sexta-feira, 20 de maio de 2022

José de Souza Martins*: Religião e mudança política

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O que o aumento do número de pessoas sem religião diz sobre a política no Brasil. Em SP e Rio, 30% e 34%, respectivamente, dos jovens se declararam sem religião, enquanto os evangélicos são 27% e 32% e os católicos, 24% e 17%

Desde que nos censos brasileiros ganhou visibilidade a diminuição da proporção de católicos no conjunto da população e o aumento da proporção de evangélicos, a questão confessional vem ganhando crescente interesse. Sobretudo em consequência da também crescente promiscuidade de política e religião, o que sugere uma conspiração ideológica e extrarreligiosa para um enquadramento geopolítico do Brasil, promovido por meio de religiões que nele negam suas próprias tradições.

Desde a conferência do general Golbery do Couto e Silva na Escola Superior de Guerra, em 1980, quando ele justificou a chamada abertura política para promover o retorno da política ao seu leito natural, o Estado militar deu indicações nesse sentido. A de esvaziar a crescente importância de igrejas, como a católica e a luterana, na ação política por meio dos movimentos sociais de sua inspiração. Mas ele não se referiu ao crescente envolvimento dos evangélicos na política desde a implantação do regime militar.

A ideia da conspiração não é descabida. Com o novo regime, em 1964, várias foram as indicações de uma tendência à “protestantização” do Estado brasileiro na linha de um fundamentalismo de amansamento e de controle social, na repressão política e em atos de violação dos direitos humanos.

Foi a época de expansão da fronteira econômica, de criação de uma base territorial para o novo capitalismo, baseado na redução dos custos sociais de sua reprodução. Baseada na associação antimoderna entre capital e renda da terra. A chamada modernização conservadora. Socialmente, caracterizou-se ela pelo crescimento do número de evangélicos acima da média na Amazônia Legal, a partir de então. Um novo capitalismo associado a uma nova religiosidade.

Com o tempo, a promiscuidade de religião e política saltou dos templos para dentro das instituições. No recinto do Congresso Nacional, surgiu uma bancada da Bíblia, com funções político-partidárias. No atual governo, terrivelmente evangélico, ministérios foram aparelhados. Um ministro pastor foi nomeado para o STF por sua condição de evangélico, no espírito das cotas.

As reorientações religiosas são claras. Há uma crescente diversificação das confissões religiosas. Em outras sociedades, esse seria um indício de desenvolvimento social e de potencial libertação das consciências da tutela de igrejas retrógradas. A realidade, porém, vai na direção oposta.

Boa parte desses grupos religiosos passou a caracterizar-se por menor liberdade republicana de consciência. Um neopeleguismo político, entre nós, passa hoje pelo curral eleitoral de algumas igrejas. O que choca os evangélicos ainda identificados com a tradição da Reforma e com os valores da cidadania.

O que parece crescimento do número dos evangélicos e declínio do número de católicos tem insuficiências que o desmentem. Unificam o que é diferente. Nas análises não se leva em conta a diversidade da concepção de membro das diferentes igrejas.

Crianças e adolescentes entram no censo das religiões, mas no protestantismo, por exemplo, ser membro depende de maturidade, alfabetização e consciente confissão de fé. No catolicismo, depende do batismo do imaturo.

O censo não distingue entre filiação religiosa de convicção e identificação religiosa por frequentação. Este segundo grupo é de vinculação mais social do que propriamente religiosa a determinada igreja.

Uma pesquisa sobre mudança ou abandono de religião por aqueles que chegam à idade adulta daria indicações interessantes sobre essas ocorrências. Os dados censitários não nos dizem o que está acontecendo com as religiões. Mas pesquisa do Datafolha de 2022 indica que, no conjunto do país e da população, 14% dos entrevistados declararam-se sem religião, enquanto dos jovens de 16 a 24 anos, 25% assim se declaram.

Em SP e Rio, 30% e 34%, respectivamente, dos jovens se declararam sem religião, enquanto os evangélicos são 27% e 32% e os católicos são 24% e 17%. Se a porcentagem de crianças e adolescentes nas igrejas evangélicas e católicas fosse um sinal de vitalidade religiosa dessas confissões, o número dos sem religião nessa faixa etária não superaria os que confessam a elas pertencer.

O número dos sem religião, que vem crescendo nas mesmas regiões de maior tendência à diversificação religiosa, caso das regiões urbanas, é expressão de alguns dos mesmos fatores que multiplicam o número dos evangélicos. Ou seja, processos antagônicos decorrentes de mesmas causas, de ceticismo com as religiões de origem.

Não estamos no cume de um processo de transição religiosa, mas mais de busca social do que de busca religiosa, pois a maioria dos sem religião não se declara nem ateu nem agnóstico.

*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

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