- O Estado de S. Paulo
Um dos dramas de hoje é que não há mais fatos - só expectativas. A história vai devagar e por linhas tortas. A última grande mudança foi a queda das torres em NY. Em dez minutos, nossa vida mudou. A obra de arte de Osama foi ter criado um fato. E o Ocidente acorreu para esmagar o herege, o psicopata que criou um acontecimento em um país que imaginava ter controle do seu destino. Ele ousou "acontecer". Se ele abriu o precedente, tudo ficou possível.
Só um maluco, um marginal poderia furar o cordão sanitário da vida controlada. Mas, Osama não era maluco. Ele criou a imagem das torres caindo por toda a eternidade, gravada no tempo, como a Queda da Bastilha, o holocausto e a destruição de Hiroshima. Osama nos trouxe de volta à realidade, furou a barreira virtual do nosso Truman Show.
Havia no ar um desejo de destruição da "paz americana", mesmo entre os americanos. Em cada detalhe da vida, havia indícios: em filmes-catástrofe gozando o arrasamento de NY, nos livros em que o futuro é sempre distópico e até na arquitetura, como sacou o italiano Paolo Portoghesi, quando disse que a forma do museu de Frank Gehry em Bilbao é o desejo de um desabamento. Os americanos têm uma relação de amor/ódio com o implacável progresso que os acorrenta a uma escravidão produtiva.
Eu mesmo, profetinha autoproclamado, já escrevi que aquelas agulhas góticas pareciam pedir destruição. Que pode acontecer a uma lança herética arranhando os céus de Deus? A queda. Só a queda. Havia uma fome de fatos no ar; Osama veio satisfazê-la. Achavam que a técnica era invencível em sua marcha fria para um futuro sem 'sujeitos', previsível e programado. Osama nos fascinou porque assumiu o papel de 'sujeito da história', como os marxistas se chamavam antigamente. Sozinho, destruiu a técnica com as armas da técnica, numa homeopatia apocalíptica.
Desde que nos entendemos, nunca vimos uma mutação tão inesperada. Não apenas nas mentalidades, mas na matéria da vida, nas engrenagens que movem o mundo. Talvez a Crise de 2008 tenha começado com a desmoralização das torres caídas. O 11 de setembro foi o início da Crise atual. Até o 11 de setembro, tínhamos liberdade para desejar o quê? Bagatelas, mixarias. Uma liberdade vagabunda para nada, para o exercício de um narcisismo ilusório, o fetiche de uma liberdade transformada em produto de mercado. E se o impossível acontece, a liberdade se restaura - nos ensina esse ato gratuito do terror.
Buraco negro. Este fato que mudou o Ocidente está ali em NY, deflorado, negro buraco e, por mais que tentemos, não conseguiremos desfazer a ligação entre os fios invisíveis que unem a loucura do fanatismo do Oriente até nossa vida pessoal.
Precisamos de uma forma nova de "transcendência", abolida pelo consenso tecnocientífico; uma nova liberdade se tornou urgente, a liberdade de 'não' ser moderno.
Este artigo me ocorreu porque o escrevi na Quinta-feira Santa e me vi subitamente sonhando com um novo "Cristo" que nos trouxesse esperança de salvação, não de ir para o céu, mas que trouxesse de volta o mistério de algo que explicasse o mundo. Também andei lendo ensaios de Paul Valéry que, nos anos 30, já previa com espantosa clareza o mundo de hoje.
Cito aqui trechos desse genial pensador visionário.
"A desordem do mundo atual nos habitua intimamente a ela; nós a vivemos, nós a respiramos, nós a criamos e ela acaba por ser uma verdadeira necessidade nossa. Nós encontramos a desordem à nossa volta e dentro de nós mesmos, nos jornais, nos dias e noites, em nossas atitudes, nos prazeres, até em nosso saber. A desordem nos anima e o que nós criamos nos leva a lugares onde não queremos ir." (A Política do Espírito.)
Ou então: "A vida social exige a presença de coisas ausentes; a ordem resulta do equilíbrio dos instintos pelos ideais". (...) "Uma sociedade que elimine tudo que é vago ou irracional, para impor o mensurável e o verificável, poderá sobreviver?" (Prefácio das Cartas Persas.)
Precisamos de um ideário que acrescente alguma inutilidade ao mundo. Precisamos de fatos, e não de expectativas, precisamos de um conjunto orgânico de verdades (ou de crenças) que espiritualize nosso vazio.
Mas, afinal de contas, com quem estou falando quando digo estas coisas aqui, sempre na forma de recomendações 'sensatas'? Com quem falamos? Com a ONU, com os presidentes, com os filósofos, com o bispo, com o umbigo? Com quem? É impressionante como os discursos de hoje, as conclamações, os manifestos, os ensaios usam o tom de "precisamos". "Precisamos impedir as mudanças climáticas, precisamos distribuir melhor a renda mundial, precisamos..." Mas ninguém nos responde.
Ou seja, não há o que fazer a não ser confiar em soluções que surjam pelo cansaço do erro, ou, pior ainda, pelos dias seguintes a uma grande catástrofe que nos leve, pelo pavor, a uma nova era de mínima racionalidade, até que, de novo, o caos se anuncie.
Até o mal ficou difuso. Onde está o mal, hoje? Entre os terroristas, no meio da miséria, entre fezes? O mal ficou arcaico. Por isso, o mal dos terroristas consiste em injetar o arcaico no moderno, esse inferno 'clean' que o capital inventou. E não adianta tentar a "beleza do mal" como busca invertida do bem. Já foram tentados: o culto à perversão, a violência ideológica, a crueldade por 'bons' motivos, tudo. Nada deu em nada. Existe hoje no mundo um novo mal, um mal sem culpados visíveis. O mal no mundo atual é o "incompreensível". Como disse Baudrillard: "Contra o mal, só temos o fraco recurso dos direitos humanos".
E, para fechar este artigo "cabeça", deprimido e citador, aqui vai o poema de Yeats, escrito em 1919, A Segunda Vinda:
"Tudo se desmancha no ar.
O centro não segura
a imensa anarquia solta
sobre o mundo.
Terrível maré de sangue
invade tudo e
as cerimonias da inocência
são afogadas.
Os homens melhores
não tem convicção;
e os piores estão tomados
pela intensa paixão do mal".
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