- O Globo
Em 21 de junho, Jair Bolsonaro se referiu a um ministro — era Onyx Lorenzoni — como fusível. Um dispositivo cuja existência consiste em ser uma proteção condenada a queimar para que queimado não seja o sistema; para que preservado seja o presidente. Era Lorenzoni, mas poderia ser Sergio Moro — e (não se iludam, liberais) até Paulo Guedes.
Já alguns fusíveis fundiram no curso da ainda breve jornada que vai dando caráter a esta República do Curto.
A imagem é preciosa porque expressa um importante fundamento da mentalidade bolsonarista: a forma utilitária, fritadora de outros protagonistas, como dispõe de colaboradores e mesmo de estruturas, a depender dos interesses circunstanciais da nova corte. Era Lorenzoni. Poderia —poderá —ser Moro ou Guedes. Já foram Bebianno e Santos Cruz. Logo será o PSL. Talvez mesmo a Lava-Jato, operação sem a qual Bolsonaro não teria vencido; isto porque a República do Curto também é da Caça, aquela que não hesita em degolar antigos sócios-predadores.
Duas notas constitutivas da persona de Bolsonaro foram realçadas desde que, sentindo o peso imperial da caneta de presidente, mediu que haveria tinta para testar limites: o inconformismo ante o que (quem) não pode controlar e a incompreensão de que um órgão do corpo federal possa ser de Estado e não de (seu) governo. A Polícia Federal, por exemplo; aquela — a das operações espetaculares — que tanto o ajudou e com a qual, vê-se, já estão deflagradas crises. Bolsonaro, ser interferente, quer submissão — e tem sido bem-sucedido em seus arreganhos. Ele foi convidado.
É da natureza do bolsonarismo só admitir a adesão absoluta, incondicional; de maneira que os virtuosos que lhe servem serão os virtuosos que não contestam —e que, assim, endossam. Pagarão o preço. Como o ex-juiz Moro, ora ministro, sob cuja hierarquia, aliás, está a PF, o herói justiceiro inventado pela imprensa, o queridinho de repente visto rindo — asquerosamente rindo — ao ouvir o presidente declarar que, se excesso jornalístico resultasse em cadeia, todos os jornalistas estariam presos.
Fusível outrora voluntário, cuja existência individual foi descarregada, Moro, o ex-Moro, hoje é um refém de Bolsonaro, seu autoritarismo independente já tragado por aquele, o que manda, do projeto de poder bolsonarista.
O bolsonarismo é um fenômeno revolucionário que se orienta pelo personalismo do líder carismático, daí por que opere para cooptar e diluir quaisquer carismas que possam esboçar ameaças, e para esvaziar qualquer associação com a gramática da atividade político-partidária, razão pela qual trata o partido do governo como formalidade necessária e descartável.
Reacionário, move-se para provocar choques institucionais e se robustece a cada vez que o discurso generalizador desqualifica as instituições republicanas. Autocrático, fareja brechas para lucrar com representações quede em materialidade—no caso, sangue—ao espírito do tempo jacobinista segundo o qual Congresso e Supremo seriam colegiados do crime e, logo, os inimigos no caminho do processo purificador que passará o país alimpo.
O projeto de poder lavajatista, aquele que criminalizou o exercício da política, financiou o bolso na ris mo. E ainda terá de pagara conta. Já paga; desde que, eleito Bolsonaro, foi abocanhado pela máquina do governo, a Lava-Jato transformada em Ministério da Justiça. Haveria aí — contratado para o futuro —um conflito de autoritarismos ambiciosos, confronto que o presidente soube neutralizar ao entender que o episódio chamado de Vaza-Jato enfraquecia Moro e sua força-tarefa e os curvava à medida exata do cabresto. É onde estamos. O autoritarismo ingênuo do ex-juiz—erguido sob a crença togada de que tudo poderia —bancou a fé de que teria carta branca no governo de um autoritário cuja constituição populista simplesmente não contempla outras estrelas.
O que será de Moro — um demissível — sem Bolsonaro, o patrão? O presidente conhece a resposta. Não lhe deve ser pouco saboroso saber que detém as rédeas sobre o destino do fusível mais popular do Brasil.
Da parte de quem percebe que a tragédia brasileira, para muito além da recessão econômica, situa-se no aprofundamento de uma depressão política talvez sem precedentes em tempos democráticos, o desafio está em desenvolver uma linguagem que demova signos como ruptura e radicalização do lugar de prazer social em que se encontram. Talvez lembrando que a República do Curto e da Caça não é a melhor apetrechada para gerar empregos. Chega uma hora em que ir à forra contra “tudo isto que está aí” —o sentimento vingativo que fez de Bolsonaro e Moro mito e herói —é ir à forra contra nós mesmos.
Para vencer a mitologia criada pelo ressentimento bolsonarista — cuja instrumentalização do lavajatismo alçou-se ao estado da arte —, a República brasileira precisará conceber um centro capaz de tornar a ideia de equilíbrio, de estabilidade, novamente desejável.
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