quarta-feira, 15 de novembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Conflito em Gaza exige mais equilíbrio de Lula

O Globo

Ao receber brasileiros repatriados, presidente fez paralelo descabido entre Israel e grupo terrorista Hamas

Felizmente o governo federal, graças à ação conjunta do Itamaraty e da FAB, obteve sucesso na repatriação de 22 brasileiros e dez palestinos com vínculos com o Brasil, que esperavam para sair de Gaza desde os ataques do grupo terrorista Hamas em 7 de outubro. A operação, cercada de tensão e de uma negociação sensível com os governos israelense e egípcio, coroa com êxito a iniciativa que já trouxera de volta de Israel cerca de 1.400 brasileiros em oito voos durante uma semana.

Infelizmente, porém, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aproveitou a chegada do voo para proferir um discurso político em que, ao criticar os ataques de Israel que atingem civis, fez um paralelo descabido. “Se o Hamas cometeu um ato de terrorismo pelo que fez, o Estado de Israel também está cometendo vários atos de terrorismo”, afirmou. Num momento em que o antissemitismo cresce no mundo e, na contramão da nossa tradição, também floresce no Brasil, discursos inflamatórios que comparem um Estado democrático a um grupo terrorista em nada contribuem para um clima construtivo que reduza os danos da guerra.

Desde o início, a postura de Lula tem mostrado desequilíbrio. Embora tenha condenado o ataque terrorista do Hamas e feito uma videoconferência com familiares das vítimas — entre as quais havia três brasileiros —, não recebeu nenhum representante de entidade judaica. Em vez disso, duas semanas depois dos ataques confraternizou com o roqueiro Roger Waters, acusado de antissemitismo por sua militância em favor do boicote mundial a Israel. Em seu discurso ao receber os repatriados de Gaza, Lula nem mesmo citou os israelenses ainda mantidos reféns.

Críticas a Israel são necessárias diante da escalada das mortes em Gaza. A multiplicação de vítimas civis exige cobrança em termos enfáticos. É o que líderes das democracias ocidentais têm feito — do americano Joe Biden ao francês Emmanuel Macron. Mas daí a acusar Israel de “terrorismo” — ou, como depois fez numa rede social, amenizando, afirmar que sua reação “se assemelha ao terrorismo” — vai enorme distância. É mais que um abuso de linguagem, como tantos outros que Lula costuma cometer. Na melhor hipótese, revela desconhecimento da situação em Gaza. Na pior, preconceito e adesão a um dos lados no conflito.

Quando critica — corretamente — a falta de cuidado com as vítimas civis dos bombardeios israelenses, Lula omite que é parte da estratégia do Hamas esconder terroristas e instalações militares em construções como hospitais ou escolas, ampliando o risco para civis. Líderes do grupo terrorista reconhecem isso. “Os russos sacrificaram 30 milhões na Segunda Guerra. Os vietnamitas sacrificaram 3,5 milhões até derrotar os americanos. O povo palestino é como qualquer outra nação. Nenhuma nação é libertada sem sacrifícios”, afirmou Khalid Meshal, porta-voz do Hamas, ao ser questionado sobre o porquê do ataque se a reação feroz de Israel era previsível. O principal líder do grupo, Ismail Haniyeh, foi mais transparente: “O sangue das mulheres, das crianças, dos idosos, (…)nós precisamos desse sangue, para que ele desperte o espírito revolucionário”.

Lula tem o direito de ir receber brasileiros e palestinos que nada têm a ver com a guerra. Mas, de um líder, exige-se mais comedimento nas palavras — e, sobretudo, mais equilíbrio num conflito que mobiliza tanta dor e paixão.

N.R: Versão anterior deste texto informou incorretamente que Lula não havia se reunido com familiares das vítimas dos ataques terroristas. Na verdade houve uma reunião por videoconferência em 26 de outubro com familiares de reféns e desaparecidos.

Visita de ‘dama do tráfico’ expõe ministério a constrangimento

O Globo

Pasta da Justiça mudou protocolos de acesso depois que mulher de chefe de facção esteve com dois secretários

São constrangedoras as falhas nos protocolos de segurança que permitiram à advogada Luciane Barbosa Farias, conhecida como “dama do tráfico amazonense”, participar de audiências com Elias Vaz, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, e com Rafael Velasco, secretário de Políticas Penais, dentro das dependências da pasta. Mulher do chefe de uma facção criminosa que cumpre pena de 31 anos por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, Luciane foi condenada a dez anos por tráfico, mas responde ao processo em liberdade. O ministério alega que não sabia da atividade criminosa do casal.

O jornal O Estado de S. Paulo mostrou que Luciane esteve no ministério pelo menos em duas ocasiões. Numa delas, participou de uma delegação de mulheres levadas por Janira Rocha, ex-deputada estadual (PSOL-RJ) e vice-presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim-RJ). De acordo com o ministério, a comitiva pediu melhorias nas condições dos presos. Em seu périplo por instâncias do poder em Brasília, Luciane esteve também com deputados governistas, como André Janones (Avante-MG) e Guilherme Boulos (PSOL-SP).

Depois da gritaria da oposição e da repercussão negativa do episódio, o Ministério da Justiça anunciou mudanças nos protocolos para visitas a integrantes da pasta. A partir de agora, a lista dos participantes de reuniões no ministério deve ser enviada por e-mail com antecedência mínima de 48 horas, com nomes e CPFs, para que todos os participantes possam ser identificados. Quem tiver compromisso público na pasta será atendido na recepção ou em seus anexos para ser identificado. É duvidoso o efeito dessas mudanças de ordem meramente burocrática.

A visita ao Ministério da Justiça expôs fatos graves a apurar. Reportagem do Estado de S. Paulo revelou que a Polícia Civil do Amazonas apreendeu no celular de uma integrante da facção criminosa recibos de transferências à ex-deputada Janira. Os valores somavam R$ 23.654 num único dia. Tais indícios não provam nada, mas precisam ser investigados. É fundamental esclarecer os interesses em jogo na visita da delegação ao ministério.

Embora a oposição tenha aproveitado o episódio para centrar fogo no ministro da Justiça, Flávio Dino, ele não pode ser considerado responsável por falhas de seus secretários. Numa rede social, Dino afirmou que nunca recebeu em audiência no ministério “líder de facção criminosa, ou esposa, ou parente, ou vizinho”.

O Brasil vive uma grave crise de segurança, em que as facções criminosas desempenham papel central. Mesmo presos, chefões controlam a venda de drogas, mandam executar rivais e comandam ataques a prédios públicos e incêndios em ônibus. São conhecidas as condições precárias dos presídios brasileiros, quase todos abarrotados. Reivindicar melhor tratamento para presos é legítimo. O fundamental é saber quem reivindica e por quê. O Ministério da Justiça, mais que qualquer outro, deveria saber disso.

Calor, fogo e fumaça

Folha de S. Paulo

El Niño, aquecimento global e queimadas fazem de 2023 um ano de recordes

O desmatamento caiu 22% na Amazônia em 2023, porém as queimadas no país —mais da metade delas apenas nesse bioma— superam recordes. Cidades como Manaus estão cobertas de fumaça. Com a crise do clima na Terra, tudo parece fora de ordem.

A onda de calor a escaldar o Brasil incinera as derradeiras dúvidas sobre o aquecimento global. Ela se encaixa à perfeição no conceito de eventos extremos para os quais cientistas vêm alertando, há décadas, às vezes para ouvidos moucos.

A canícula tem explicação. Está relacionada ao fenômeno El Niño, em que águas superficiais anormalmente aquecidas no Pacífico bagunçam o clima do globo e devem tornar este 2023 o mais quente em 125 mil anos.

O descompasso entre redução no desmate e aumento de incêndios também conta com explicação, ainda que não intuitiva. A floresta amazônica enfrenta estiagem inaudita, outra consequência do El Niño. Além disso, há elevação incomum da temperatura das águas do oceano Atlântico, que pode estar agravando a situação.

Nos últimos três anos houve predominância de fenômeno oposto, com La Niña, que incrementa precipitação na Amazônia. Se, em tempos normais, essa fisionomia florestal tipicamente chuvosa já se mostra muito difícil de incendiar, mais ainda nessa condição.

As enormes derrubadas ocorridas no governo Jair Bolsonaro (PL) deixaram muita biomassa no chão, mas nem toda ela foi submetida ao fogo, em vista da alta umidade. Agora, com a seca extrema, desmatadores e grileiros aproveitam para limpar os terrenos para semeadura de pastagens.

O desconcerto da opinião pública com o paradoxo amazônico decorre de uma associação imediata entre desmatamento e queimadas. São duas práticas deletérias separadas no tempo —primeiro é preciso derrubar as árvores, depois esperar que os resíduos sequem o suficiente para pegarem fogo.

É certo, entretanto, que ambas contribuem para o efeito estufa. São etapas necessárias para o carbono estocado na floresta ascender, encorpando o cobertor de gases que retêm energia solar e aquecem a atmosfera além da conta.

O Brasil leva boa notícia para a COP28 em Dubai, que começa no próximo dia 30, com o recuo na devastação da Amazônia. Está distante, porém, de contribuir mais decididamente para enfrentar a emergência climática planetária, pois o desmatamento corre solto no cerrado, seu segundo maior bioma, hoje o mais ameaçado.

Fogo, fumaça e calor ainda vão causar muitos danos à saúde humana e à do ambiente.

Gastando muito e mal

Folha de S. Paulo

Em meio a alta geral de despesas, programa de alfabetização ainda não usou verba

Parece contraditório que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), enquanto bate recordes de gastos públicos, ainda não tenha destinado um mísero centavo para o programa de reforço à alfabetização lançado como prioridade neste ano, conforme a Folha noticiou.

Não resta dúvida quanto à urgência da iniciativa, anunciada em junho com previsão de desembolsos de R$ 801 milhões até dezembro. O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) apontou um efeito devastador da pandemia sobre o já precário processo de letramento das crianças brasileiras.

Com base nas provas de 2021, constatou-se que apenas 43,6% dos alunos do segundo ano do ensino fundamental demonstravam as habilidades necessárias para que fossem considerados alfabetizados, tais como ler e escrever textos curtos do cotidiano. Em 2019, antes de a crise sanitária interromper as aulas presenciais, eram 60,3%.

Com outra metodologia, o Unicef, órgão das Nações Unidas para a infância, apurou uma tragédia semelhante —a parcela de iletrados entre as crianças de 7 anos saltou de 20%, antes da Covid-19, para 40% no ano passado.

O montante reservado no Orçamento deste ano, ademais, está longe de ser proibitivo para um governo que elevou as despesas federais, sem contar juros, de R$ 1,8 trilhão em 2022 para R$ 2,06 trilhões.

O problema, tudo indica, não é falta de dinheiro —ainda.

O governo brasileiro amplia gastos como poucos no mundo, mas, na grande maioria dos casos, com o pagamento de aposentadorias, benefícios sociais e salários de servidores públicos. Reajustes em tais rubricas são de fácil execução e costumam render dividendos políticos e eleitorais imediatos.

Já quando se trata de políticas públicas que exigem projetos, licitações, gestão de recursos humanos, metas e avaliações, os avanços são muito mais vagarosos.

Pior, cedo ou tarde o aumento imprudente das despesas obrigatórias reduz o espaço orçamentário de outros programas, tipicamente no custeio administrativo e nos investimentos. Obras e outras ações de longo prazo sofrem com atrasos e descontinuidade.

Gastar muito e mal decerto não é exclusividade do governo petista. Em seu terceiro mandato, porém, Lula, com apoio do Congresso, foi muito além da expansão fiscal necessária para acomodar o novo Bolsa Família e fez retrocederem normas de ajuste e controle estabelecidas e mantidas a duras penas nos últimos anos.

Lula e a má-fé da esquerda

O Estado de S. Paulo

Ao chamar de “terrorista” a reação de Israel ao massacre promovido pelo Hamas, Lula confirma o ranço ideológico da esquerda primitiva.

O presidente Lula da Silva considera que a ofensiva de Israel contra o Hamas é “terrorista”, ao, segundo ele, “não levar em conta que mulheres e crianças não estão em guerra”. Numa só frase, o petista distorceu completamente o cenário da guerra, igualou situações inigualáveis e confirmou sua incapacidade de perceber a complexidade do mundo, prisioneiro que é do ranço ideológico de uma esquerda primitiva.

Não se sabe se o falatório de Lula atende a demandas dos militantes petistas, decerto insatisfeitos com as reinações do Centrão no governo que deveria ser esquerdista, mas isso pouco importa: manda a decência que, na condição de presidente da República, Lula se informe melhor antes de tirar conclusões tão abomináveis, que envergonham o Brasil perante a comunidade internacional.

Lula deveria saber que nenhuma criança palestina estaria morrendo em bombardeios israelenses em Gaza se Israel não tivesse sido covardemente atacado por terroristas do Hamas no dia 7 de outubro passado; Lula deveria saber que o Hamas usa crianças como escudos humanos e hospitais como esconderijos e que esse grupo terrorista nunca se importou que as crianças e os doentes morressem sob bombas israelenses, pois o objetivo é desmoralizar Israel perante a opinião pública mundial; Lula deveria saber, por fim, que a intenção declarada do Hamas é dizimar Israel e os judeus, o que deveria ter ficado suficientemente claro com o ataque de 7 de outubro.

Mas Lula não sabe nada disso ou faz força para não saber – pouco importa, pois o resultado é o mesmo. Há um imperativo imoral no discurso do demiurgo petista: a barbárie é plenamente justificada se for realizada em nome das causas que seu partido e a esquerda defendem.

No caso em questão, o Hamas tem sido tratado por esquerdistas como um grupo heroico de resistência palestina contra o colonialismo israelense. Pouco importa que o Hamas trucide civis inocentes se estes forem israelenses; não é relevante que o projeto do Hamas para a futura Palestina é um Estado islâmico que faria o Irã parecer uma democracia laica; também não interessa se os chefões do Hamas desviaram o dinheiro da bilionária ajuda internacional para Gaza para construir seu arsenal de guerra e para encher os próprios bolsos; e finalmente ninguém dessa esquerda primitiva quer saber se o Hamas pratica terrorismo não só contra Israel, mas também contra os próprios palestinos que o grupo deveria governar, reprimindo mulheres, homossexuais e qualquer forma de dissidência. Tudo o que importa, para Lula e sua seita, é que o Hamas fustiga Israel, considerado como braço do imperialismo americano no Oriente Médio.

Trata-se de um padrão. Esse mesmo Lula, não podemos esquecer, foi o presidente que, em meio à estupefação mundial com a agressão russa contra a Ucrânia, foi capaz de culpar os ucranianos pela guerra. A razão é óbvia: na interpretação lulopetista, os ucranianos estavam se aproximando do Ocidente, razão mais que suficiente para justificar o corretivo russo. Afinal, ninguém que se aproxime do Ocidente merece consideração da esquerda. Perde até o direito de se defender.

Essa indecência só surpreende os estrangeiros que tinham Lula como grande líder mundial. Quem acompanha o petista desde os tempos de sindicalista sabe que ele construiu sua mitologia reduzindo tudo à luta entre trabalhador e patrão – ou entre oprimido e opressor, em escala global. E todos os que Lula considera oprimidos são, claro, moralmente superiores. Nessa chave, o regime cubano pode colocar quantos queira no paredão, pois tudo é feito em nome da necessidade de manter a revolução em curso e enfrentar a opressão americana; do mesmo modo, a Venezuela, uma rematada ditadura, é para Lula um exemplo de democracia, simplesmente porque é o grande bastião antiamericano no continente. Os exemplos podem seguir infinitamente, da Nicarágua do companheiro ditador Ortega, ao Irã do infame Ahmadinejad, que tratou Lula como “grande amigo”.

O “oprimido” da vez é o Hamas, em cuja defesa Lula se empenha com denodo, desprezando cruelmente a dor dos judeus massacrados em Israel – país que, afinal, para muitos esquerdistas, nem deveria existir.

O problema de um STF protagonista

O Estado de S. Paulo

Corte tem importante papel contramajoritario na defesa da Constituição. Mas avanços sociais são promovidos por exercício de cidadania, não por Judiciário dito esclarecido

É cada vez mais comum ouvir que, nas últimas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) assumiu a liderança na defesa de direitos fundamentais no Brasil. Em geral, essa afirmação tem um tom de celebração. O País conta com uma Corte constitucional que vem promovendo importantes direitos e garantias, em uma trajetória de claro progresso civilizatório – e tudo isso seria manifestação de um bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. O STF chega aonde o Congresso mostra-se incapaz de chegar.

De fato, o Supremo tem sido importante na defesa do regime democrático; de forma especial, entre 2019 e 2022, quando o governo Bolsonaro tentou, de diversas formas, corromper a separação de Poderes, o princípio federativo e o sistema eleitoral. Ao mesmo tempo, admitir os bons serviços prestados pela Corte não é incompatível com reconhecer as muitas vezes em que o STF se equivocou, sendo ele próprio fonte de problemas (não de soluções) e fator de instabilidade (não de segurança e previsibilidade).

No entanto, seja qual for a avaliação que se faça dos erros e dos acertos do Supremo nos últimos anos, é de admitir que o País tem um enorme problema se continuamente os direitos fundamentais precisam ser promovidos não por uma maioria política, mas pelo Judiciário, com sua atuação contramajoritária. Eis o fato incontestável. Se o STF é o grande promotor dos direitos e garantias no País, isso significa que a população brasileira, por meio de seus representantes eleitos, tem sido incapaz de respeitar e promover esses direitos.

Não há dúvida de que uma Corte constitucional tem importante papel contramajoritário. Sua missão é garantir o respeito à Constituição, seja qual for a vontade política majoritária do momento. No entanto, se isso é contínuo – se os “avanços civilizatórios” têm de ser promovidos habitualmente pelo STF, e não por meio da maioria política –, tem-se um motivo não de celebração, mas de profunda preocupação.

Essa proatividade continuada do Supremo é sintoma de que a compreensão da população, em sua maioria, está indo por outros rumos, acolhendo outros significados, assumindo outros valores. Há um descolamento, não apenas momentâneo, entre o Direito (afirmado pelo STF) e a vontade política, o que é problemático sob diversos aspectos.

Em primeiro lugar, é uma fantasia pensar que basta o STF declarar direitos para que eles sejam devidamente cumpridos. Nessa ilusão, há uma sobrevalorização não apenas do alcance do poder estatal, mas da própria ideia de direito, como se seu reconhecimento formal por meio de uma decisão judicial fosse suficiente para assegurar sua efetividade.

Em segundo lugar, é preciso contextualizar e relativizar a ideia de avanço civilizatório promovido por uma Corte constitucional. Há verdadeira melhoria no respeito a direitos fundamentais se esses direitos têm de ser declarados contra a vontade da maioria da população? Talvez se possa dizer, a depender das circunstâncias, que determinada decisão judicial constitui um atestado do atraso civilizatório do País. Mas declarar que tal decisão instaura, por si só, um novo status civilizatório no País é compreender, de forma muito superficial, o que é civilização, respeito ao outro ou mesmo desenvolvimento social e humano.

Cabe ainda questionar a própria noção de avanço civilizatório realizado por 11 pessoas não eleitas. Não há efetivo progresso humano sem representação ou participação popular, com soluções ditadas de cima para baixo. Estado Democrático de Direito não é uma espécie de sistema aristocrático esclarecido, com alguns poucos ditando as regras sobre todos os demais. A civilização não é obra de decreto judicial.

Além das questões de competência e de efetividade – que não devem ser desprezadas –, é preciso advertir que a concepção de um STF promotor-mór da civilização não se contrapõe às causas do atraso brasileiro. Segue o mesmo padrão, cujos frutos são bem conhecidos: o de uma cidadania outorgada de cima para baixo, que nunca é plena nem genuinamente autônoma.

O cacoete do controle de preços

O Estado de S. Paulo

Órgão anunciado por ministro enfraquece ANP e se imiscui no mercado de combustíveis

Durante evento recente em Belo Horizonte, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, anunciou como mais nova iniciativa de sua pasta a criação do Operador Nacional do Sistema de Distribuição de Combustíveis. Segundo ele, o objetivo do novo órgão federal será combater a adulteração e a sonegação fiscal, além de assegurar o abastecimento. Daí surge uma dúvida básica: não é exatamente essa a função da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)?

Nas palavras do ministro, o tal Operador Nacional será um “fiscalizador global do sistema”. Para deixar mais claro, Alexandre Silveira explicou: “Precisamos ter a segurança de que, toda vez que a Petrobras ou qualquer fornecedora ou importadora abaixe o preço na refinaria, essa redução chegue ao consumidor final nos postos de combustíveis”.

De fato, isso a ANP não faz. E não faz porque não é atribuição da agência reguladora de um setor que opera com preços livres. Desde 2001 os combustíveis deixaram de ter preços regulados, após quase cinco anos de transição, a partir da quebra do monopólio do petróleo. De lá para cá, a legislação regulatória e tributária passou por adaptações, e todos os agentes da cadeia, do poço ao posto, tiveram também de se adaptar.

Tentando justificar a proposta, que anunciou estar sendo finalizada para ser enviada ao Congresso como projeto de lei, o ministro disse que pretende que o novo órgão seja para a ANP o que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é para a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), mostrando que a escolha do nome não foi à toa. Ora, está claro que se trata de um movimento para reduzir o poder da ANP, o que seria coerente com a tradicional campanha dos governos petistas para debilitar as agências reguladoras.

E é bom esclarecer que o ONS não faz o que o ministro sugere. Esse operador coordena e controla toda a operação de geração e transmissão de energia elétrica de um sistema integrado e complexo. Seu papel é evitar colapsos no fornecimento ou, ao menos, ajudar a resolvê-los rapidamente. Subsidia todos os órgãos governamentais do setor, inclusive a Aneel. Não tem, entre suas atribuições, nenhuma ingerência sobre preços de tarifas, que no caso do setor elétrico são regulados pela Aneel.

Está claro que os governos – não especificamente este, mas todos os que sucederam à abertura do mercado de petróleo e a liberação de preços – não têm conseguido lidar bem com o funcionamento do mercado livre dos combustíveis. Governantes sabem que ganham popularidade quando conseguem fazer cair o preço da gasolina na marra e que perdem popularidade quando uma alta dos combustíveis faz subir a inflação. Seja qual for a motivação, contudo, é inconstitucional interferir na livre formação de preços.

Mesmo a exigência de repasse imediato das mudanças de preço em refinarias para postos de combustíveis é despropositada, considerando que os ciclos do mercado são ditados por um sem-número de fatores alheios à vontade de qualquer agente governamental. É recomendável, portanto, que as palavras do ministro não se convertam em atentado à ordem econômica.

O Brasil no caminho da desglobalização

Correio Braziliense

Organização Mundial do Comércio (OMC) advertiu que as tensões geopolíticas começam a impactar nos fluxos comerciais comerciais em todo o mundo

Desde o início da década, o comércio global vive uma era de incertezas. A pandemia de covid-19 foi o primeiro e mais duro golpe na economia mundial, levando a uma recessão generalizada e provocando crises que ainda não foram superadas. Na sequência, quando o mundo mal começava a vida pós-pandemia, a guerra entre Ucrânia e Rússia — que levou o país de Vladimir Putin a ser severamente punido em termos econômicos pelo resto do planeta —, também deu sua parcela de contribuição para a desorganização das cadeias produtivas globais.

Soma-se o atual conflito entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, que rachou de modo irreparável a diplomacia mundial, e as disputas comerciais entre a China — que ainda sofre as consequências de sua política severa de isolamento social na pandemia — e os Estados Unidos, que levaram a uma redução no fluxo bilateral entre os dois países, e está quase pronta a tempestade perfeita para uma desconexão geral dos mercados, que vem sendo chamada de desglobalização. Não por acaso, a Organização Mundial do Comércio (OMC) advertiu, recentemente, que as tensões geopolíticas estão começando a ter impacto nos fluxos comerciais em todo o mundo, com uma onda de protecionismo que ameaça a interconexão estabelecida ao longo das últimas décadas.

Empresas e países, diante desse panorama, têm sido forçados a repensar suas estratégias globais, e investimentos estão sendo paralisados ou revistos. A dependência excessiva das cadeias de suprimentos globais, que se consolidaram desde os anos 1980, agora estão sendo vistas com desconfiança e temor. A vulnerabilidade revelada pela pandemia de covid-19 já havia alertado para os riscos da interdependência entre os mercados.

Um novo fator pode levar o mundo a ampliar ainda mais a sua fragmentação: uma eventual eleição de Donald Trump nos EUA em 2024. O ex-presidente norte-americano é o nome mais forte dos republicanos para concorrer com o atual mandatário, o democrata Joe Biden, e foi um dos responsáveis por acirrar a disputa entre os Estados Unidos e a China. Também está na conta dos quatros anos do primeiro mandato de Trump um recolhimento de Washington para suas questões internas, deixando de lado questões mundiais e aliados históricos, como o Canadá e a França, e contribuindo de modo severo para a desaceleração da globalização.

Nesse contexto, é possível que essa retração se revele como uma oportunidade para o Brasil, um dos países mais protecionistas e isolados economicamente do resto do mundo. À medida que a desglobalização se aprofundar e os países passarem a buscar caminhos bilaterais para seus mercados, o Brasil — seja sozinho, seja em bloco, com o Mercosul — poderá se conectar com novos parceiros e aprofundar a relação com os antigos, como China e EUA. É claro que tal circunstância só será devidamente aproveitada se o país começar a, finalmente, promover uma revisão profunda de suas barreiras alfandegárias, que mantêm a economia brasileira extremamente voltada para o mercado interno e alheia ao resto do mundo.

É inegável, portanto, que o comércio global enfrenta uma encruzilhada. O desafio para os líderes globais, inclusive os brasileiros, diante do momento atual, é encontrar um equilíbrio entre a busca por interesses nacionais legítimos e a promoção de um mundo mais cooperativo e interconectado. A desglobalização não pode ser um pretexto para a adoção do isolacionismo e de novas medidas protecionistas, mas sim uma oportunidade para a colaboração multilateral que, mesmo em um ambiente menos globalizado, torna-se crucial para enfrentar desafios como mudanças climáticas, pandemias e migrações em larga escala.

 

 

 

Um comentário:

Daniel disse...

Lula está coberto de razão. Um estado "democrático" que mata mais de 4 mil crianças em 1 mês de bombardeios contra civis é TERRORISTA e ASSASSINO! O Globo e Jornal da Record aceitam os CRIMES DE GUERRA cometidos por Netanyahu e seus facínoras como algo normal. Isto NÃO É NORMAL E NÃO é tolerável. O governo israelense É MUITO PIOR que o Hamas! E tem MUITOS CÚMPLICES NA MÍDIA BRASILEIRA!