Folha de S. Paulo
Presidente buscou impor seus objetivos
abusando de suas prerrogativas
Como distinguir uma ação autoritária
implementada pelo governo de uma ação meramente conservadora ou reacionária?
Essa difícil questão me foi colocada pela professora Maria Herminia Tavares de
Almeida, em reação à série de reportagens publicadas pela excelente jornalista
da Folha Renata
Galf, sobre um projeto de pesquisa voltado a compreender o modo como
os novos líderes populistas empregam o direito e suas instituições para
concretizar seus objetivos.
A questão é relevante porque um dos
pressupostos fundamentais dos regimes democráticos é que o eleitor possa, pelo
voto, determinar mudanças na orientação das políticas governamentais. Nesse
sentido, é tão legítimo a um presidente
conservador buscar implementar políticas conservadoras, como a
uma presidente progressista ou liberal cumprir suas promessas de campanha. A
democracia serve para isso mesmo; para poder mudar.
Ações autoritárias constituem uma coisa distinta. Numa primeira categoria encontram-se aquelas ações que ameaçam os próprios pressupostos do Estado democrático de direito, como a integridade do processo eleitoral ou a independência dos poderes que têm a responsabilidade de elaborar ou garantir as regras do jogo; ou seja, o Legislativo e o Judiciário. Nesta mesma categoria também estão ações que violem direitos fundamentais, prejudicando o livre e igualitário exercício da cidadania, ou a dignidade das pessoas.
Uma segunda categoria de ações
autoritárias, no entanto, está associada mais à forma pela qual são veiculadas
do que propriamente o mérito. Desde Rousseau, ficou claro que um regime
democrático não se resume à mera vontade da maioria. Para que a decisão dos
cidadãos possa se impor a toda comunidade é fundamental que ela seja veiculada
por lei. Pela sua natureza, assim como pelo seu processo de adoção parlamentar,
em que as minorias têm participação, a lei é um poderoso antidoto contra o
exercício arbitrário do poder. Nesse sentido, impor conduta sem fundamento na
lei é, por definição, autoritário.
Assim, mesmo objetivos políticos legítimos,
almejados pela maioria —não importa se reacionários ou progressistas—, apenas
poderão se transformar em ação governamental após se submeterem ao devido
processo legal, seja ele legislativo, administrativo, e, em muitos casos,
judiciário.
O que nossa pesquisa detectou é que, por
indisposição ou incapacidade de construir uma ampla coalizão de governo, o
presidente buscou impor seus objetivos abusando de suas prerrogativas.
Daí falarmos em
"infralegalismo autoritário"; pois baseado no emprego
sistêmico de prerrogativas administrativas, em contraposição ao que determinam
as leis e a Constituição.
O deputado federal Eduardo Cury, outro
perspicaz leitor dos resultados da pesquisa, salientou, no entanto, que a
incapacidade do governo de aprovar certas medidas autoritárias pode ter se dado
menos em função de eventuais virtudes de nosso parlamento pluripartidário e
bicameral, do que da própria incompetência dos operadores políticos do governo.
O Centrão,
preocupado em não descontentar o Supremo, preferiu se concentrar na
defesa apenas de seus próprios interesses.
O deputado nota com moderado otimismo, por
outro lado, que por não terem conseguido impor alterações legais ou
constitucionais nas estruturas de nossa democracia, será mais fácil ao próximo
governo, caso haja disposição e competência, reverter parte dos estragos
institucionais provocados pelo infralegalismo autoritário.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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