Desde que chegou ao Planalto, a maior interação do presidente com o Congresso foi para abrandar as sanções do Código de Trânsito Brasileiro
Segundo
membros do governo federal, os esforços do Palácio do Planalto em relação à
eleição das novas presidências da Câmara e do Senado têm o objetivo de
fortalecer, na segunda metade do mandato de Jair Bolsonaro, a agenda econômica
do ministro Paulo Guedes no Congresso. O presidente Bolsonaro não tem
contribuído, no entanto, para dar uma finalidade palatável às negociações com o
Centrão. Segundo ele mesmo diz, o que deseja do Congresso não tem nenhuma
relação com qualquer reforma.
No
evento de reinauguração da Torre do Relógio da Ceagesp, Jair Bolsonaro deixou
claro o que tem em mente quando pensa na agenda do Congresso. “Se Deus quiser,
com as novas presidências da Câmara e do Senado nós vamos botar em pauta o
excludente de ilicitude”, disse.
No
ano passado, o Congresso rejeitou o pedido de Jair Bolsonaro para ampliar as
hipóteses de excludente de ilicitude previstas na lei. Segundo o artigo 24 do
Código Penal, “não há crime quando o agente pratica o fato em estado de
necessidade, em legítima defesa e em estrito cumprimento de dever legal ou no
exercício regular de direito”. A proposta do Executivo pretendia ampliar o
alcance do artigo, estabelecendo que também não há crime quando os excessos
cometidos por um agente policial “decorrerem de escusável medo, surpresa ou
violenta emoção”.
Não há como se deixar enganar a respeito das prioridades do presidente da República. Jair Bolsonaro nunca menciona nenhuma reforma que de fato possa contribuir para o desenvolvimento social e econômico do País. Ele não defende, por exemplo, a realização das reformas tributária e administrativa. Elegeu-se com a promessa de renovar a política, mas até aqui não fez nenhum movimento a favor de uma reforma política.
É
chocante a desconexão de Jair Bolsonaro com a realidade. O mundo inteiro viveu
um ano de 2020 extremamente difícil, em razão da pandemia de covid-19. Além dos
inúmeros desafios relacionados à saúde da população, o novo coronavírus expôs e
agravou muitos desafios sociais e econômicos. Ao referir-se à agenda do
Congresso em 2021, era de esperar uma mínima referência às questões fiscal e
social. É urgente, por exemplo, reorganizar, diante das novas circunstâncias,
as políticas e programas sociais.
No
entanto, nada disso parece ocupar ou preocupar Jair Bolsonaro. Seu objetivo,
com as novas presidências da Câmara e do Senado, é ampliar as hipóteses em que
policiais não serão punidos em razão de condutas ilegais. O caso nem sequer tem
relação com melhoria da segurança pública, uma vez que se trata de ampliar a
impunidade de praticantes de ações ilegais. Fez bem o Congresso no ano passado
em rejeitar a proposta de ampliação do excludente de ilicitude.
A
aprovação de reformas estruturantes, como a tributária e a administrativa, bem
como a PEC Emergencial e a lei orçamentária, é uma tarefa política árdua.
Propostas legislativas equilibradas, que de fato promovam avanços nessas
matérias, interferem em privilégios concedidos a grupos organizados
politicamente. Os últimos dois presidentes reformistas, Fernando Henrique
Cardoso e Michel Temer, conheceram de perto as dificuldades e as tensões
relacionadas à realização de reformas arrojadas.
Se
esse foi o cenário encontrado por governos que de fato fizeram das reformas as
suas prioridades, é preciso reconhecer que são remotíssimas as possibilidades
de aprovação de alguma reforma relevante nos próximos dois anos. A ter em conta
o interesse que Jair Bolsonaro manifesta pelo assunto, seria um verdadeiro
milagre que isso ocorresse.
Sem
nenhum recato, Jair Bolsonaro diz ao País que, nos próximos dois anos, sua
prioridade será atender a interesses específicos de alguns segmentos que o
apoiam eleitoralmente. É o que se pode chamar do mais genuíno espírito
antirreforma – exatamente como se viu em 2019 e 2020 e exatamente como se viu
ao longo dos quase 30 anos em que foi deputado federal.
Desde
que chegou ao Palácio do Planalto, a maior interação de Jair Bolsonaro com o
Congresso foi para abrandar as sanções do Código de Trânsito Brasileiro. A
tanto vão suas prioridades e suas preocupações com o País.
Investimento
direto continua suficiente para o momento, mas está muito arisco
Essa
conta resume o intercâmbio do Brasil com o exterior. Inclui o comércio de
mercadorias, a balança de serviços e o movimento de rendas. O País é
tradicionalmente superavitário na balança comercial, mas as contas de serviços
e rendas são em geral fechadas no vermelho. O resultado geral tende a ser
negativo. Com a pandemia, o distanciamento social e as mudanças no consumo, o
conjunto ficou menos desequilibrado.
O
buraco em transações correntes diminuiu de US$ 52,2 bilhões nos 12 meses até
novembro de 2019 para US$ 12,1 bilhões nos 12 meses seguintes. O déficit foi
financiado com grande folga, como tem ocorrido há vários anos, embora o
investimento direto tenha caído, entre esses períodos, de US$ 74,6 bilhões para
US$ 36,2 bilhões. O capital ficou mais arisco, mas continuou mais que
suficiente para o fechamento das contas externas.
Com
a pandemia, diminuíram as necessidades de financiamento das transações
correntes. A crise no exterior, especialmente nos vizinhos sul-americanos,
derrubou as exportações brasileiras, mas a recessão e a mudança de hábitos de
consumo impuseram uma queda maior às importações. Pelas contas
do BC, o Brasil exportou neste ano, até novembro, produtos no valor
de US$ 192,3 bilhões, 7,2% menor que o de um ano antes. O total importado, de
US$ 147,9 bilhões, foi 14% inferior ao de janeiro a novembro de 2019.
Com
menos viagens e menos gastos com fretes, entre outras mudanças, o déficit em
serviços caiu de US$ 31,5 bilhões para US$ 18,8 bilhões. Na conta de renda
primária, onde se alojam, além de outros itens, a remessa de lucros e
dividendos, o saldo negativo passou de US$ 51,2 bilhões para US$ 35,1 bilhões.
Assim, o déficit em transações correntes diminuiu de US$ 46 bilhões em
janeiro-novembro do ano passado para US$ 7,5 bilhões em 2020.
As
mudanças ficam mais notáveis quando se examina a evolução mensal. Em novembro,
as transações correntes, com resultado positivo de US$ 202 milhões, foram
superavitárias pela sétima vez em oito meses. Um ano antes o saldo havia sido
um déficit de US$ 3,1 bilhões. Com menor desequilíbrio, as necessidades de
financiamento diminuíram consideravelmente.
Em
setembro, em discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair
Bolsonaro mencionou um aumento do investimento direto, no primeiro semestre, em
relação a um ano antes. “Isso comprova a confiança do mundo em nosso governo”,
disse ele. Mas de fato o investimento diminuiu de US$ 32,2 bilhões nos
primeiros seis meses de 2019 para US$ 25,3 bilhões um ano depois.
O
capital fugiu do Brasil, espantado pela ação antiambientalista do governo e por
outros erros políticos e diplomáticos. Um dos efeitos dessa fuga foi a enorme
desvalorização do real. No fim de outubro, quando o dólar chegou a R$ 5,74, só
as moedas de Zâmbia e do Suriname acumulavam desvalorizações maiores que a da
moeda brasileira.
Apesar
disso, as aplicações em portfólio, como fundos de investimento, cresceram nos
seis meses até novembro. Com o dólar tão valorizado no Brasil e tanto dinheiro
rodando no mudo rico, alguma incursão no Brasil pode ser tentadora. Em onze
meses, no entanto, as saídas líquidas chegaram a US$ 14,8 bilhões (US$ 2,4
bilhões no ano anterior). É uma estranha demonstração de confiança.
Brasil-China: estratégias de longo prazo – Opinião | O Estado de S. Paulo
Estudo
aponta caminhos para corrigir assimetria estratégica entre os dois países
“A China tem uma estratégia para o Brasil, mas o Brasil não tem uma estratégia para a China.” Este lugar comum no ambiente das relações sino-brasileiras reflete, por um lado, um contraste estrutural entre o modelo centralizado e dirigista chinês e uma república federativa e democrática, como o Brasil, e, por outro, certo comodismo e individualismo conjunturais dos brasileiros: a ascensão econômica da China coincidiu com o boom das commodities, e os setores produtivos brasileiros se concentraram em maximizar ganhos no comércio e investimentos.
Mas
a China tem expandido sua influência muito além do comércio e investimento.
Cada vez mais ela participa ativamente das instituições globais, e seu impacto
potencial sobre os grandes vetores de crescimento do século 21, a integração
dos serviços à indústria e a economia digital, é imenso.
Visando
a corrigir a assimetria estratégica entre Brasil e China, o Conselho
Empresarial Brasil-China (CEBC) encomendou à economista Tatiana Rosito,
profunda conhecedora da China, onde representou o Brasil como diplomata, um
estudo sobre uma Estratégia de
Longo Prazo do Brasil para a China.
Qualquer
estratégia ante um “capitalismo de Estado” – e um Estado ditatorial – deve ser
capaz de distinguir, sem separar, e unir, sem confundir, interesses econômicos
comuns e afinidades ou divergências políticas. “A crescente e emblemática
inter-relação entre economia e segurança nacional oferece contornos
institucionais à disputa China-EUA e ajuda a disseminá-la para o resto do
mundo”, diagnostica Rosito. “É muito possível que se conviva com um decoupling em
setores relacionados à segurança nacional ou tecnologias duais, em paralelo a
uma continuada integração comercial e financeira da China com o mundo,
especialmente na área de serviços.”
Como
notou o embaixador Luiz Augusto de Castro Neves, a relação sino-americana,
excetuada a disputa por hegemonia tecnológica, permanece positiva na maioria
dos campos, sobretudo o econômico, comercial e financeiro. Assim, em contraste
com o jogo de “soma zero” da guerra fria, no mundo contemporâneo globalizado e
multipolarizado, em que interesses diversos se entrelaçam, “não se trata de
alinhar-se a um ou outro lado”, mas de “identificar o interesse nacional e
definir os objetivos estratégicos com vistas à sua consecução”.
No
caso da relação sino-brasileira, dadas as suas complementaridades e
assimetrias, Rosito entende que “a China desponta cada vez menos como
competidora e ameaça e cada vez mais como referência e oportunidade”.
Fortalecer a base dessa relação, o comércio agrícola, garantindo a devida
centralidade e previsibilidade a seus aspectos comerciais, de sustentabilidade
e segurança alimentar, é fundamental. Mas o Brasil não tem logrado implementar
diversificação e agregação de valor à pauta das exportações.
O
estudo aponta três caminhos: intensificar as relações com o mercado chinês
(inclusive mediante o e-commerce) e a descoberta de novos nichos; adoção
de tecnologias ou de partes das cadeias de produção que deixarão a China; e
combinar importação de commodities industriais chinesas com agregação
de valor para a exportação ou o consumo no Brasil. Uma agenda na área de
infraestrutura, por sua vez, demandará soluções a desafios como a mitigação de
assimetrias de informação, aproximação da matriz de riscos e criação de
ambiente favorável.
Em
meio a crescentes incertezas internacionais, a fluidez do diálogo político e as
sinalizações claras aos investidores são desafios que não podem se restringir
ao setor público, mas devem ser compartilhados pelo empresariado, universidades
e terceiro setor. Se vencê-los se mostra um objetivo quase quimérico ante o
governo de turno, as instituições da República e a sociedade civil estão aí
para exercer seus freios e contrapesos. Ademais, esse governo passará: a
relação entre as duas nações tem raízes profundas demais no passado, e
perspectivas amplas demais de frutos no futuro, para que as políticas de Estado
e estratégias de longo prazo sejam condicionadas por ele.
O ritmo das privatizações é decepcionante – Opinião | O Globo
Dos
64 leilões previstos para 2020, só 18 foram realizados. Bolsonaro não vendeu
nenhuma estatal
No
início do governo Bolsonaro, o ministro Paulo Guedes falava para quem quisesse
ouvir que as privatizações renderiam R$ 1 trilhão. O plano era ambicioso,
envolvia mais de 200 concessões e vendas de empresas estatais, começando logo
nos primeiros meses por Eletrobras, Correios e Porto de Santos. Guedes
planejava inaugurar uma nova era de dinamismo nos investimentos, necessários
para suprir as deficiências brasileiras na infraestrutura e fazer deslanchar o
crescimento econômico.
Passados
dois anos, a realidade é, por assim dizer, bem mais modesta. Nenhuma estatal
controlada pelo governo foi privatizada. A venda de Eletrobras e Correios
continua empacada no Legislativo. Casos triviais, como Casa da Moeda e Ceagesp
(centro de distribuição em São Paulo), esbarraram na resistência ideológica do
estatista-em-chefe, o presidente Jair Bolsonaro.
De
acordo com dados do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), houve em 2019
um total de 36 leilões, a maioria nas áreas de óleo e gás. Dos 64 projetos de
desestatização esperados para 2020, apenas 18 estavam concluídos até a semana
passada (incluindo a liquidação de uma empresa, o Ceitec).
Concessões,
privatizações e parcerias com o setor privado são o melhor caminho para atrair
investimentos necessários para acelerar o crescimento. Em 2019, o setor público
destinou menos de 0,5% do PIB a projetos de infraestrutura, a menor fração
entre 21 países latino-americanos. O resultado deste ano ficará aquém disso, em
virtude do choque da pandemia e da crise fiscal crônica. De onde virá o capital
para investir, senão da iniciativa privada?
Ainda
estão nos planos do governo 213 projetos, entre eles 22 rodovias, 13 ferrovias,
38 portos, 16 linhas de energia, 4 concessões de óleo e gás e 40 aeroportos.
Sem contar a quinta geração da telefonia celular (5G), cujo edital também
esbarra na resistência ideológica de Bolsonaro à tecnologia chinesa, melhor e
mais barata. A meta da equipe econômica para 2021 chega a 129 leilões, contando
Eletrobras, Correios, 22 aeroportos e a Ferrovia Leste-Oeste e vários outros
prometidos para 2020 que não aconteceram. A estimativa é atrair R$ 371 bilhões
em investimentos (só no leilão do 5G, R$ 20 bilhões). O governo também quer
vender R$ 110 bilhões em imóveis até 2022.
No
papel, tudo parece lindo. Na hora de tornar o plano realidade, o jogo é outro.
Resistências ideológicas e corporativas são previsíveis. Mas o Brasil já tem um
histórico de sucesso suficiente para encerrar as discussões primitivas. Basta
lembrar o êxito das vendas da Vale e do sistema Telebras. Ambas resultaram de
vitórias políticas.
É
lamentável que um governo que assumiu o poder com um programa liberal e um
projeto ambicioso de desestatização tenha feito tão pouco. Pelo que Bolsonaro
tem dito sobre a Casa da Moeda e a Ceagesp, está claro que ele também não
aprendeu as lições de Paulo Guedes. Não se sabe se a culpa é do aluno ou do
professor.
STF
restabelece sensatez ao manter ensino inclusivo na educação especial – Opinião |
O Globo
Supremo
derruba decreto de Bolsonaro que ia na contramão da prática de maior sucesso
Teve
vida breve o decreto nº 10.502 do presidente Jair Bolsonaro, que criou a Nova
Política Nacional de Educação Especial. Em julgamento no plenário virtual, o
STF confirmou, por nove votos a dois, a decisão liminar do ministro Dias
Toffoli que, em 1º de dezembro, suspendera a medida.
Lançada
em 30 de setembro, a nova política ampliou o número de vagas para alunos com
deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou
superdotação. Parecia uma medida sensata, mas, como pontuou Antonio Carlos
Sestaro, presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de
Down, “nas doces palavras desse decreto, está o veneno amargo da exclusão”.
Nas
entrelinhas, a decisão de Bolsonaro incentivava matrículas nas escolas
especializadas, em detrimento do ensino regular inclusivo, prática adotada
desde 2008 com bons resultados. Naquele ano, 54% dos alunos com deficiência
estavam matriculados em escolas comuns. Hoje são quase 90%. O ministro Milton
Ribeiro alegou que o objetivo era oferecer opções às famílias para que escolhessem
“as alternativas mais adequadas ao atendimento educacional especializado”.
Entidades do setor entenderam que era uma forma disfarçada de promover a
exclusão das crianças com deficiência.
No
julgamento da ação de inconstitucionalidade proposta pelo PSB, o ministro Dias
Toffoli ressaltou que o decreto “pode subsidiar políticas públicas que venham a
fragilizar o imperativo da inclusão”. Votaram com o relator os ministros
Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo
Lewandowski, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. Votaram contra os ministros
Marco Aurélio Mello e Nunes Marques.
Como
guardião da Carta, o STF restabelece a sensatez na política educacional para
crianças com deficiência. Não há dúvida de que o decreto de Bolsonaro
representava um retrocesso em relação às conquistas por um ensino mais
inclusivo, que promove o convívio de todas as crianças no mesmo ambiente, independentemente
de suas diferenças. Acima de tudo, afrontava a Convenção da ONU sobre Direitos
das Pessoas com Deficiência, que ganhou status de emenda constitucional ao ser
ratificada pelo Congresso em 2008, e a Lei Brasileira de Inclusão, de 2015.
O
Brasil tem sérias lacunas na educação, principal entrave a nosso
desenvolvimento. O governo não parece preocupado com isso — em dois anos,
Milton Ribeiro é o quarto ministro a ocupar a pasta. Seria absurdo mudar uma
política de educação especial que há mais de uma década dá certo. É bem-vinda
qualquer proposta de ampliar o número de vagas para crianças com deficiência,
desde que não esteja contaminada pelo vírus da segregação.
A década polar – Opinião | Folha de S. Paulo
Período
de 2011 a 2020 foi caracterizado por retrocessos na governança política
Será
tarefa dos historiadores no futuro situar a segunda década do século 21, que se
encerra, em movimentos de prazo mais longo. Com a percepção ainda sequestrada
pela temperatura dos fatos, o que se esboça agora é um quadro preocupante —para
o mundo e o Brasil.
Apesar
de a década anterior ter terminado sob impacto de um abalo financeiro global, o
período seguinte se iniciou sob certo otimismo. Parcela significativa da
humanidade fora resgatada da pobreza, e os pressupostos da boa governança política
pareciam disseminados.
Havia,
no entanto, uma substância ácida corroendo essas estruturas. Conforme seu
efeito se acumulava, os vultos da intolerância, do autoritarismo, do
obscurantismo e da irresponsabilidade na esfera pública foram se
alevantando.
Práticas
antes típicas de Estados exóticos e falidos foram ganhando o proscênio até de
algumas democracias bastante consolidadas.
Em
lance que antes soaria a realismo fantástico, uma ligeira maioria de eleitores
em transe desinformativo decidiu em 2016 que o Reino Unido deveria abandonar a
União Europeia. A nação que inventou o livre comércio e enriqueceu com ele
resolveu dinamitá-lo para o prejuízo, principalmente, das próximas gerações de
britânicos.
No
mesmo ano, um bilionário neófito, abraçando uma agenda reacionária e populista,
arrebatou o Partido Republicano e depois a Presidência dos Estados Unidos. A
sua derrota na tentativa de reeleger-se no mês passado representa alívio, mas
seria ingênuo acreditar que as energias nefastas que Donald Trump encarna
sumiram da arena pública norte-americana.
Sob
Xi Jinping, a ditadura chinesa despiu-se de mecanismos organizacionais que
propiciavam alguma circulação de lideranças no seio do Partido Comunista e
ganhou contornos de mando pessoal. Na Alemanha, centro-esquerda e
centro-direita se unem num esforço descomunal para deter os neofascistas.
Esse
retrocesso iliberal também
atingiu o Brasil. Após curto-circuito nos partidos estabelecidos,
governa o país um político excêntrico com personalidade autoritária e rematada
incompetência política e administrativa. As instituições forcejam —por ora com
sucesso, mas não sem custos— para mantê-lo nos limites da Constituição.
Como
se vê, o veneno da polarização tribal e irracional se espalhou por todos os
cantos na década prestes a terminar, para o que foi sobejamente auxiliado
pela lógica
sectária das redes sociais.
Mas
os problemas concretos, como mostra a pandemia, teimam em lembrar a todos que
há obstáculos bastante objetivos ao progresso da humanidade. Superá-los com as
forças das trevas que surgiram será simplesmente impossível.
Risco
à cultura – Opinião | Folha de S. Paulo
Atraso
do governo na aprovação de projetos com incentivo gera justa apreensão
É
conhecida a animosidade do presidente Jair Bolsonaro e de seu séquito de
radicais contra o meio cultural. Avesso ao esclarecimento, à ciência e ao livre
pensamento, o governo federal tem se desdobrado em nomeações e medidas que
visam a obstruir a atividade cultural, intervir em seus conteúdos e
estigmatizar seus representantes.
Desde
a campanha eleitoral de 2018, o bolsonarismo moveu campanha contra a Lei
Rouanet, que permite a isenção parcial de tributos de empresas que destinem os
recursos à produção artística.
Não
se tratava de aperfeiçoar os mecanismos, o que seria aceitável e, em certos
aspectos, necessário, ou de repensar a questão no contexto mais amplo das
renúncias fiscais que se concedem a setores os mais diversos da economia.
Falava-se,
no linguajar característico dos extremistas de redes sociais, em “acabar com a
mamata”, que ofereceria farto dinheiro público a a artistas famosos.
Muitos
dos citados, aliás, jamais recorreram ao dispositivo. A motivação era
ideológica e visava atingir um meio em grande parte refratário às propostas de
Bolsonaro e identificado como propagador do “marxismo cultural”, uma fantasiosa
articulação global para promover o comunismo.
O
governo conseguiu, de fato, introduzir algumas alterações na Rouanet (a
principal a redução do limite de recursos) e mudou seu nome para Lei de
Incentivo à Cultura.
Em
linhas gerais, o propósito e os mecanismos básicos foram mantidos, o que
impediu a paralisação de inúmeras instituições públicas, como museus, que se
beneficiam do patrocínio empresarial.
Agora,
proponentes de projetos nas áreas de teatro, dança, artes visuais e economia
criativa temem que a Secretaria Especial da Cultura simplesmente deixe de
aprovar suas propostas a tempo, o que poderia acarretar a perda de patrocínios
já encaminhados.
Segundo
a Folha apurou, mais de 200
projetos encontravam-se parados até 17 de dezembro no gabinete
do secretário de Fomento, André Porciúncula. O prazo para que o capitão da
Polícia Militar que ocupa o cargo assine as autorizações esgota-se no dia 30
deste mês.
Dado o histórico, justifica-se o clima de apreensão no setor, que vê na mudança de perfil de funcionários da secretaria um sinal de que se retoma por caminhos tortos —como o da letargia decisória— a intenção inicial de investir contra o incentivo à cultura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário