Eu & Valor Econômico
João Pedro Stédile falou com serenidade e
didatismo. Pacientemente desmontou todo o elenco de falsos conceitos, expôs as
funções socialmente inovadoras do movimento
A CPI do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), na Câmara dos Deputados, vem fazendo revelações do maior
interesse político. Sobretudo em consequência dos equívocos que a motivam e da
desinformação de quem a propôs e defende.
Na medida em que fica evidente que o propósito é criminalizar o MST e questionar a legalidade da reforma agrária, fica claro, também, que inevitavelmente foi posta em julgamento a legitimidade da própria definição que do agronegócio fazem alguns de seus membros. O que revela a imprudência e mesmo a incompetência das facções que resolveram usar a CPI para impugnar a demanda histórica de terra de trabalho dos trabalhadores do campo.
As sociedades são relacionais, baseiam-se
na reciprocidade de sentido própria da interação social, mesmo no caso de
grupos polarizados por interesses antagônicos, como neste caso. O latifúndio e
a economia rentista, que dele se nutre, que não é todo o agronegócio, mandou
para a guerra parlamentar um exército de incompetentes. Desconhecem o assunto e
não sabem que sua fragilidade ideológica revelaria sua verdadeira identidade, a
de inimigos do capitalismo e do agronegócio.
Apresentaram-se munidos de um armamento
ideológico impróprio para o que se revelaria a defesa das iniquidades sociais
do latifundismo brasileiro. Desconhecem tudo, desde os valores sociais que
legitimam o direito de propriedade da terra numa sociedade como esta e até os
diferentes modos sociais de lidar com ela e mesmo que a Constituição de 1988
reconhece a legitimidade e a legalidade da diversidade de direitos de
propriedade no Brasil. Desde o que nos vem do regime sesmarial até as formas
socialmente residuais do nosso passado. Que se materializam na agricultura
familiar e no caráter comunitário da sociabilidade dos que a ela se dedicam.
O Brasil aliás, tem várias tradições de
sucessão no direito de propriedade que não correspondem ao que está previsto
nos códigos e leis. Atendem, antes, aos valores da organização da família e do
parentesco, mais amplos e complexos dos que os reconhecidos pelos que querem
julgar a legitimidade de procedência dos movimentos sociais dedicados a
defender essas tradições.
Se em vez de seguir ideias
antropologicamente equivocadas quanto ao pensamento de Antonio Gramsci, e
conhecessem o pensamento gramsciano e a antropologia nele inspirada, como a de
Ernesto De Martino e a de Luigi Lombardi Satriani, ficariam menos expostos à
crítica simples e densa de testemunhas como João Pedro Stédile, figura
simbólica da história do MST.
Curiosamente, essa complexidade foi levada
em conta na busca de uma solução para a questão agrária, nas providências e
cuidados que revestissem o direito de propriedade do reconhecimento das
limitações históricas que tem.
O último ministro Extraordinário de
Assuntos Fundiários, do Brasil, no regime militar, o general Danilo Venturini,
providenciou a organização de uma coletânea dos 500 anos de legislação
fundiária brasileira, em vários volumes.
Nela é o trabalho e a posse útil a base da
propriedade fundiária. Essa regra passaria a nortear as decisões da Justiça,
nas pendências, em decisões já de juízes de primeiro grau. Vazada a informação
da solução que o regime legaria ao novo regime da abertura política, foi ela
obstada na Câmara dos Deputados.
João Pedro Stédile falou com serenidade e
didatismo. Pacientemente desmontou todo o elenco de falsos conceitos relativos
ao MST, expôs as funções socialmente inovadoras do movimento. Não aceitou
provocação. Mostrou a todos que um movimento social como o MST é legítima e
criativa manifestação de soluções para as necessidades sociais criadas nas
vítimas da problemática, descabida e não raro ilegal concentração fundiária.
Antipatriótica, aliás, porque cria enclaves territoriais que representam ameaça
ao cumprimento das leis do país, e de sua fiscalização, e à própria segurança
nacional.
O esbulho de terra e territórios oriundos
dos direitos das populações originárias e dos decorrentes do reconhecimento
constitucional da função social da propriedade é o que os movimentos sociais
combatem. Nesse embate, o confronto é entre terra social de trabalho e terra de
especulação.
Os autores e defensores do caráter
criminalizante da CPI do MST têm uma concepção muito superficial da questão
agrária, embaralham conceitos, interpretam ocupação de terra vocacionada,
devoluta ou impropriamente utilizada, para a reforma agrária, com invasão.
Terra de reforma agrária não é confisco, pois devidamente indenizada. Grandes
proprietários de terra chegam a recorrer ao governo para pedir, eles próprios,
a desapropriação de suas terras, um negócio lucrativo como outro qualquer.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).
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