O Estado de S. Paulo
Entre os desdobramentos jurídicos do
conflito, cabe discutir o potencial de responsabilidade penal de Putin pela
guerra da Ucrânia
A Carta da ONU deixa explícita em seu
Preâmbulo a sua “ideia a realizar”: preservar a humanidade dos flagelos da
guerra e dos seus indizíveis sofrimentos. Ela estabelece como grande propósito
da ordem mundial do pós-Segunda Guerra: manter a paz e a segurança
internacionais, reprimir atos de agressão, solucionar por meios pacíficos
controvérsias e situações. Neste contexto, realça o cumprimento do princípio de
igualdade e de autodeterminação dos povos.
A Carta não coonesta a guerra como a continuação da política internacional por outros meios e consagra como princípios básicos o respeito à integridade territorial e a independência política de qualquer Estado. Estes princípios representam um ingredientechave do potencial de convivência equilibrada entre nações, grandes e pequenas.
A guerra na Ucrânia foi desencadeada em
2022 pela unilateral agressão da Rússia à Ucrânia. É uma guerra de escolha.
Putin recorreu, e continua recorrendo, ao uso da força militar para alcançar
suas finalidades políticas: fulminar a independência política e a integridade
territorial da Ucrânia, para inseri-la num espaço vital de segurança da Rússia.
A ação de Putin desrespeitou manifestamente a Carta da ONU. Inseriu a
insegurança dos riscos e tensões provenientes de uma guerra de generalizada e
continuada repercussão na vida mundial.
Entre os desdobramentos jurídicos do
conflito, cabe discutir o potencial de responsabilidade penal de Putin pela
guerra na Ucrânia.
O potencial de responsabilidade penal de
Putin provém da lógica emanada da atuação do Tribunal de Nuremberg, que julgou
e condenou figuras de proa do nazismo, a partir da perspectiva de que crimes
contra o Direito Internacional são cometidos por indivíduos, e não por
entidades abstratas.
Foi o que levou à elaboração do Direito Internacional
Penal, lastreado no reconhecimento jurídico de valores fundamentais
compartilhados pela comunidade internacional, que se sobrepõem à plenitude
discricionária das soberanias estatais e de seus governantes.
O Direito Internacional Penal estipula que
qualquer pessoa que cometa atos que constituem crimes tipificados nas suas
normas é responsável e punível por sua conduta, independentemente do previsto
no direito interno. Afasta, assim, as tradicionais imunidades de jurisdição de
governantes e de suas justificativas no plano nacional.
O Estatuto de Roma , de 1998, que criou o
Tribunal Penal Internacional, consolidou a tipificação dos crimes
internacionais que constituem o núcleo duro do Direito Internacional Penal:
crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão.
O recém-publicado livro de Badinter, Cotte
e Pellet – três consagrados juristas franceses – é exemplar na precisão
jurídica com a qual postulam o indiciamento penal de Putin pelo crime de
agressão e seus desdobramentos em matéria de crimes de guerra e de suas
implicações no que tange a crimes contra a humanidade.
Subsume-se no tipo penal de crime de
agressão a conduta de quem, detendo o poder do exercício efetivo da ação
política e militar de um Estado, planeja, prepara, inicia e dá seguimento a
atos de agressão que consistem numa reconhecida violação da Carta da ONU. Os
três eminentes juristas comprovam que Putin, como chefe de Estado e comandante
militar da Federação Russa, preparou, entre 2014 e 2022, e deu início em 24/2/2022
à agressão militar à Ucrânia, e a conduz até hoje.
Assim procedendo, violou a Carta da ONU,
sem poder invocar o direito de legítima defesa e outras causas exoneratórias de
responsabilidade. Do crime de agressão resultam os sofrimentos do flagelo da
guerra. Daí as imputações provenientes dos crimes de guerra e contra a
humanidade.
As imputações têm a sua base em violações
do Direito Humanitário, aplicáveis a conflitos armados internacionais. Estas
estipulam que a Rússia, na condição de beligerante, não tem uma escolha
ilimitada dos meios de combate à Ucrânia.
Entre os crimes de guerra elencados,
destaco: os ataques dirigidos intencionalmente contra a população civil e
contra civis não participantes diretamente das hostilidades, que vêm causando
perdas de vidas humanas, ferimentos e danos a bens de caráter civil excessivos
e sem possíveis vantagens militares concretas; ataques a edificações dedicadas
às artes, ao ensino, hospitais e maternidades, assim como a cidades e
habitações que não eram objetivos militares; atos de tortura e de tratamentos
humilhantes e de pilhagem de localidades tomadas de assalto.
Entre os crimes contra a humanidade,
menciono mortes, deportações e transferências forçadas de populações, prisões e
privações à liberdade física, estupros e outras formas de violência sexual.
A possibilidade de Putin ser julgado por um
tribunal internacional é remota nas atuais condições do sistema internacional e
de suas jurisdições. No entanto, perante o tribunal da opinião pública do mundo
jurídico, a límpida peça acusatória que sintetizei enseja sua qualificação como
um criminoso.
*PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992; 2001-2002)
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