Em reunião com forças conservadoras em Washington, o presidente foi profético sobre o próprio governo
O
governo de Jair Bolsonaro acaba de comprar mais
um conflito estúpido com a China; ainda não
reconheceu a eleição de Joe Biden nos EUA; acusou
recentemente países europeus de comprar madeira ilegal do Brasil —o
que os tornaria, quando menos, corresponsáveis pelo desmatamento— e é hostil
à Argentina, um dos principais clientes, ainda que em declínio, da
combalida indústria brasileira.
O festejado acordo UE-Mercosul é agora só miragem, e o ingresso do país na OCDE vai ficando mais distante. Bolsonaro é hoje um dos líderes mais isolados no planeta. Em seu rosto, percebem-se laivos de nanico orgulhoso, que não se dobra à grande conspiração contra os homens justos. Não é sem razão que suas honras viris mereceram o reconhecimento de Vladimir Putin.
Em
nota oficial, a embaixada da China reagiu, em termos apropriadamente duros, à
acusação feita por Eduardo Bolsonaro —filho de Jair e presidente da Comissão de
Relações Exteriores da Câmara— de que os chineses pretendem usar a tecnologia
5G para praticar espionagem. O texto lembra que o país governado por Xi
Jinping, a quem o “capitão” claramente se opôs na reunião virtual do Brics,
responde por 33,5% das exportações brasileiras.
Se
não cabia ao Itamaraty pedir desculpas —afinal, não se tratou de manifestação
de governo—, menos apropriado seria reagir com críticas adicionais à China,
como se a nota dura da embaixada representasse uma ofensa ao próprio governo.
Mas foi precisamente o
que aconteceu. O Ministério das Relações Exteriores tomou as dores do filho
do presidente.
Assim,
a família Bolsonaro e o grupo de lunáticos que o cerca —incluindo Ernesto
Araújo, o chanceler— confundem a própria pantomima com a história e os
interesses do país. Os malucos têm uma certeza: a China precisa da soja
brasileira, da carne brasileira, do ferro brasileiro. Logo, não pode advir
desse confronto mal nenhum ao país, e a ameaça de retaliação seria pura
bravata.
Não
ocorre a esses gênios da raça que os chineses não precisam abrir mão das
commodities brasileiras. Causariam um estrago considerável ao agronegócio, e ao
nosso país, se comprassem menos soja, menos carne e menos ferro do Brasil. Até
em briga de rua, no meu tempo de ser moleque, a gente avaliava antes as
consequências de um confronto. A noção de honra, às vezes, a tanto nos
obrigava. Mas nenhum de nós podia fazer mal nenhum a não ser à própria cara.
Esses celerados estão empenhando o futuro do país. Alguma surpresa?
Não.
O Brasil tem uma elite econômica temerária —é claro que há notáveis exceções—,
capaz de flertar com o caos sob o pretexto de salvar o país do demônio. O
“mal”, no caso, segundo essa gente, acaba se confundindo com a cara média do
povo brasileiro, que é meio preta e pode morrer de susto, bala, vício ou asfixia
num hipermercado. Já em 2018 eu me perguntava, e a questão permanece, por
que setores do empresariado e do mercado financeiro imaginavam que Bolsonaro
poderia ser a solução para as suas angústias.
Em
parte, sei a resposta. O ódio à política, liderado pela Lava
Jato, levou pesos pesados do PIB brasileiro a acreditar numa espécie de
purificação mística. Se os “espertos”, na narrativa escatológica então
inventada, haviam criado o país da corrupção e da impunidade, talvez nos
faltassem brutalidade e crueza em estado puro.
E
existia a personagem que encarnava todos esses baixos instintos —tudo aquilo
que a civilização, na verdade, deve reprimir pelo caminho da educação e do
decoro para que a vida em sociedade seja possível. E Bolsonaro chegou lá, com
seu séquito de neófitos arrogantes e truculentos, vocalizando os preconceitos
mais sórdidos sob o pretexto de conjurar, então, as forças do mal que teriam se
entranhado no país.
Em
março do ano passado, numa reunião com forças conservadoras em Washington, o
presidente foi profético sobre o próprio governo: “O Brasil não é um terreno
aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que
desconstruir muita coisa.”
Homem de palavra. Ele está desconstruindo o Brasil.
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