e os caminhos para o futuro. Mas, para isso,
seus protagonistas precisam tratar os eleitores como adultos.
Que a campanha de Bolsonaro renuncie a
qualificar seus oponentes de "comunistas" ou "pedófilos".
Que Moro desista de rotular Lula como corrupto, reconhecendo a anulação
judicial das sentenças produzidas por seu conluio ilegal com os procuradores-militantes.
Que o PT abdique de acusar Bolsonaro de
"fascismo", "neonazismo" ou "genocídio",
concentrando-se nos muitos crimes reais cometidos pelo presidente.
Arthur
C. Clarke, o genial escritor de ficção científica, concluiu que "os
limites do possível só podem ser definidos quando os ultrapassamos, avançando
rumo ao impossível".
Se ele tiver razão, desejar o impossível
não é perder-se em devaneios, mas ajustar o foco de modo a identificar os
contornos daquilo que, realisticamente, podemos mudar. 2022 não tem o direito
de ser uma simples extensão do macabro 2021.
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