sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Míriam Leitão - A incômoda visita da alta dos preços

- O Globo

Há uma distância entre o número da inflação oficial e como ela é sentida pelos brasileiros. No meio de uma recessão, com impacto maior sobre os alimentos, com queda da renda e alta do desemprego, ela pesa muito mais do que os 4,22% dos últimos 12 meses do IPCA-15. Hoje, sairá o IGP-M de novembro e pode superar 3%, como no último mês. Os IGPs estão nas alturas, em torno de 25%, por causa dos preços por atacado. A inflação tem natureza e peso diferentes desta vez. Não existe hora boa para a chegada da inflação, mas agora ela é uma visita ainda mais incômoda.

Em ambiente recessivo, os preços não deveriam subir. Mas já aconteceu recentemente. Em 2015 e 2016, quando houve o descongelamento de tarifas de energia, o índice passou de 10%. Agora, de novo, há vários motivos específicos. Uma forte desvalorização do dólar, o aumento das exportações de alimentos, um descompasso dentro da cadeia produtiva e até uma pressão de demanda em plena recessão. O auxílio emergencial produziu um aumento de renda temporário, mas a maior alta de preços bateu exatamente nos alimentos, que são os itens que mais pesam no orçamento das famílias.

O Brasil viveu no começo deste ano uma maxidesvalorização. Em 31 de dezembro a moeda americana estava cotada em R$ 4,03. No dia 14 de maio, o pior momento, havia saltado para R$ 5,93. Alta de 47% em cinco meses. De lá para cá, caiu para R$ 5,32, mas ainda acumula uma valorização de 32% este ano. O real mais fraco tem o efeito econômico positivo de estimular as exportações, mas também representa aumento de custos para diversos setores. A indústria utiliza insumos, peças e máquinas importadas, e até alguns segmentos dos serviços sentem o efeito. Nos transportes, por exemplo, os combustíveis estão atrelados a preços internacionais. Há setores que reajustam preços sem dó nem piedade, independentemente da baixa demanda. Passagens aéreas dispararam 39% em outubro e mais 3,5% em novembro.

Outra razão da inflação deste ano é o forte salto nos preços por atacado. Em grande parte, reflexo da desvalorização cambial. Hoje, o IGP-M de novembro será divulgado e a projeção é de uma nova alta forte, de 3,3%, segundo a LCA Consultores, acima dos 3,23% de outubro. Os preços agropecuários no atacado devem disparar mais 8,63%, com aumentos no milho, trigo e na soja, que são matérias-primas para outros elos da cadeia de produção de alimentos. Os preços industriais também estão subindo, e a estimativa é de alta de 2,48%.

O Banco Central alegou que era um impacto temporário, concentrado nos alimentos, e que vários países do mundo estavam enfrentando o mesmo problema. Mas as histórias são diferentes de país para país, como mostrou o próprio presidente Roberto Campos Neto em apresentação na última semana. Nos EUA, os alimentos subiram mais de 5% na taxa anual, no pior momento da pandemia. Mas no Reino Unido o aumento não chegou a 2%. Entre oito países emergentes comparados pelo BC, o Brasil neste momento é o mais foi afetado pela inflação de alimentos, com elevação acima de 15%. Na China, subiu muito, mas está desacelerando. No Peru, não passou de 3%. A principal explicação é, de novo, a forte desvalorização do real.

As projeções de mercado apontam inflação na meta para este ano e o próximo, mas os números têm sido revistos para cima, semana após semana. Essa mudança de cenário tem sido encarada pelos economistas como um “vento contrário não esperado”. Se as estimativas aumentarem muito, o Banco Central terá que elevar a Selic, e o mercado de juros já tem mostrado um descolamento entre as taxas mais curtas e as mais longas.

Alguns economistas começam a olhar preocupados para essa inflação que nos visita em hora totalmente imprópria. A renda caiu, mas os preços que mais sobem são de produtos que não se pode deixar de comprar, os alimentos. Como várias indústrias fecharam as portas durante a pandemia, está havendo em plena recessão uma falta de insumos dentro da cadeia produtiva. Na reabertura, as empresas estão produzindo menos porque não querem acumular estoques num cenário de incerteza. E isso faz com que qualquer retomada econômica possa alimentar a inflação.

Essa é uma inflação bem diferente dos outros eventos do passado recente. Acontece num contexto difícil para as famílias e para o governo, que está muito mais endividado. Uma visita realmente incômoda.

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