sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Ampliação do Brics reflete relevância menor do Brasil

O Globo

Dos quatro fundadores originais do bloco, país é o único cuja influência diminuiu desde a criação em 2009

A cúpula do Brics na África do Sul acabou com o anúncio da ampliação do bloco. Argentina, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Irã e Etiópia foram convidados a ingressar a partir do ano que vem. A expansão é uma vitória da China. Para o Brasil, não se pode falar propriamente em derrota — ainda é vantajoso estar num bloco com as maiores potências emergentes —, mas o resultado certamente reflete a perda de relevância brasileira na cena global. Dos quatro fundadores originais do Brics — Brasil, Rússia, Índia e China —, o Brasil é o único cuja influência diminuiu desde a criação do bloco, em 2009.

Os indianos se tornaram o país mais populoso, mercado mais promissor e acabam de dar prova de capacidade tecnológica ao enviar uma missão à Lua. Os russos encolheram econômica e politicamente, mas a aventura militar na Ucrânia demonstra como podem dar dor de cabeça ao Ocidente. Os chineses se tornaram a potência desafiante que busca moldar o sistema global — portanto o Brics — à sua maneira.

No discurso, a China insiste que os Estados Unidos são uma potência em declínio. Para os chineses, seu crescimento econômico das últimas décadas demonstra que modernização não é sinônimo de ocidentalização. A ordem internacional baseada nas regras atuais, argumentam, beneficia americanos e europeus. Foi nesse contexto que a China pressionou para ampliar o Brics. Foi sintomático que o Irã, país sob sanções da ONU dependente da China, tenha sido convidado a entrar.

Tanto para Brasil como Índia, o Brics ampliado traz desvantagens evidentes. A perda mais óbvia é a diluição de poder no grupo. O perigo é ser visto como — ou se tornar — coadjuvante da China. Talvez por isso não faltaram declarações de que o Brics não é resposta ao G7, grupo que reúne as principais potências ocidentais e o Japão. Embora os americanos não estejam dando muita importância à ampliação, ela corresponde aos anseios chineses.

Claro que o Brics continua a ser plataforma útil para Brasil e Índia. Por falta de visão política, a economia brasileira está na retaguarda global há pelo menos duas décadas. Para impulsionar o crescimento, precisa atrair capital externo. Contatos com países como China e, em pouco tempo, Arábia Saudita ou Emirados Árabes Unidos podem ajudar. Estar no bloco também é sinal de distinção entre as economias emergentes e dá visibilidade.

Mesmo para a Índia, cuja economia está em franca expansão, o Brics é uma vitrine. O PIB indiano aumentou 71% na última década, tem crescido em ritmo mais frenético que o chinês e deverá seguir assim. Apesar disso, os indianos sabem que potências médias não podem desperdiçar chances de fazer avançar seus interesses. O Brics é uma.

Quanto ao Brasil, a expansão do Brics deveria ensinar que a realidade é como ela é, não como gostaríamos que fosse. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva até tentou apresentar como vitória a entrada da caótica Argentina no bloco e uma menção no comunicado final do encontro à necessidade de reforma na ONU. O Itamaraty continua obcecado em obter um lugar no Conselho de Segurança. Para isso, porém, será preciso saber fazer valer nossos trunfos — em particular na área ambiental —, em vez de insistir nas fantasias que, à esquerda ou à direita, impediram nas últimas duas décadas que o Brasil tivesse uma política externa capaz de projetar mais influência.

Debate de pré-candidatos republicanos reflete o peso de Trump no partido

O Globo

Entre oito postulantes à candidatura presidencial, nenhum parece ter chance contra ex-presidente

Como previsto, Donald Trump não participou do primeiro debate entre pré-candidatos a presidente pelo Partido Republicano. A justificativa, dada pelo próprio Trump, é já ter demonstrado ser “o melhor presidente dos Estados Unidos”. Coube aos oito desafiantes duelar sobre temas diversos, na tentativa de se projetar. Parecia uma disputa para saber quão trumpista era cada republicano.

No embate na noite de quarta-feira em Milwaukee, Wisconsin, os mais notáveis eram Nikki Haley, ex-governadora da Carolina do Sul e embaixadora americana nas Nações Unidas em 2017 e 2018, e o ex-vice-presidente Mike Pence, rompido com Trump por ter seguido a Constituição e sacramentado a vitória eleitoral de Joe Biden em 6 de janeiro de 2021, enquanto hordas de trumpistas invadiam o Capitólio. Mas quem se destacou pelo histrionismo, pelo raciocínio rápido e pela língua ferina foi o investidor Vivek Ramaswamy.

Nascido em Ohio há 38 anos numa família de origem indiana, Vivek cursou ginásio em escola católica. Graduou-se em biologia na Universidade Harvard, depois fez pós-graduação em Direito em Yale. Entre uma faculdade e outra acumulou milhões investindo em fundos de hedge e, em 2014, fundou sua empresa de biotecnologia, Roivant Sciences. Empreendedor, aparecia com fortuna de US$ 630 milhões na última lista da revista Forbes.

Vivek se desdobra e usa a sua capacidade de oratória para percorrer a mesma trilha aberta por Trump. Manifesta posições libertárias e ao mesmo tempo conservadoras. Critica o politicamente correto (woke) e decisões de grandes empresas que levam em conta a justiça social e preocupações com o aquecimento global. Seu best-seller “Woke Inc.” denuncia a influência do politicamente correto na necessidade de trabalhar duro, ter fé e ser patriota.

O estilo e os pensamentos de Vivek começam a aparecer nas pesquisas. Na média mantida pelo site FiveThirtyEight, Trump ainda é líder, com preferência estável em torno de 52% do eleitorado. Mas Vivek apresenta nítida tendência de alta. Tinha menos de 4% no início de junho, ante 23% do governador da Flórida, Ron DeSantis. Antes do debate, já aparecia com quase 10%, enquanto DeSantis caíra para 15%. Nitidamente, DeSantis perde fôlego no papel de desafiante de Trump.

A fidelidade de Vivek ao trumpismo ficou patente na pressa com que ergueu o braço quando os entrevistadores perguntaram quem defenderá Trump caso ele seja condenado (o ex-presidente enfrenta quatro denúncias e apresentou-se ontem à Justiça na Georgia). Pence também levantou a mão, mas discretamente, e o ex-governador de Nova Jersey Chris Christie, um ex-trumpista, ficou imóvel. Como não se sabe o que acontecerá se Trump for eleito e condenado, é natural que os desafiantes tentem aparecer. Vivek quer se mostrar preparado para substituí-lo em qualquer eventualidade, mas parece apostar mesmo em ocupar espaço num futuro governo Trump.

China começa a por Brics a serviço de seus interesses

Valor Econômico

Com menos poder de influência, resta ao governo Lula definir se será um ativista em um bloco agora com feições mais anti-americanas e menos democráticas

O Brics - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - ganhou importância internacional quando a performance econômica de seus membros parecia estelar e projetava a possibilidade de consolidação de novas potências que reconfigurariam a geopolítica global. Esses tempos ficaram para trás - só China e Índia aumentaram, e muito, seu peso econômico e político. O Brics voltou a ganhar destaque de novo quando China e EUA iniciaram o rompimento de laços econômicos e incentivaram uma disputa em várias frentes que ilustra o fim da hegemonia americana. A reunião do grupo em Johanesburgo mostrou que a China é um polo de atração em um mundo multipolar e quer liderar os países descontentes com a globalização. O Brasil será um coadjuvante, se quiser.

O Brics foi um palco em que algumas das maiores nações emergentes exibiam seus pontos de vista comuns (não muitos) e a promessa de uma atuação conjunta na arena internacional - que, na prática, ocorreu poucas vezes. Com a polarização entre China e EUA, a independência do Brics está se tornando uma quimera. O passo mais importante tomado até agora para o alinhamento do bloco em torno de Pequim se deu com a escolha de seis países para ampliá-lo, anunciada ontem, ao fim do encontro.

A ampliação interessava muito à China e à Rússia, ansiosas por ampliar o número de aliados na disputa com os EUA, mas nem tanto ao Brasil ou à Índia (que têm fortes desavenças com Pequim). Mas não houve oposição firme ao desejo chinês e ingressarão no grupo Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, Irã, Egito, Etiópia e Argentina. O aumento do número de membros foi proporcional ao decréscimo do número dos que defendem o sistema democrático. Arábia e EAU são ditaduras dinásticas e o Egito, uma ditadura militar. A Etiópia é cliente de pesados investimentos chineses e a Argentina, à beira da falência, pode eleger um radical direitista em outubro.

A escolha recheou o Brics de aliados da China. Pequim já tinha feito cessar as hostilidades políticas entre os sauditas e o Irã, em seu primeiro lance diplomático de peso no Oriente Médio, e acolheu os iranianos no bloco, não por ser um grande produtor de petróleo, mas um rival dos Estados Unidos, que promovem um bloqueio internacional ao país. A Arábia e os EAU colocaram o dinheiro antes da ideologia, como sócios do banco dos Brics, e sua escolha pareceu menos polêmica. A inclusão da Argentina foi uma deferência ao Brasil.

Não houve qualquer explicação para a indicação desses países como membros e não de outros entre os 22 que pleiteiam a mesma condição. Para o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, não há qualquer mistério ou inversão da lógica nisso. “Primeiro você escolhe os países, e aí depois você define os critérios”, disse em Joanesburgo. O Brasil e os países fundadores dos Brics (exceto China) perdem peso político com a diluição do bloco, aliás pouco usual - a quantidade de novos ingressantes é maior do que a de membros originais.

A demonstração de força e liderança da China, no entanto, tem seus limites nos interesses contraditórios dos países que compõem o Brics. Em termos de atuação conjunta, os resultados até hoje foram irrelevantes. China e Índia se encontram em lados opostos em vários temas e têm conflitos fronteiriços. Nas negociações agrícolas na OMC, o Brasil com frequência diverge da Índia. China e Rússia não querem perder poder no Conselho de Segurança da ONU, não se movem para favorecer a demanda brasileira por uma cadeira no conselho permanente e fazem apenas acenos retóricos sobre a possibilidade. O comunicado final da cúpula faz menção a isso. “A presença de quatro países do Brics no Conselho de Segurança da ONU proporciona uma oportunidade para reforçar ainda mais o peso de nosso diálogo sobre questões de paz e segurança internacionais”. Elogia o trabalho dos dois países como membros rotativos, mas não trata da participação permanente em um Conselho de Segurança ampliado, velho pleito de governos petistas.

O comunicado final da reunião mostra a dupla face de China e Rússia, que não poderiam assinar os princípios assinalados porque não os praticam. No documento, se comprometem a “garantir a promoção e a proteção da democracia, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos”. Outro compromisso, sancionado pela Rússia, que anexou pedaço da Ucrânia e invadiu o país, é o de “respeitar a soberania e integridade territorial de todos os Estados” e “a resolução pacífica de diferenças e disputas entre países por meio do diálogo e da consulta”.

Com menos poder de influência, resta ao governo Lula definir se será um ativista em um bloco agora com feições mais anti-americanas e menos democráticas ou apenas um companheiro de viagem que buscará apoios pontuais para causas que sejam reciprocamente vantajosas. Alinhar-se automaticamente à China ou aos EUA poderá trazer prejuízos ao Brasil, que quase sempre preservou sua independência externa.

Brics+

Folha de S. Paulo

Ampliação heterodoxa do bloco fortalece China; Brasil assume posição secundária

É conhecida a frase de Deng Xiaoping, o líder que abriu a porta para a China transformar-se na segunda maior economia do mundo, conforme a qual a cor do gato era irrelevante se ele fosse eficaz na função de caça ao rato.

Tratava-se da adoção de relações capitalistas por uma ditadura comunista —um híbrido que favoreceu a ascensão do PIB chinês a partir dos anos 2000.

Foi naquele contexto que surgiu o Bric, acrônimo para países cujos pontos em comum eram as vastas dimensões territoriais, o potencial econômico e a inclinação a desafiar a hegemonia americana. A Brasil, Rússia, Índia e China somou-se depois a África do Sul e o S do primeiro nome do país em inglês.

Pouco de concreto, contudo, foi levado adiante em 14 reuniões de cúpula até 2019. Um dos poucos instrumentos reais criados, o banco hoje liderado por Dilma Rousseff, tem sua liquidez questionada.

Mas o mundo mudou com o acirramento da disputa entre EUA e China, a crise provocada pela Covid-19 e a invasão russa da Ucrânia.

Ganhou força a ideia de reinvenção do Brics, que agora culmina no anúncio da expansão do clube a partir do convite a seis países em seu 15º encontro.

Aqui valeu a teoria de Deng, ao menos na escolha das monarquias absolutistas da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, riquíssimas. Felinos mais questionáveis são a Argentina em crise, a alquebrada Etiópia, a ditadura militar do Egito e a teocracia do Irã.

Se não importava a coloração política, faltou definir o sentido de negócios nessas últimas escolhas. Fica bastante difícil dissociá-las da mensagem que se pretende passar ao Ocidente liderado pelos EUA.

Afinal, a desdolarização está na ordem do dia, e a Rússia está em guerra contra um país armado pelo Ocidente. Os presentes à cúpula negaram antiamericanismo e, ao fim, não romperão laços comerciais com Washington. De todo modo, Pequim sai em posição de força.

Para o Brasil, em papel secundário consideradas as ambições de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pode haver oportunidades, mas isso depende do rumo que essa versão ampliada dos Brics tomará. Seu único tento marcado, a inclusão da Argentina no pacote, está à mercê da sucessão presidencial no vizinho turbulento.

Fica para análise futura o caso da emergente Índia, verdadeira equilibrista ao ser aliada dos EUA, amiga da Rússia e rival da China ao mesmo tempo em que divide cadeira no Brics com Xi Jinping.

Entusiastas somam PIBs para vislumbrar um bloco eficaz, mas tendem a ignorar que gatos não raro disputam o mesmo rato.

Rusga ambiental

Folha de S. Paulo

Embate sobre exploração de petróleo expõe agendas conflitantes sob Lula

Menos de oito meses de governo e já se reedita conflito ao estilo dos que levaram Marina Silva (Rede) a deixar o Ministério do Meio Ambiente no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Está em tela agora a recusa do Ibama a licenciar perfuração exploratória de petróleo na margem equatorial, ao largo do Amapá.

A agência ambiental negou a licença em maio. O Ministério de Minas e Energia solicitou então parecer à Advocacia Geral da União sobre a legalidade da decisão, no "intuito de evitar risco à segurança energética e à autossuficiência em petróleo adquirida com extremo esforço pelo Brasil". A AGU, por fim, acatou o pedido.

A argumentação é toda jurídica, mas por trás dela parece haver divergências de princípio.

No parecer do Ibama, dez analistas ambientais corroborados pelo presidente do órgão apontam insuficiências nas informações da Petrobras. Entre elas, tempo excessivo de deslocamento até eventual derramamento de óleo, para resgate da fauna, e comunicação deficiente com comunidades indígenas.

Segundo o documento, há alta vulnerabilidade no litoral amapaense, com manguezais de difícil acesso, e espécies ameaçadas no setor oceânico. Em face disso, aponta a carência de Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS).

Esse tipo de análise, que determina a aptidão de áreas marinhas para atividade petroleira, está prevista em portaria interministerial de 2012, mas não tem sido posta em prática. Para não atrasar processos iniciados, a portaria abriu brecha para que as pastas de Minas e Energia e Ambiente permitam a outorga de blocos, como ocorreu com a área em questão.

Para a AGU, a AAAS não é precondição para licenciamento, mas ferramenta de planejamento estratégico. Cita em seu apoio decisão de 2021 do Supremo Tribunal Federal fixando que só o licenciamento, não AAAS, estipula a viabilidade ambiental de empreendimentos.

Mesmo que a avaliação não seja legalmente exigível, persistem as deficiências apontadas pelo Ibama. Mais que a pendenga jurídica, são elas que precisam ser dirimidas, de modo eficiente e transparente —como apontou Marina Silva em audiência no Senado.

Cabe a Lula, ainda, desfazer a contradição —para quem se pretende referência no enfrentamento das mudanças climáticas— entre diminuir emissões de carbono com uma mão, contendo o desmatamento, e aumentá-las com outra, fomentando combustíveis fósseis.

Contra Bolsonaro, nada além da lei

O Estado de S. Paulo

Diante do modo como a Justiça tem aplicado a prisão preventiva, no espírito do lavajatismo, não seria surpresa uma eventual detenção. Mas a lei não autoriza antecipação de pena

Desde a semana passada, quando vieram à tona mais indícios de eventual participação de Jair Bolsonaro em crimes – alguns deles, com penas altas –, intensificou-se, em diversos setores da sociedade, uma espécie de “torcida” pela prisão do ex-presidente. Diante dessa expectativa, cabe relembrar alguns pontos sobre a prisão no Estado Democrático de Direito.

Para muitos, a prisão de Jair Bolsonaro seria uma simples questão de justiça: se o ex-presidente cometeu crimes, ele tem de sofrer as devidas consequências legais. O raciocínio é claro: não cabe impunidade a quem usa um cargo público – no caso, o mais alto posto do Executivo federal – para delinquir.

Certamente, um ato criminoso deve ser punido. Mas a apuração desse ato exige um processo judicial, dentro de um amplo espaço de contraditório e com efetivo direito de defesa. A punição deve vir no final da ação penal, e não no seu início. Até agora, nem mesmo uma denúncia formal foi apresentada contra Jair Bolsonaro no caso das vendas das joias ou no dos ataques contra a democracia.

Neste momento, portanto, uma eventual prisão de Jair Bolsonaro seria necessariamente uma medida preventiva, que não é antecipação de pena nem pode ser usada como tal. Diz a lei: “Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia” (art. 313, § 2.º, Código de Processo Penal, CPP). Ou seja, nas atuais circunstâncias, não é válido o raciocínio de que, por ter cometido crimes, o ex-presidente deveria ser preso agora. A prisão como pena exige decisão transitada em julgado e não há sequer processo criminal contra o ex-presidente.

A respeito da prisão preventiva, a legislação brasileira tem requisitos bem definidos. A medida cautelar poderá ser decretada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” (art. 312, CPP).

A redação atual desses dois dispositivos do CPP foi fruto da Lei 13.964/2019, o chamado Pacote Anticrime. Essas mudanças integram o esforço do Congresso em melhorar a efetividade do princípio da presunção de inocência, bem como das liberdades fundamentais de todos os cidadãos. Por isso, a Lei 13.964/2019 estabeleceu que “a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada” (art. 315, CPP).

Infelizmente, muitos juízes e tribunais ainda trabalham com uma compreensão excessivamente ampla a respeito de seus poderes para decretar a prisão preventiva, compreensão esta que, contrariando a legislação vigente, viola a liberdade de muitos cidadãos. Não há dúvida, por exemplo, que, fosse aplicado o entendimento da Lava Jato sobre a prisão preventiva, Jair Bolsonaro já estaria preso preventivamente.

O caminho, no entanto, não é errar de novo, numa espécie de vingança. Tal atitude apenas geraria novos problemas, e o papel do Judiciário é aplicar a lei de modo a solucionar – e não aumentar – os conflitos sociais. Em vez de aplicar antigas e ilegais concepções sobre a prisão preventiva, as atuais circunstâncias envolvendo Jair Bolsonaro devem conduzir a um amadurecimento de toda a Justiça sobre o tema, em conformidade com o que dispõe a lei.

Nesse sentido, um ponto de melhoria do Judiciário perfeitamente acessível é a aplicação prioritária das medidas cautelares diversas da prisão. “A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar” (art. 282, § 6.º, CPP). Hoje, muitas prisões preventivas são ilegais, tendo em vista que poderiam ser substituídas por outra medida cautelar, como a proibição de ausentar-se da comarca ou a monitoração eletrônica.

A melhor defesa da democracia e da sociedade é a aplicação da lei. Sem exceções para favorecer ou para perseguir.

Teto não resolve reforma tributária

O Estado de S. Paulo

Não basta impor alíquota máxima para o IVA e esperar que funcione como num passe de mágica. Se quiser limitar a carga tributária, Senado terá de reduzir a lista de setores privilegiados

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSDMG), disse ser favorável à inclusão de um teto de 25% para a alíquota do novo imposto sobre bens e serviços. Embora não haja uma decisão final sobre incluir essa proposta no texto da reforma tributária, ela parece estar em um estágio relativamente avançado, a ponto de o relator, Eduardo Braga (MDB-AM), já se referir a ela por meio de um neologismo. Segundo Pacheco, Braga tem dito que pretende “tetar” a reforma.

O padrinho dessa sugestão é o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué Gomes da Silva. “A indústria não quer exceção. Só quer que a alíquota máxima se situe no patamar de 25%”, afirmou Josué, em um debate promovido pela própria Fiesp e pelo Esfera, grupo que reúne empresários, empreendedores e o setor produtivo.

O porcentual mencionado pelo industrial não foi escolhido por acaso. Um estudo do Ministério da Fazenda, ao qual o Senado já teve acesso, mostrou que a reforma, da forma como foi aprovada na Câmara, exigirá que o novo imposto tenha uma alíquota de 25,45% a 27%. Neste patamar, o Brasil, ao lado da Hungria, estaria entre os países com a maior tributação sobre consumo do mundo, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

É evidente que ninguém gostaria que o País liderasse esse ranking, mas não é a imposição de um teto máximo para o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) que resolverá a questão. A alíquota calculada pelo estudo do Ministério da Fazenda é simplesmente o reflexo de todas as exceções aprovadas durante a tramitação da reforma tributária na Câmara. Como a neutralidade é premissa da reforma, ou seja, a arrecadação total de tributos sobre consumo será mantida, cada segmento que conquista tratamento especial onera todos os demais.

Para garantir o apoio dos parlamentares ao texto, o governo já havia se comprometido a manter a vigência do Simples Nacional e da Zona Franca de Manaus. Os deputados, no entanto, incluíram agronegócio, educação e saúde privadas, transporte público e até bares entre os beneficiados. Além disso, ampliaram o desconto a que os setores contemplados teriam direito de 50% para 60% da alíquota cheia e mantiveram a isenção para itens da cesta básica – benefício que, na proposta original, só valeria para famílias de baixa renda.

A consequência dessas escolhas não poderia ser outra: a alíquota cheia do IVA teve de aumentar para bancá-las. Logo, se o objetivo é reduzir a carga tributária, não basta impor uma alíquota máxima para o IVA e esperar que funcione como num passe de mágica. Neste caso, a ordem dos fatores altera o produto e compromete o resultado final.

Há outra forma de colocar o teto de 25% em prática, mas ela requer muito mais trabalho e coragem dos senadores no enfrentamento dos lobbies e de seus privilégios. Até o momento, no entanto, não parece ser essa a intenção do Senado. Atuando em prol de sua própria categoria profissional, Pacheco sinalizou ser favorável a garantir um tratamento especial para profissionais liberais, especialmente advogados que atuam como empresas e faturam valores superiores aos amplos e generosos limites do Simples Nacional.

A proposta do teto padece ainda de problemas conceituais, como destacou o secretário extraordinário da Reforma Tributária no Ministério da Fazenda, Bernard Appy, também presente no debate promovido pela Fiesp e o Esfera. Uma vez que o IVA será dual, com uma parcela administrada pela União e outra por Estados e municípios, sobre qual delas o teto seria aplicado? Se for sobre a primeira, ela ampliará o déficit primário do governo; se for sobre a segunda, desrespeitará a autonomia dos entes federativos.

Os senadores fariam um bem à sociedade se desconsiderassem a proposta do teto para o imposto e discutissem seriamente os custos e os benefícios de conceder tratamento privilegiado a diversos setores de forma indiscriminada. Práticas como essa formaram os pilares de um sistema que ganhou o apelido de manicômio tributário. Chegou o momento de abandoná-las de vez.

A falsa austeridade do Legislativo

O Estado de S. Paulo

Câmara aprova reajuste do salário mínimo, mas se recusa a taxar paraísos fiscais e fundos de super-ricos

O Congresso aprovou a medida provisória (MP) que reajusta o salário mínimo e cria uma política de valorização permanente do piso. A proposta já estava em vigor desde 1.º de maio, mas foi aprovada dias antes de perder validade. A ela, o governo agregou a atualização da tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF), assunto que estava em outra medida provisória cujo prazo de vigência também estava prestes a se encerrar. No Legislativo, não havia qualquer resistência a quaisquer dos temas. Segurar a tramitação das MPs foi apenas uma estratégia dos deputados do Centrão para mostrar sua força.

Do governo federal, a Câmara cobra a fatura dos cargos prometidos na reforma ministerial após a aprovação de projetos da agenda econômica no primeiro semestre do ano. Os deputados aproveitaram também para desafiar o Senado – e a própria Constituição – no imbróglio sobre as comissões mistas de medidas provisórias. Protelar a tramitação de MPs tem sido uma estratégia eficiente para limitar o poder dos senadores e ampliar o da Câmara. Como as MPs caducariam na próxima semana, o Senado não queria ter de assumir sozinho o desgaste político de rejeitá-las.

Disputas políticas entre o Executivo e o Legislativo ou entre a Câmara e o Senado são comuns e até naturais. O problema é quando esses embates ultrapassam os limites do razoável e ignoram a lei, como ocorreu nesta semana.

O reajuste do salário mínimo tem forte impacto nas contas públicas, assim como a atualização da tabela do Imposto de Renda. E, como determinam a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias, esses aumentos de gastos gerariam perdas que precisariam ser compensadas, seja por aumento de receitas, seja por contingenciamento de gastos na mesma proporção.

Da forma como a MP foi aprovada no Legislativo, no entanto, apenas os gastos foram garantidos, e as receitas ficaram para depois. Os parlamentares se recusaram a aprovar a emenda com a taxação dos fundos offshore, item que também estava na MP da atualização da tabela do Imposto de Renda justamente para compensar as perdas de arrecadação associadas a ela.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), chegou a classificar a tributação dos fundos offshore como o maior jabuti da história recente, como se a intenção de taxar o dinheiro investido em paraísos fiscais fosse uma completa surpresa. Encurralado, o Executivo teve de recuar e enviar um novo projeto de lei com o mesmo tema, dando ao Congresso mais tempo – talvez infinito – para debatê-lo.

Eis a austeridade fiscal dos parlamentares posta à prova. Também ficou para depois o envio de uma medida provisória para taxar os fundos exclusivos, veículos de investimento dos super-ricos com patrimônio superior a R$ 10 milhões. Ao contrário de aplicações semelhantes, esses fundos estão isentos da tributação semestral conhecida como come-cotas. Taxá-los, portanto, mais do que uma medida arrecadatória, seria uma questão de isonomia e uma maneira de reverter a regressividade que ainda caracteriza o injusto sistema tributário do País.

A gamificação do mundo

Correio Braziliense

A indústria de games já movimenta R$ 12 bilhões ao ano no Brasil, o que o posiciona na liderança em receita no setor na América Latina e no 13º lugar no ranking mundial

O mercado do entretenimento é uma mina de ouro no Brasil. Na onda tecnológica, a indústria de games já movimenta R$ 12 bilhões ao ano no país, o que o posiciona na liderança em receita no setor na América Latina e no 13º lugar no ranking mundial. Segundo as projeções da PwC, a expectativa é de que as cifras globais alcancem US$ 321 bilhões até 2026. Em 2022, esse montante foi de US$ 196,8 bilhões.
Diante de um público vasto e diverso, caracterizado pelo equilíbrio entre determinadas faixas etárias de gamers, há dados muito curiosos.

Segundo a Pesquisa Game Brasil 2022, as mulheres são maioria entre o público gamer, representando 51%. A principal faixa etária é de 25 a 34 anos (25,5%), seguida por jovens de 16 a 24 anos (17,7%). Mas pessoas mais velhas – entre 30 e 34 anos (12,9% dos jogadores) e entre 35 e 39 anos (11,2% do total) – também não ficam atrás, o que demonstra um certo equilíbrio entre adultos acima dos 30 aos 39 anos.

Outra informação importante é que o negócio de games tem ampliado sua área de atuação. Não se limita apenas a multinacionais de softwares ou áreas afins. Um dos maiores clubes de assinatura de vinhos do mundo, líder no ranking de importação no Brasil, anunciou recentemente o lançamento do Wine Games em lojas físicas em 16 unidades da marca. Inovação, disrupção, entretenimento, curiosidade e interação são alguns dos adjetivos para anunciar a novidade.

Para quem pensa que os “sessentões” estão afastados da gamificação do mundo, os idosos estão se aproximando cada vez mais do mundo dos jogos. Mais digitalizados, o número de gamers com mais de 60 anos é de 21% em todo o mundo (Euromonitor).

Maior que o cinema, que streamings de vídeo e de música, o investimento na indústria de jogos eletrônicos continua a crescer e a atrair investidores dos mais diversos setores ao redor do mundo. Não à toa, sites como Americanas, Amazon e Mercado Livre registram milhares de vendas todos os dias – somente no segmento de games. Os aficionados ganharam até uma data comemorativa: na próxima terça-feira (29) é o Dia Internacional do Gamer.

Além de meio de diversão, estamos falando de um segmento que se profissionalizou, com jogadores ganhando dinheiro (e muito) e competições que se transformam em grandiosos eventos. A despeito das polêmicas sobre o uso excessivo de eletrônicos no ambiente familiar e escolar e se jogos digitais podem ser considerados modalidade esportiva, com possibilidade de receber verbas públicas como incentivo, por exemplo, é incontestável o avanço da indústria. É irreversível.

Fato é que o mundo agora é digital, assim como tem sido os hábitos, os consumidores e as transações. Vide a dificuldade do comércio em encontrar cédulas, “dinheiro vivo” na praça, engolido pelos cartões de crédito e pelos atuais Pix. É nessa evolução tecnológico que se incluem os games. E se pensarmos que esse mundo começou bem lá atrás, na década de 1970, mais exatamente em 1972, com o Pong, aquele jogo que aparecia na TV com dois adversários e uma tela que representava uma quadra. Dois tracinhos, cada um de um lado e uma bolinha, que ficava para lá e para cá. Evoluímos muito. Que venham as próximas décadas.

 

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