Carlos Alberto Sardenberg
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
É para reparar: uma força essencial na salvação do capitalismo é a República Popular da China, dirigida pelo Partido Comunista. O Fundo Monetário Internacional (FMI), guardião do capitalismo, precisa de capital e quem mais pode fornecer é o Banco do Povo da China, montado que está em reservas de US$ 2 trilhões.
Cumprindo esse papel, o presidente chinês, Hu Jintao, compareceu à reunião do G-20 (grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo, entre desenvolvidos e emergentes) levando uma mala de dinheiro e uma sacola de conselhos econômicos e políticos. Os econômicos tinham endereço: os Estados Unidos. Foi divertido. Hu disse que o FMI deveria exercer mais supervisão sobre os países que emitiam moeda de reserva, de modo a garantir que mantivessem sólidas políticas.
Ora, o dólar é a moeda de 65% das reservas mundiais. Só os chineses têm mais de US$ 1 trilhão em títulos denominados em dólares - e, por isso, têm manifestado preocupação com os imensos déficits que o governo americano está abrindo para combater a crise. Como se sabe, déficits e dívidas enfraquecem as moedas.
Eis outra ironia: os chineses estão dizendo que os americanos precisam de mais austeridade e ortodoxia em sua política monetária.
Talvez por isso, o presidente Hu tenha dito que o FMI deveria começar a pensar em outras moedas de reserva, não vinculadas a governos nacionais.
Esses assuntos tiveram destaque nas reuniões internacionais, mas passaram batido os conselhos políticos sugeridos pelo primeiro-ministro Wen Jiabao.
Disse ele que o governo chinês havia dado uma resposta pronta e abrangente à crise, montando inclusive um amplo pacote de gastos, de modo muito eficiente. É uma prova, completou, da superioridade do modelo chinês de governar.
Sem qualquer constrangimento, Jiabao, comparando os sistemas, criticou o modo ocidental, por causa dos processos que exigem muita negociação e sucessivas aprovações.
Ou seja, o primeiro-ministro defendeu a ditadura contra a democracia. Na China, o governo, quer dizer, o Partido Comunista, decide e acabou. O pacote estava definido, anunciado e iniciado semanas antes da reunião do Congresso do Povo, que deveria discuti-lo, ou melhor, aprová-lo.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, cada vez que o governo Barack Obama precisa fazer alguma coisa - socorrer o sistema financeiro, por exemplo, ou a General Motors - precisa ir ao Congresso pedir a autorização e o dinheiro.
Não é nova a tese de Jiabao. Já se discutiu muito por estes lados, nos anos 70 e 80, que, em certas circunstâncias, ditaduras são mais eficientes na política econômica, nem importando se seriam ditaduras de direita ou esquerda.
A tese morreu, ou ficou adormecida, porque as ditaduras dessa época terminaram em fracassos - inclusive o regime chinês de Mao, cuja revolução cultural deixou o país na miséria, depois de um banho de sangue.
Mas, se vários países caíram na democracia, a China seguiu na ditadura. A turma de Den Xiao Ping liquidou os herdeiros de Mao, assumiu o poder e iniciou a nova era, que permitiu a chegada do capitalismo.
Com o fim do socialismo no mundo todo, a coisa ficou mais simples. É tudo capitalismo na economia, com democracia ou com ditadura na política. Não é tudo assim, preto no branco. Há zonas cinzentas, democracias com restrições ou ditaduras com relaxamentos. Mas as categorias básicas são essas mesmas.
Assim, Cingapura, por exemplo, que era uma ditadura de direita, agora é igual à China, dita de esquerda. Agora é tudo capitalismo com ditadura e forte intervenção do Estado.
É o que os chineses estão oferecendo como mais eficiente. Considerando o enorme valor que a democracia tem para o Ocidente, é evidente que eles não esperam que seu conselho seja sequer recebido.
Sua intenção é outra - barrar as pressões que o Ocidente faz para que a China inicie algum tipo de abertura. Essas pressões, é verdade, já foram mais fortes. A China chegou a sofrer sanções depois do massacre na Praça da Paz Celestial, em 1989. Com o tempo e com a ascensão do poder econômico da China, essas pressões foram diminuindo, diminuindo, até que praticamente desapareceram. De vez em quando algum governante defende o povo do Dalai Lama, mas é só.
E hoje, do alto de sua montanha de dólares, de seu PIB de mais de US$ 4 trilhões (o terceiro do mundo), o presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro Wen Jiabao estão dizendo: chega dessa conversa, nosso sistema é assim mesmo e é o melhor. E vamos cuidar do capitalismo.
De todo modo, para não deixar margem a outras interpretações: há, sim, países capitalistas que vão muito bem com suas democracias, mesmo com os demorados e complexos processos eleitorais, legislativos e judiciários.
E quanto à eficiência do sistema chinês, falta uma opinião essencial, a do povo chinês.
Salvem o FMI!
Outra ironia da semana foi a do presidente Lula. Ele mesmo a fez. Notou como era engraçado que ele, depois de ter passado boa parte de sua vida carregando cartazes com "Fora FMI", agora participasse de um esforço de salvar e reforçar o FMI.
O Brasil do governo Lula vai emprestar dinheiro para o FMI cumprir seu papel de resgatar países em dificuldades e manter de pé o sistema financeiro. Melhor assim, não é mesmo?
*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
É para reparar: uma força essencial na salvação do capitalismo é a República Popular da China, dirigida pelo Partido Comunista. O Fundo Monetário Internacional (FMI), guardião do capitalismo, precisa de capital e quem mais pode fornecer é o Banco do Povo da China, montado que está em reservas de US$ 2 trilhões.
Cumprindo esse papel, o presidente chinês, Hu Jintao, compareceu à reunião do G-20 (grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo, entre desenvolvidos e emergentes) levando uma mala de dinheiro e uma sacola de conselhos econômicos e políticos. Os econômicos tinham endereço: os Estados Unidos. Foi divertido. Hu disse que o FMI deveria exercer mais supervisão sobre os países que emitiam moeda de reserva, de modo a garantir que mantivessem sólidas políticas.
Ora, o dólar é a moeda de 65% das reservas mundiais. Só os chineses têm mais de US$ 1 trilhão em títulos denominados em dólares - e, por isso, têm manifestado preocupação com os imensos déficits que o governo americano está abrindo para combater a crise. Como se sabe, déficits e dívidas enfraquecem as moedas.
Eis outra ironia: os chineses estão dizendo que os americanos precisam de mais austeridade e ortodoxia em sua política monetária.
Talvez por isso, o presidente Hu tenha dito que o FMI deveria começar a pensar em outras moedas de reserva, não vinculadas a governos nacionais.
Esses assuntos tiveram destaque nas reuniões internacionais, mas passaram batido os conselhos políticos sugeridos pelo primeiro-ministro Wen Jiabao.
Disse ele que o governo chinês havia dado uma resposta pronta e abrangente à crise, montando inclusive um amplo pacote de gastos, de modo muito eficiente. É uma prova, completou, da superioridade do modelo chinês de governar.
Sem qualquer constrangimento, Jiabao, comparando os sistemas, criticou o modo ocidental, por causa dos processos que exigem muita negociação e sucessivas aprovações.
Ou seja, o primeiro-ministro defendeu a ditadura contra a democracia. Na China, o governo, quer dizer, o Partido Comunista, decide e acabou. O pacote estava definido, anunciado e iniciado semanas antes da reunião do Congresso do Povo, que deveria discuti-lo, ou melhor, aprová-lo.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, cada vez que o governo Barack Obama precisa fazer alguma coisa - socorrer o sistema financeiro, por exemplo, ou a General Motors - precisa ir ao Congresso pedir a autorização e o dinheiro.
Não é nova a tese de Jiabao. Já se discutiu muito por estes lados, nos anos 70 e 80, que, em certas circunstâncias, ditaduras são mais eficientes na política econômica, nem importando se seriam ditaduras de direita ou esquerda.
A tese morreu, ou ficou adormecida, porque as ditaduras dessa época terminaram em fracassos - inclusive o regime chinês de Mao, cuja revolução cultural deixou o país na miséria, depois de um banho de sangue.
Mas, se vários países caíram na democracia, a China seguiu na ditadura. A turma de Den Xiao Ping liquidou os herdeiros de Mao, assumiu o poder e iniciou a nova era, que permitiu a chegada do capitalismo.
Com o fim do socialismo no mundo todo, a coisa ficou mais simples. É tudo capitalismo na economia, com democracia ou com ditadura na política. Não é tudo assim, preto no branco. Há zonas cinzentas, democracias com restrições ou ditaduras com relaxamentos. Mas as categorias básicas são essas mesmas.
Assim, Cingapura, por exemplo, que era uma ditadura de direita, agora é igual à China, dita de esquerda. Agora é tudo capitalismo com ditadura e forte intervenção do Estado.
É o que os chineses estão oferecendo como mais eficiente. Considerando o enorme valor que a democracia tem para o Ocidente, é evidente que eles não esperam que seu conselho seja sequer recebido.
Sua intenção é outra - barrar as pressões que o Ocidente faz para que a China inicie algum tipo de abertura. Essas pressões, é verdade, já foram mais fortes. A China chegou a sofrer sanções depois do massacre na Praça da Paz Celestial, em 1989. Com o tempo e com a ascensão do poder econômico da China, essas pressões foram diminuindo, diminuindo, até que praticamente desapareceram. De vez em quando algum governante defende o povo do Dalai Lama, mas é só.
E hoje, do alto de sua montanha de dólares, de seu PIB de mais de US$ 4 trilhões (o terceiro do mundo), o presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro Wen Jiabao estão dizendo: chega dessa conversa, nosso sistema é assim mesmo e é o melhor. E vamos cuidar do capitalismo.
De todo modo, para não deixar margem a outras interpretações: há, sim, países capitalistas que vão muito bem com suas democracias, mesmo com os demorados e complexos processos eleitorais, legislativos e judiciários.
E quanto à eficiência do sistema chinês, falta uma opinião essencial, a do povo chinês.
Salvem o FMI!
Outra ironia da semana foi a do presidente Lula. Ele mesmo a fez. Notou como era engraçado que ele, depois de ter passado boa parte de sua vida carregando cartazes com "Fora FMI", agora participasse de um esforço de salvar e reforçar o FMI.
O Brasil do governo Lula vai emprestar dinheiro para o FMI cumprir seu papel de resgatar países em dificuldades e manter de pé o sistema financeiro. Melhor assim, não é mesmo?
*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista
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