Cidades estão despreparadas para as ondas de
calor
O Globo
Altas temperaturas vieram para ficar. Será
preciso zelar pela oferta de água, circulação de ar e plantio de árvores
O Brasil ferve nesta passagem do inverno para
a primavera. Nos últimos dias, em cidades como Teresina, Cuiabá ou Palmas, as temperaturas
beiraram os 40 graus. Em quase todas as capitais, ficaram acima dos 30. O
“maçarico”, dizem meteorologistas, se intensificará nos próximos dias. É só uma
prévia do verão. O país precisa se preparar não só para este, mas também para
os próximos verões, que serão mais e mais quentes.
Nada muito diferente do calorão que atingiu o
Hemisfério Norte recentemente. Cidades dos Estados Unidos e da Europa
registraram temperaturas acima dos 40 graus. Houve incêndios devastadores e
letais. Num cenário que combina os efeitos das mudanças
climáticas e o fenômeno El Niño,
julho foi o mês mais quente da História.
Que o Brasil viverá dias de calor intenso nos próximos meses, anos e décadas, parece inescapável. A questão é como lidar com isso. Não se trata apenas de reduzir o desconforto para a população. Há um problema de organização urbana, com consequências para a saúde pública. Estima-se que pelo menos 61 mil tenham morrido de causas relacionadas ao calor em 35 países europeus no ano passado. “A onda de calor é um desastre negligenciado”, disse ao GLOBO Renata Libonati, coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da UFRJ.
As cidades brasileiras precisarão se adaptar.
“Muitos pensam que, por sermos um país tropical, estamos preparados, mas não
estamos”, diz Renata. No curto prazo, é fundamental haver integração entre
institutos de meteorologia, Defesa Civil e outras instâncias de governo. A
população precisa ser informada. Experiências do exterior podem ser adaptadas à
realidade brasileira. É o caso da suspensão de atividades em horários críticos,
atenção especial a grupos vulneráveis, distribuição de água, liberação de
fontes e chafarizes para cidadãos se refrescarem, ampliação do horário de
funcionamento de ambientes refrigerados, instalação de ventiladores com
umidificação, além da óbvia preparação do sistema de saúde.
Em São Paulo, a prefeitura pôs em prática uma
operação especial e montou dez tendas com ambulância e oferta de água potável.
Anunciou ainda a instalação de ventiladores em unidades de acolhimento da
população de rua. Mesmo tímidas, são iniciativas bem-vindas. Outras cidades
deveriam preparar seus planos.
Como o calor veio para ficar, governos
precisam também pensar em medidas de longo prazo. É difícil que alguma cidade
instale uma rede de fontes públicas de água tão ampla como a de Roma. O item
mais crítico, mostram estudos, é o plantio de árvores. Um terço das 6.700
mortes atribuídas ao calor na Europa em 2015 teriam sido evitadas se fosse
ampliada em 30% a arborização urbana, constatou pesquisa do Instituto Global de
Saúde, na Espanha.
Cingapura adotou um plano de plantio de
árvores ao redor, em cima ou mesmo dentro de edifícios. Novas ruas e
construções têm sido projetadas pensando na circulação do ar. Nada de parecido
foi pensado nas metrópoles brasileiras. Em São Paulo, a verticalização dos
novos eixos tem deixado de lado a preocupação com o calor acumulado.
Governo federal, estados e municípios
precisam agir logo para prevenir os danos que serão provocados pelas altas
temperaturas no futuro. É impossível impedir as ondas de calor, mas, com
planejamento, elas poderão ser menos devastadoras.
Fila de 1,6 milhão no INSS torna os mais
pobres reféns da burocracia
O Globo
População de baixa renda pode ter de esperar
mais de cinco meses por benefício essencial à sobrevivência
Pelo último dado divulgado, há uma fila de
1,6 milhão de brasileiros diante dos guichês do INSS.
A situação já foi pior, quando a corrida de servidores públicos para receber a
aposentadoria acrescida de uma gratificação levou em 2019 a fila a alcançar 2,4
milhões. Agora, a maioria são cidadãos de baixa renda, à espera de
aposentadoria, pensões ou outros benefícios, em particular o Benefício de
Prestação Continuada (BPC), salário mínimo pago a idosos pobres ou a quem tenha
alguma deficiência, mesmo que não tenha contribuído à Previdência.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, a
GloboNews apurou em agosto que o tempo médio para alguém obter aposentadoria,
pensão ou auxílio passa de cinco meses. Parece pouco diante do tamanho da fila,
mas não é. Grande parcela dos brasileiros não conta com poupança suficiente
para subsistir quase meio ano sem fonte de renda segura. Sobretudo aqueles que
dependem do BPC, marco zero na escala dos mais de 36 milhões de benefícios
pagos mensalmente pela Previdência.
É legítimo argumentar que não deveria caber à
Previdência a execução daquilo que, na realidade, não passa de um programa
social. Mesmo assim, é essa a situação criada no Brasil. A população de baixa
renda não pode sofrer as consequências da inadequação ou da baixa eficácia do
modelo brasileiro de assistência social. A importância do INSS deveria tornar
os governos mais ágeis para evitar gargalos.
Em entrevista recente, o novo presidente do
INSS, Alessandro Stefanutto, afirmou que a Previdência perdeu 18 mil servidores
nos últimos anos e tem hoje apenas 42 mil. Ele disse que ainda serão
contratados pouco mais de 3 mil aprovados em concurso. Não faz mesmo sentido
repor todas as vagas. Em vez disso, como reconhece o próprio Stefanutto, o
indicado é aumentar a automação na análise dos pedidos de benefício.
Para transmitir a impressão de que está
fazendo algo a respeito, o Planalto
enviou ao Congresso neste mês um projeto que cria o Programa de Enfrentamento à
Fila da Previdência Social. Trata-se de um conjunto de boas
intenções: reduzir o tempo de análise dos pedidos, cumprir decisões judiciais
com prazo expirado — há segurados que apelam aos tribunais — e realizar as
perícias médicas para efeito de concessão ou renovação de benefícios. O projeto
pretende estimular o funcionalismo com bônus de R$ 68 para a carreira
administrativa e R$ 75 para os médicos peritos, de acordo com serviços
prestados. Não se sabe como reagirá a burocracia do INSS à ideia.
Por ora, entre idas e vindas no choque entre governos e servidores do INSS, tem cabido à população de baixa renda apenas o papel de refém da burocracia.
Tabu tem remédio
Folha de S. Paulo
Legalização da maconha sofre rejeição, mas
uso medicinal pode facilitar debate
Pesquisa
Datafolha realizada neste mês confirma com números novos algo
mais que conhecido: a opinião pública brasileira exibe ampla recusa ao uso de
drogas. Insinuam-se rachaduras nesse muro, contudo, graças aos avanços da
ciência.
Monta a 72% o contingente de entrevistados
que se diz contrário a legalizar a maconha para uso recreativo ou, melhor
dizendo, adulto. Nos cerca de 30 países que progrediram nessa direção, não se
admite o consumo por menores de idade —como de resto é a norma com drogas
legais tão maléficas quanto álcool e tabaco.
Nem mesmo a descriminalização do porte de
pequenas quantidades para uso pessoal, ora em deliberação pelo Supremo Tribunal
Federal, conta com apoio majoritário. Somente 36% a apoiam, contra recusa de
61%.
O panorama refratário —de resto
compreensível, dada a associação dos entorpecentes com a criminalidade e riscos
à saúde— se altera a fundo quando entra em pauta o emprego terapêutico de
derivados da maconha.
Mais de três quartos (76%) defendem legalizar
seu consumo como remédio; 60% aceitariam usá-los se receitados por médicos.
Mais dividido
se mostra o público diante de substâncias psicodélicas, como
MDMA (ecstasy) e psilocibina de cogumelos mal denominados "mágicos".
Testes clínicos vêm indicando seu potencial para tratar transtornos como
estresse pós-traumático e depressão, mas só 43% se dizem a favor do uso medicinal
(e 46%, contra).
A legalização para uso adulto enfrenta alta
rejeição (80%). Nem mesmo a utilização para fins religiosos conta com apoio
(25%, ante 62% de opositores), embora o chá psicodélico ayahuasca esteja
autorizado no país para tal finalidade.
Esta Folha defende que o Estado não
deveria penalizar o consumo pessoal de compostos psicoativos a pretexto de
proteger saúde e segurança dos cidadãos. Após décadas de guerra às drogas, não
diminuíram nem a demanda nem as mortes —só se encheram prisões com população negra
e pobre.
Nos EUA, 23 dos 50 estados legalizaram o uso
adulto da maconha, e 38, o consumo medicinal. Essa tem sido a tendência: a
flexibilização da legislação começa pelo direito à saúde e acaba no
reconhecimento da liberdade individual.
Não sem resistências. Aqui o presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), patrocina emenda constitucional reacionária
para criminalizar a posse de quaisquer drogas em qualquer quantidade.
Corre-se o risco de que o debate sobre o tema
seja contaminado por desinformação. Contra isso, há pelo menos o apoio racional
da população a evidências oriundas da melhor ciência médica.
Pecado tributário
Folha de S. Paulo
PEC que amplia imunidade de igrejas e
partidos avança por conveniência política
Faz mais de 75 anos que igrejas e partidos
políticos, entre outras instituições, desfrutam de generosa regalia no Brasil.
Por força da Constituição, tais entidades não pagam impostos que incidam sobre
o patrimônio, a renda ou os serviços promovidos por elas, em uma benesse que
contempla as esferas municipal, estadual e federal.
Não satisfeito com essa proteção
constitucional, o deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), da
bancada evangélica, quer mais. Ele propõe ampliar a imunidade tributária de
maneira a incluir também a aquisição de bens e serviços necessários à formação
do patrimônio, à geração de renda e à prestação dos serviços.
A diferença textual soa pequena, quase
irrisória. O parlamentar argumenta que sua proposta de emenda à Constituição
nada mais faz que transpor para a Carta Magna entendimento reiterado pelo
Supremo Tribunal Federal; seria apenas uma maneira de evitar desnecessários
embates administrativos e judiciais.
Pode ser. Com ainda mais razão, contudo,
caberia o raciocínio oposto: dadas as inúmeras ocasiões em que igrejas e
partidos se viram às voltas com dívidas milionárias e suspeitas de desvios, a
fiscalização sobre eles deveria crescer, não ser afrouxada por meio de uma PEC.
Quando apareceu na Constituição de 1946,
depois da Era Getúlio Vargas, o dispositivo da imunidade tributária tinha o
objetivo de assegurar a liberdade de culto e partidária, impedindo a criação de
impostos e contribuições que onerassem minorias religiosas e políticos de
oposição.
É fácil constatar que nada disso está em
risco hoje, ainda mais quando se conhecem as cifras movimentadas por algumas
igrejas. São os cofres públicos, isso sim, que padecem
com o desequilíbrio duradouro entre receitas e despesas.
Os deputados, entretanto, não demonstram
vontade de conduzir esse tipo de discussão. De forma ecumênica, da situação à
oposição, da esquerda à direita, parecem
evitar atitudes que possam ser tachadas de antirreligiosas, temendo,
sem dúvida, o efeito eleitoral de vídeos bem editados e disseminados nas redes
sociais.
Vá lá que não queiram mudar o que já se inscreveu há décadas na Constituição Federal; não será esse, afinal, o dispositivo responsável por nossas mazelas. Mas que aceitem ceder ainda mais para quem já tem tanto, isso parece um pecado difícil de perdoar.
Para o PT, Justiça Eleitoral é amolação
O Estado de S. Paulo
No mundo dos sonhos petistas, os partidos
deveriam ser livres para descumprir a legislação e dispor dos bilionários
fundos públicos sem essa arrelia de ter de prestar contas ao TSE
A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann,
questionou a existência da Justiça Eleitoral durante uma sessão da comissão especial
que analisa a chamada PEC da Anistia. Caso essa sem-vergonhice prospere, e nada
indica o contrário, os partidos ficarão livres do pagamento de multas impostas
pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por descumprimento da legislação
eleitoral vigente em 2022, em particular pela inobservância das cotas para
candidaturas de mulheres e negros e do porcentual de distribuição do Fundo
Eleitoral para esses dois segmentos da sociedade sub-representados no
Congresso.
O grande tema, porém, não é o questionamento
da líder petista. Os cidadãos e seus representantes na Câmara são livres para
discutir, com civilidade e honestidade intelectual, se, de fato, faz sentido
haver no País uma estrutura do Poder Judiciário dedicada às questões de
natureza político-eleitoral ou se essa demanda poderia ser atendida pela
Justiça comum. É um tema digno de debate. O problema é o que está por trás
desse ímpeto da deputada Gleisi Hoffmann em voltar suas baterias contra o TSE e
os Tribunais Regionais Eleitorais.
Segundo a dirigente petista, as decisões das
Cortes Eleitorais “trazem a visão subjetiva da equipe técnica dos tribunais,
que, sistematicamente, entra na vida dos partidos políticos, querendo dar
orientação, interpretando a vontade dos dirigentes”. Tivesse saído da boca de um
parlamentar bolsonarista há apenas alguns meses, a mesmíssima fala teria
desencadeado uma feroz reação dos petistas. Entretanto, o aborrecimento com a
Justiça Eleitoral faz com que petistas e bolsonaristas deem as mãos e caminhem
lado a lado na defesa dos interesses particulares dos partidos.
Por “entrar na vida” das agremiações
políticas ou lhes “dar orientação”, entenda-se simplesmente o dever da Justiça
Eleitoral de exigir o cumprimento das leis e da Constituição, nada além disso.
As palavras de Gleisi Hoffmann indicam que, no seu mundo dos sonhos, os
partidos não deveriam estar submetidos a essa arrelia de, ora vejam, ter de
respeitar a legislação em vigor e prestar contas pelo uso dos bilionários
fundos públicos que abarrotam o caixa das legendas.
Com um misto de desfaçatez e descaso pelos
recursos dos contribuintes, a sra. Hoffmann afirmou que a Justiça Eleitoral
estaria sendo implacável com os partidos ao impor multas “impagáveis” – cerca
de R$ 23 bilhões acumulados por todos os partidos entre 2018 e 2023. De acordo
com o TSE, só em 2022, o PT recebeu R$ 500 milhões do Fundo Eleitoral e mais R$
104 milhões referentes à sua cota de distribuição do Fundo Partidário.
Na condição de presidente do partido mais
orgânico e bem estruturado do País, goste-se ou não do PT, a deputada Gleisi
Hoffmann vocaliza um sentimento que decerto anima a grande maioria de seus
colegas dirigentes partidários: a Justiça Eleitoral mais atrapalha do que
ajuda. Raríssimos são os que não desejam todos os bônus advindos da criação de
um partido político no País sem ter de arcar com os respectivos ônus. Eis mais
um sinal do total descolamento entre a maioria das legendas com representação
no Congresso e os grandes anseios da sociedade brasileira. Salvo raras
exceções, os partidos estão cada vez mais afastados dos eleitores e mais
fechados na defesa dos interesses particulares de seus líderes.
Idealmente, não deveria haver Justiça
Eleitoral no País nem tampouco os fundos públicos que financiam a administração
e as campanhas políticas dos partidos. Este jornal não se furtará a advertir,
sempre que necessário, que os partidos são organizações privadas da sociedade
e, como quaisquer outras dessa natureza, devem ser financiados exclusivamente
por recursos privados. Mas, dado que não há no horizonte o mais tênue indício
de que os fundos públicos que jorram dinheiro nas contas dos partidos terão
fim, é indispensável que ao menos haja uma instituição capaz de controlar o
manejo desses recursos – R$ 6 bilhões apenas em 2022. E hoje não há outra mais
qualificada para isso do que a Justiça Eleitoral.
A absurda PEC dos ex-territórios
O Estado de S. Paulo
Proposta é excelente oportunidade para Lira
demonstrar um verdadeiro compromisso com as contas públicas e para governo
testar a lealdade do Centrão e a efetividade da reforma ministerial
O governo finalmente começou a revelar
detalhes sobre seus planos para a reforma administrativa. Em entrevista ao
Estadão, a ministra de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck,
disse ser contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32, elaborada no
governo anterior pela equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes, e
favorável à manutenção da estabilidade do servidor público.
Dweck destacou que a reforma administrativa,
no governo Lula, não está pautada pelo viés de redução do Estado ou pelo corte
de despesas. Reconheceu, no entanto, haver muitos problemas a serem enfrentados
no setor público, especialmente na administração pública federal. Para isso, a
ideia é apresentar ou aproveitar projetos de lei que tratem temas de forma
separada, tais como reestruturação das carreiras, mudanças nos concursos e
avaliação de desempenho dos servidores, bem como a situação dos funcionários
temporários e os controversos supersalários.
Tem razão a ministra ao se posicionar contra
a PEC 32/2020. Originalmente, a proposta tinha como foco único a redução dos
gastos com o funcionalismo público. Mas o parecer final, aprovado em uma
comissão especial, não apenas excluiu militares, o Legislativo, o Judiciário e
o Ministério Público, como também ampliou, em vez de diminuir, o rol de
carreiras típicas de Estado.
Nesse sentido, como disse a ministra, se o
objetivo fosse tratar apenas da administração pública federal, não seria o caso
de apelar a mais uma PEC. Há, no entanto, que ter mais celeridade na
apresentação desses projetos de lei, até mesmo para que o governo não passe a
impressão de estar empurrando os problemas sem ter a intenção de resolvê-los.
Ainda que tenha sido abandonada pela própria
administração que a concebeu, a PEC 32 se tornou a desculpa oficial para o
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), contrapor-se a medidas que visam a
taxar fundos de investimentos exclusivos e offshores. Para Lira, o governo
precisa rever seus gastos antes de pensar em elevar a arrecadação. É um
princípio mais do que defensável, não fosse o fato de ser usado como pretexto
para os deputados não aprovarem nem uma coisa nem outra.
Dweck e Lira não poderiam ter posições mais
distintas sobre um mesmo tema. Mas, por ironia do destino, eis que surge uma
oportunidade perfeita para que os dois deixem de lado as diferenças e
demonstrem um raro alinhamento em prol do Estado: a Proposta de Emenda à
Constituição 7/2018, aprovada por unanimidade no último dia 12 pelo Senado e
que agora tramitará na Câmara.
O texto, que recebeu a alcunha de “trem da
alegria”, permitirá a incorporação de até 50 mil servidores dos antigos
territórios do Amapá, Rondônia e Roraima aos quadros da União, ampliando as
despesas do Executivo em R$ 6,3 bilhões por ano. Trata-se da quinta emenda
constitucional que aborda o tema – e, dessa vez, a bola nas costas não veio da
oposição, mas do próprio líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues
(Rede-AP), que desarquivou a PEC da qual é signatário.
A PEC não apenas representaria um aumento de
gastos extemporâneo, o exato oposto do que Lira tem cobrado, como poderia
comprometer os concursos públicos que a ministra Esther Dweck pretende realizar
nos próximos meses. Não há qualquer justificativa para aprová-la.
Por ser uma PEC, o texto, uma vez que receba
o aval dos deputados e senadores, é promulgado da forma como foi aprovado. Ao
Executivo não cabe vetálo, mas somente trabalhar para reduzir o potencial de
danos que pode gerar aos cofres públicos antes da votação.
Lira, no entanto, tem um enorme poder nas
mãos. Como presidente da Câmara, é ele quem define a pauta de votações da Casa.
Para evitar tamanho prejuízo ao Estado, basta não incluir a PEC na ordem do dia
e impedir que o trem da alegria possa seguir adiante.
A PEC será, portanto, um grande teste para
medir o real compromisso de Lira com a redução das despesas, com a solidez das
contas públicas e com o próprio País. Já o governo vai descobrir, na prática,
se valeu a pena abrir tanto espaço para acomodar o Centrão na Esplanada dos
Ministérios.
O legado de Murdoch
O Estado de S. Paulo
Titã da mídia deixa a direção do conglomerado que ajudou a envenenar a democracia nos EUA
Aos 92 anos, Rupert Murdoch anunciou sua
aposentadoria como presidente da Fox e da News Corporation, o maior e mais
influente conglomerado de mídia do mundo. É um gigante que se retira, deixando
um legado difícil de ignorar: o jornalismo que Murdoch dirigiu e patrocinou, ao
mesmo tempo que consolidou o imenso vigor de seus negócios, foi em parte
responsável pela degradação da democracia norte-americana.
No momento em que empresas jornalísticas no
mundo inteiro lutam para sobreviver em meio a mudanças drásticas no modo como
se produzem, distribuem-se e consomem-se notícias, é tentador acreditar que a
Fox, em razão de seu sucesso, possa servir de modelo para atravessar a
tormenta. Fazê-lo, no entanto, seria renunciar ao que há de mais caro no
jornalismo – a busca pela verdade – em favor da excitação permanente dos
leitores e telespectadores, que se converte em audiência, cliques e
compartilhamentos ao infinito.
Ademais, o modelo de Murdoch prescinde de
credibilidade, que desde sempre lastreou o bom jornalismo. Ao dar à sua
audiência somente aquilo que ela supostamente deseja, e em doses cavalares, a
Fox tem necessariamente que abrir mão dos cuidados jornalísticos mínimos e,
sobretudo, de honestidade.
Foi assim, por exemplo, que a Fox sustentou
histericamente, nos momentos tensos que se seguiram à eleição de Joe Biden à
presidência, em 2020, que a votação havia sido fraudada com a ajuda da empresa
responsável por urnas eletrônicas. E continuou a sustentar essa versão
mentirosa mesmo sabendo que se tratava de mentira, razão pela qual levou um
processo judicial que só foi encerrado graças a um acordo com a empresa
difamada – que recebeu uma indenização de US$ 787,5 milhões.
Esse desfecho, embora didático, não muda a
essência do problema. O império de Murdoch será para sempre lembrado como o
dínamo que alimentou a extrema direita americana, envenenando o debate público
com mentiras sistemáticas, dia e noite, para dar sentido ao discurso delirante
de gente incapaz de viver numa democracia.
Nem na despedida Murdoch se emendou.
Dizendo-se um guerreiro da liberdade de expressão, na qual se escoram todos os
que pretendem usá-la para minar democracias mundo afora, o empresário
bilionário travestiu-se de advogado do “homem comum” – o público-alvo da Fox –
ao criticar governantes que “tentam silenciar os que questionam seus
propósitos” e a elite “que despreza os que dela não fazem parte”. E ainda disse
que “grande parte da mídia conspira junto com essa elite, vendendo narrativas
políticas em vez de buscar a verdade”.
No mesmo comunicado, Murdoch garantiu que continuará a acompanhar de perto o trabalho de suas empresas, num claro recado para aqueles que porventura queiram mudar o rumo das coisas em sua ausência. Nem seria necessário: nesta altura, a Fox tornouse sinônimo de jornalismo irresponsável, e não há nada que os sucessores de Murdoch possam fazer a respeito, na remota hipótese de que queiram.
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