quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Nicolau da Rocha Cavalcanti* - Justiça submissa ou independente?

O Estado de S. Paulo

Uma Justiça que respeita direitos será sempre incômoda. Frequentemente, irá contrariara opinião pública – e a nossa opinião

O Judiciário deve aplicar as penas segundo a opinião pública ou tem de se ater ao que está nos autos e seguir a lei, seja qual for o juízo popular sobre determinado caso? Se estivermos sendo julgados, não há dúvida de que preferimos a Justiça que aplica a lei, não a que obedece a opinião pública. No entanto, eis a ambiguidade da vida, sempre houve e continua havendo gente incomodada – ou, melhor, decepcionada – com o fato de a Justiça, muitas vezes, não atender às suas expectativas de condenação ou de absolvição.

Caso paradigmático de quebra de expectativa foi a Operação Lava Jato. São muitos os que, sem nunca terem tido acesso a nenhum processo da famosa operação, estão convencidos de que as ações foram julgadas de forma equivocada, num fracasso do Estado perante o crime. Não discuto aqui o mérito dos processos. Noto tão somente a enorme pressão popular sobre o Judiciário. Ela é benéfica ou prejudicial para a qualidade das decisões judiciais?

Os processos do 8 de Janeiro têm também despertado grande comoção social, com questionamentos sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF). Para muitos, além das restrições ao direito de defesa, haveria uma perseguição política contra os réus, com medidas cautelares desproporcionais e penas excessivas. No entanto, até agora, o Supremo parece alheio às críticas. A Corte faz bem ou faz mal em ignorar essa insatisfação popular?

Há, ainda, um outro grande número de casos – crimes patrimoniais (de pequeno vulto) e de tráfico de drogas (de pequenas quantidades) – cujo tratamento pela Justiça não suscita especial atenção da população. No entanto, observa-se uma queixa, bastante difundida, de que o Judiciário seria brando e omisso em relação a eles. Tal percepção gera uma consequência perigosa: aos olhos da opinião pública, nenhuma ação da polícia ou da Justiça parece excessiva ou desproporcional. Há uma tolerância tácita (que às vezes se torna escandalosamente explícita) de parte da população com os abusos, que, sob tal lógica, nunca seriam a rigor abusos. Tudo isso exerce enorme influência sobre o Judiciário, moldando seu comportamento no curto, médio e longo prazos.

Esta é a realidade: a Justiça não vive num mundo à parte. Continuamente influenciada pelo que acontece fora dos autos, ela é muito mais reativa do que se imagina. E isso não ocorre apenas no Brasil. Publicado recentemente, o livro Justiça midiática: os efeitos perversos nos direitos fundamentais e no devido processo legal (São Paulo: D’Plácido, 2023), de Vittorio Manes, advogado e professor de Direito Penal na Università di Bologna, na Itália, analisa, a partir de diversos casos europeus, as muitas consequências da cobertura midiática sobre o sistema de Justiça.

“A justiça penal tornou-se um espetáculo”, diz Vittorio Manes, com “efeitos perversos sobre os direitos fundamentais dos sujeitos envolvidos e sobre a justiça real: efeitos tão sutis quanto ignorados, mas imediatamente perceptíveis na microssociologia do processo e no caso individual e concreto”. Neste cenário, não existe presunção de inocência. O réu é um “culpado aguardando julgamento”.

Mas as repercussões dessa justiça desinstitucionalizada são ainda mais graves, adverte o professor italiano, sobre a “imparcialidade e autonomia da jurisdição, esmagada pelo confronto com o pré-julgamento mass-midiático, onde o juiz é a opinião pública”. Os efeitos recaem sobre a “confiança da coletividade na justiça administrada em seu nome, atualmente reduzida a porcentuais cada vez mais marginais, especialmente quando o resultado do processo real diverge da pseudoverdade midiática e da condenação antecipada ali pronunciada”. É uma questão não trivial. A “diástase entre o que é percebido pro veritate e o que é então apurado em juízo aumenta perigosamente o dissenso deslegitimante nos confrontos dos procedimentos institucionais de resolução dos conflitos”.

Nessa tensão, Vittorio Manes é incondicional defensor das liberdades de expressão e de imprensa. “Tomar nota do saldo negativo para os fundamental rights que a informação de massa inscreve, cotidianamente, na balança da justiça não significa, obviamente, querer duvidar do papel que a imprensa desempenha – e deve desempenhar – em termos de controle crítico do poder em uma sociedade democrática”.

Segundo Vittorio Manes, o problema não é de ordem normativa, como se a solução fosse criar mais restrições ou punições. Trata-se, sobretudo, de um desafio cultural, a recomendar vigilância dos envolvidos, seja para reconhecer as distorções que condicionam “a atividade interpretativa e valorativa do juiz”, seja para admitir que “o direito de informar e de ser informado vem contraposto aos direitos dos sujeitos expostos às rajadas da justiça midiática”.

Não cabem ilusões. Uma Justiça que respeita direitos será sempre incômoda. Frequentemente, irá contrariar a opinião pública – e a nossa opinião. No entanto, em vez de criticar o Judiciário, talvez seja o caso de reconhecer que na sua independência – na fidelidade à lei – reside seu maior valor.

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