domingo, 24 de setembro de 2023

Rolf Kuntz - A geopolítica pessoal de Lula

O Estado de S. Paulo

Com ele, Brasil voltou a ser um participante normal das relações internacionais, apesar dos tropeços que lembram seu tempo juvenil no palanque em Vila Euclides

O Exército Brancaleone podia ser um trambolho ineficiente e mal-ajambrado, mas era um exército, pelo menos na ficção cinematográfica. O tal Grupo dos 77, oficialmente reunido em Cuba durante a passagem de Lula, mal chega a ser um ente fictício. É pouco mais que um nome, assim como o Sul Global, uma entidade etérea celebrada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Havana e em Nova York. Em Cuba, foi programado um discurso do presidente brasileiro a autoridades do G-77. Na hora marcada, o auditório estava quase vazio. Mas a lenda parece atraente. Governos anunciaram adesões e com isso o conjunto poderá ultrapassar 130 países. A atuação dos 77 e seus efeitos práticos são pouco visíveis, até agora, e mal se pode especular sobre as consequências da ampliação. Mas nada reduz o valor moral, político e diplomático das palavras de Lula. Além disso, vale a pena registrar o interesse mostrado pelo governo chinês.

A China já é grande parceiro comercial de economias emergentes, em desenvolvimento e subdesenvolvidas. A segunda maior potência econômica do mundo continua a tomar espaços dominados, tradicionalmente, pelos Estados Unidos e pela Europa capitalista. No Brics, a predominância chinesa é evidente, quando se examina o comércio entre seus componentes. Algo parecido deve ocorrer no intercâmbio dos integrantes do G-77. As trocas entre esses países são obviamente muito menores que o comércio com os chineses.

Será o comércio com a China mais equilibrado e mais justo do que têm sido as transações com as potências do Ocidente? Deve ser, da perspectiva do presidente brasileiro, concentrado, até agora, em cobrar políticas mais equitativas dos parceiros capitalistas. No entanto, cerca de metade do valor vendido pelo Brasil aos Estados Unidos corresponde a bens manufaturados. Nas exportações para o mercado chinês essa parcela é muito inferior a 10%. O comércio Brasil-China lembra uma relação colonial, sendo a colônia, nesse caso, situada na América do Sul. Mas esses detalhes parecem pouco significativos para o presidente Lula e seus conselheiros.

Para avaliar a diplomacia do líder petista é preciso considerar pelo menos quatro tipos de consequências. Há alguns efeitos inegavelmente positivos para o País e para Lula. Com a mudança de governo, o Brasil voltou a ser participante normal do jogo diplomático, depois de se haver tornado quase um pária no período de Jair Bolsonaro. Recobrou a condição de parceiro respeitado e, além disso, reassumiu posição destacada entre as economias emergentes e em desenvolvimento.

Em segundo lugar, convém examinar a eficácia prática das políticas. O balanço é modesto, talvez até pobre. Não adianta muito brigar pelo G-77, se a maior parte desses países permanecer pouco articulada com seus pares e pouco empenhada em batalhar por melhores condições de comércio e de financiamento. Mesmo o Mercosul, com um núcleo formado por apenas quatro países vizinhos, está longe das condições de atuação e integração globais imaginadas por seus fundadores.

Em terceiro lugar, é impossível desconhecer o aparente fascínio de Lula pelas más companhias. Ele parece confundir o respeito à soberania dos demais países com o apoio a autocratas e criminosos, como alguns dos mais escrachados ditadores latino-americanos. Há uma enorme distância, por exemplo, entre respeitar a soberania da Venezuela e prestigiar a figura execrável de um Nicolás Maduro. Não há como justificar, perante a comunidade dos países democráticos, esse tipo de apoio.

Finalmente, é necessário registrar o descompasso entre as avaliações de Lula e as qualificações do Direito Internacional. Não há como isentar o governo do russo Vladimir Putin da ilegalidade cometida com a invasão da Ucrânia. Agressão é incompatível com as normas da Organização das Nações Unidas (ONU). Não há espaço, nesse ordenamento, nem sequer para a chamada agressão preventiva, um tema discutido já no século 17. Além disso, Putin foi condenado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) pela transferência forçada de crianças ucranianas para a Rússia.

Diante desses crimes, Lula atropelou tanto fatos quanto normas. Referiu-se à guerra na Ucrânia, várias vezes, como se os governos ucraniano e russo fossem igualmente responsáveis pelo conflito. Só moderou o discurso depois de ser aconselhado por assessores e de reconhecer a péssima repercussão internacional. Errou também ao anunciar a disposição de receber Vladimir Putin sem risco de prisão. Com isso, rejeitou a autoridade do TPI, uma entidade reconhecida pelo Brasil, e foi novamente advertido pelos companheiros.

Esses tropeços foram sofridos por um Lula movido por impulsos e preconceitos e antes da interferência dos assessores. A liderança e o talento político do presidente são amplamente reconhecidos. Mas Lula retorna com excessiva frequência ao tempo juvenil do palanque em Vila Euclides. Aquele deve ter sido um tempo maravilhoso, mas é muito arriscado, para ele e para o País, confundir o Palácio do Planalto com palanque sindical ou eleitoral.

 

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