2021
há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que
perdemos
O
ano de 2020 termina com a tragédia instalada: somente no Brasil são quase 8
milhões de infectados, os mortos os mortos se aproximando de 200 mil. A
situação calamitosa, que impulsionou as vacinas para o primeiro plano, deixou
patente a incompetência generalizada do governo federal, que assistiu com
escárnio, indiferença e passividade à disseminação do vírus.
A
gestão do general Pazuello no Ministério da Saúde limitou-se a reverberar as
posições do presidente. Não se preocupou em elaborar tempestivamente um plano
de imunização. Um ministério militarizado, distante dos profissionais da área e
de seus conhecimentos, distante até mesmo da capacidade logística sempre
lembrada como virtude dos militares.
Somente no final do ano, quando a pandemia repicava com força, o ministério saiu da letargia e apresentou um plano. Elaborado às pressas e repleto de indefinições. O próprio presidente, que ensaiou posar de conciliador, continuou a vociferar contra a vacinação, chegando ao absurdo de sugerir que os vacinados poderiam converter-se em “jacarés”. Liberou seus seguidores para a divulgação de insanidades seriais. Uma enxurrada de boçalidades caiu sobre os brasileiros, minando sua confiança e sua concentração. Como estaremos depois das festas e dos ritos do verão?
Medo,
angústia, insegurança infiltraram-se pelos poros da sociedade. O vírus revelou
a fragilidade humana perante suas próprias criações, fez o ruim ficar péssimo.
Sem instâncias de coordenação, o desentendimento se alastrou, com um cortejo de
horrores. O choque de “narrativas” reforçou os polos entre os quais nos
agitamos. Demos de cara com nossas chagas sociais, com a marginalização, a
segregação, a precariedade existencial de tantos brasileiros.
A
pandemia se encontrou com uma sociedade que já sofria com a pauperização, a
fragmentação, a perda de direitos, um governo que cria inimigos artificiais,
mas se acovarda diante de inimigos reais.
Entraremos
em 2021 com dúvidas e indefinições. Não se sabe quantas doses de imunizante
estarão à disposição, de que laboratórios virão, quando começará a campanha e
até quando ela se estenderá. Não há cronograma nem indícios de planejamento, o
que significa que o processo poderá ressentir-se da falta de controles
fundamentais quando se mexe com vacinas complexas, a serem aplicadas em duas
doses espaçadas no tempo. Desperdiça-se a consagrada expertise brasileira
em imunizações.
Enquanto
não houver vacinação em massa a vida não voltará ao “normal”, a economia não se
recuperará, a desigualdade continuará a se aprofundar, o País irá se
inviabilizando, com menos chances de entrar nas cadeias de valor e nos fluxos
da inovação tecnológica do nosso tempo.
Um
ano de pandemia e confinamento, mesmo que seletivo, marcará a vida dos
brasileiros. Mexerá com sua psique, com seu imaginário, com o modo como
organizam as atividades, trabalham, consomem e educam os filhos. As crianças e
os jovens são um capítulo à parte, alijados da escola, das interações afetivas,
das amizades. Que adultos se tornarão depois dessa experiência dolorosa? Com
que gap educacional?
Os
brasileiros não abraçaram o distanciamento social como deveriam. Não puderam
fazê-lo, acossados pelas exigências do emprego, da busca de renda. Muitos não
souberam e não aceitaram. Parte da população deixou-se levar pelo discurso
presidencial, pela agitação dos bolsonaristas de plantão, pregadores da
ignorância. Tudo ajudou a que o povo extravasasse o desejo de se aglomerar.
Enquanto os mais pobres foram às ruas para trabalhar, os mais ricos encheram
bares, shoppings e restaurantes.
O
tamanho da tragédia sanitária corresponde ao tamanho da tragédia política que
se abateu sobre os brasileiros. Ausência de governo sempre produz caos. Pior
ainda quando um governo que não governa insiste em pregar a desunião, ataca
instituições, repete à exaustão uma narrativa doentia, sustentada pela burrice,
pela provocação barata, pela agressividade. Os três Poderes da República não se
entendem, a Federação não funciona, há pouca coesão, os brasileiros estão
desorientados e confusos.
Chegamos
ao fim do ano sentindo a falta que faz um governo que garanta vidas, direitos,
boas políticas. O ano também foi de ausências: da voz das ruas e dos
democratas, da sua capacidade de se opor aos desmandos do poder e de dar um
“basta” aos arroubos criminosos do presidente.
Andamos,
porém, em pista de mão dupla: as eleições municipais produziram fatos e novas
lideranças, um clima de entendimento político emergiu da disputa pela
presidência da Câmara dos Deputados, Trump foi derrotado, a ciência está
vencendo a covid.
Por
certo aprendemos algo em 2020, conhecemos melhor nossos limites e imperfeições.
Não vamos recomeçar do zero, nem desprezar o patrimônio que acumulamos à custa
do esforço de um povo dedicado, sofrido, que sabe arrancar a vida pela raiz.
Que
venha, pois, o ano novo. Ele há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para
recuperar o terreno que perdemos nos desvios perversos da História.
*Professor Titular de Teoria Política da Unesp
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