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O Globo
Além
do erro primário de ter deixado para comprar vacinas de última hora, ficando
exposto à vontade do vendedor e do mercado mundial, o Palácio do Planalto,
justamente por desdenhar a vacinação em massa como solução para a pandemia de
Covid-19, deixou de planejar ações, não apenas de logística, mas também
geopolíticas, que nos levaram a ser um país pária num mundo globalizado, quer
queiram os Bolsonaros da vida ou não.
Estamos diante de um quadro de isolamento nunca antes enfrentado, com agentes
públicos desqualificados para superá-lo. O ministro da Economia, Paulo Guedes,
que a cada dia se encolhe mais, acabou contagiado pela mediocridade do governo
que pretendia controlar no seu superministério.
O tratamento dado à China no governo Bolsonaro é ridículo, para dizer o menos.
Assumimos uma guerra que não é nossa, é dos Estados Unidos, passamos a dar
estocadas no nosso maior parceiro comercial e segunda economia do mundo,
consumidora voraz de commodities, que já começou a retaliar. Aumentou em 300% a
importação de soja dos Estados Unidos e reduziu a do Brasil.
Outras retaliações virão, e é impressionante que um técnico bem formado como
Guedes se deixe levar pela idiossincrasia do presidente em relação ao comunismo
chinês, desqualificando a vacina chinesa contra a Covid-19 para enaltecer o
poder da livre-iniciativa americana, que teria produzido uma vacina mais eficaz
que a chinesa.
Acontece que a vacina da Pfizer não é americana, mas alemã, e o Brasil quase só
tem a CoronaVac para vacinação interna — apenas 20% das doses são da
Oxford/Astrazeneca . Por si, seria razão suficiente para um governo normal ter
cuidados especiais com esse parceiro tão importante. Guedes pediu desculpas
devido à reação diplomática da China, que tem em suas fábricas o insumo
necessário para a fabricação da vacina no Instituto Butantan, em São Paulo, e
na Fiocruz, do Rio.
Até o momento, a maioria dos brasileiros não pode viajar porque ser brasileiro,
hoje, virou motivo para bloquear a entrada na maioria dos países do mundo, especialmente
na Europa e nos Estados Unidos. Quando a situação se normalizar, só os
felizardos que tiverem a sorte de se vacinar com a AstraZeneca poderão viajar
para a Europa, mas não para os Estados Unidos, que só aceita as vacinas da
Moderna e da Jansen, americanas, e da Pfizer, alemã.
Essas são questões de geopolítica que deveriam estar sendo analisadas desde o
início da pandemia. O governo Trump, negacionista como o de Bolsonaro, não
deixou de comprar vacinas em abundância, mais até do que a necessidade da
população dos Estados Unidos, e agora está distribuindo doses da vacina para
países necessitados, mas o Brasil não está nessa primeira leva.
A solidariedade internacional com a Índia, que vive uma crise humanitária de
proporções inéditas, é muito maior do que com o Brasil, mesmo o
primeiro-ministro Narendra Modi sendo um político direitista que idolatrava
Trump. Mas, ao contrário de Bolsonaro, não foi ingênuo a ponto de não
cumprimentar o presidente eleito Joe Biden.
A Índia também tem uma importância na geopolítica internacional que o Brasil
não tem, o que não recomenda uma política externa maniqueísta e não pragmática.
Não há como não admitir que, nessa geopolítica internacional, países como o
Brasil precisam se impor por seu soft power, que no nosso caso é muito bem
representado pela cultura — música, cinema, futebol — e passou a ser um
instrumento fundamental de nossa política externa, explorado na atuação exitosa
de nossas Forças Armadas nas missões de paz da ONU.
Um governo cheio de generais que comandaram as Forças brasileiras nas missões
das Nações Unidas para estabilização do Haiti já deveria ter entendido que a
posição do Brasil no mundo depende de fortalecermos nossas vantagens
comparativas, como deveríamos fazer no meio ambiente, e não na confrontação.
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