Folha de S. Paulo
O grotesco televisivo nada escondia, já
franca-tripas e prima-donas de agora servem de tapa-olho a tenebrosas
transações, civis e militares
"Quando for a hora certa, eu o Senhor
farei acontecer." O versículo (Isaías 60:22), recém-invocado como guia pela ex-primeira-dama e autodeclarada aspirante à
Presidência da República, deixa em suspenso o sentido de
"acontecimento". Mas, em performance recente, pede à acompanhante,
deputada federal, que retire sua prótese ocular. Aquiescente, a outra leva a
mão ao rosto e entrega um olho de vidro, que a aspirante se apresta a guardar,
como uma joia, no bolso do jeans. Então garante à plateia: "Esta é uma
mulher que faz acontecer".
Meio século atrás, no programa "A Hora da Buzina", de Chacrinha, "acontecia" quem inserisse primeiro no nariz um carretel de linha. O pano de fundo popularesco permitiu à emergente indústria da televisão granjear uma audiência de migrantes de primeira e segunda gerações nas periferias urbanas do Sul. Podia-se receber como prêmio um quilo de bacalhau ou um eletrodoméstico.
No palanque evangélico, a obtusidade ficou
à demanda de um sentido. Exceto a garantia: fazer acontecer. À primeira vista,
nada. Mas a mente aberta divisa uma lógica por trás desse tipo de ação, que tem
tanto a ver com o cardápio de linguagem da extrema direita quanto com a semiose do espetáculo
grotesco. "Acontecer" frente às câmeras de tevê era arranhar a
superfície dos bons modos por meio de encenações que incitavam à hilaridade e
excediam quase sempre as convenções do bom gosto.
Essa estética do rebaixamento, incipiente
estratégia comunicacional da televisão, conheceu o auge no programa do
Chacrinha e em correlatos de menor talento. Mas funciona hoje também como
lógica de contato da ultradireita com seguidores. Primeiro, com pretensa
simplicidade pessoal: humildade de exibir deficiências, ignorância subindo à
cabeça, clichês cristológicos. Segundo, em vez de alegria, ódio ativado por
algoritmos.
Nessa lógica, dispor de apenas um olho não
seria contingência, mas a essência de alguém. Escondendo a prótese, sem
devolvê-la, a dama estaria comunicando algo essencial de uma identidade
supostamente desinformada aos olhos da audiência. Teria feito
"acontecer" uma verdade. Acompanhada de outra acólita, poderia pedir
que narrasse a subida de Cristo na goiabeira. Ou, pulando, falaria em línguas
com ministro terrivelmente evangélico.
Tudo adequado à fórmula originária. A
diferença é que o grotesco televisivo nada escondia, era mera bufonaria à vista.
Já os franca-tripas e as prima-donas de agora servem de tapa-olho a tenebrosas
transações, civis e militares. Reluzem ouro e diamantes. Chacrinha buzinaria:
"Roda!" Mas já existe convocação policial em curso. Por isso, na
sabença ácida das massas, circula o leonino "acontece sempre de manhã cedo
(Federais, 171:0)".
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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