EDITORIAIS
O contrato nebuloso da Covaxin
O Globo
São conhecidas as declarações do presidente
Jair Bolsonaro questionando a eficácia das vacinas. Também não é segredo a
falta de disposição de seu governo para comprá-las, que levou o país a uma
escassez crônica de doses num momento de escalada da pandemia. Por isso mesmo,
chama a atenção o empenho súbito de Bolsonaro para trazer a indiana Covaxin,
produzida pelo Laboratório Bharat Biotech e intermediada pela Precisa
Medicamentos. É a mais cara entre todas as vacinas contratadas (custa R$ 80,70
a dose, o quádruplo da Oxford/AstraZeneca, que sai por R$ 19,87).
Impressiona a diferença de tratamento em
relação aos imunizantes. Como mostrou o Jornal Nacional, o governo brasileiro
levou 330 dias para fechar o contrato com a Pfizer e apenas 97 para contratar
20 milhões de doses da Covaxin, por R$ 1,6 bilhão. Ao contrário dos outros
casos, o negócio não foi feito diretamente com o laboratório, mas com um
intermediário, a Precisa. Bolsonaro se empenhou pessoalmente para fechar o
negócio, enviando carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi.
São intrigantes as questões que persistem
sobre o preço. Reportagem do Estado de S.Paulo mostrou que o governo comprou a
Covaxin por valor 1.000% acima do estimado pelo laboratório em agosto de 2020
(os R$ 80,70 corresponderam a US$ 15, ante US$ 1,34 pedido na ocasião). Não é
apenas o custo que levanta suspeitas. Um funcionário do Departamento de
Logística do Ministério da Saúde relatou ao Ministério Público Federal pressões
atípicas no processo da Covaxin.
É evidente que a compra de vacinas, fundamental para controlar a pandemia, não está imune a pressões. A farmacêutica União Química, que tem acordo com o Instituto Gamaleya para produzir no Brasil a russa Sputnik V, conta com forte lobby no Congresso. A despeito disso, a compra da vacina pelo Ministério da Saúde (10 milhões de doses) está travada porque os desenvolvedores ainda não conseguiram fornecer a documentação exigida pela Anvisa. Recentemente, a agência autorizou a compra emergencial pelos estados, mas para apenas 1% da população.
Depois de um ano e quatro meses, percebe-se
que a pandemia abriu as portas à corrupção. O grande volume de recursos e a
dispensa de licitação em virtude da urgência indiscutível das ações criaram
condições favoráveis a malfeitos. Não são poucos os contratos para comprar
respiradores ou construir hospitais de campanha com suspeitas de sobrepreço ou
desvio de verbas. Vários estão sob investigação da Polícia Federal, do
Ministério Público e da CPI da Covid. No Rio, denúncias de corrupção na
pandemia levaram ao impeachment do ex-governador Wilson Witzel.
Ninguém tem dúvida de que o Brasil precisa
de vacinas. Mas a urgência não pode servir de pretexto para contratos nebulosos
como o da Covaxin. Não é razoável que o Brasil pague pela vacina indiana um
valor maior que o de todas as outras contratadas. Dizer que os recursos não
foram ainda desembolsados não atenua a gravidade da suspeita. Faz bem o MPF ao
pedir apuração na esfera criminal. É essencial que os caminhos labirínticos
dessa negociação sejam esclarecidos. A CPI e o Ministério Público terão
importante papel na investigação. Qualquer passo em falso nessa trajetória
carrega o peso de mais de 500 mil vidas perdidas.
O que o Senado precisa aperfeiçoar na Lei
de Improbidade Administrativa
O Globo
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(DEM-MG), afirmou que é preciso debater “com calma” a nova Lei de Improbidade
Administrativa, recém-aprovada em regime de urgência na Câmara. O clima no
Senado é distinto daquele que levou, entre os deputados, à votação avassaladora
em favor de mudanças na legislação, por 408 votos a 67.
Vários senadores acreditam, não sem razão,
que a legislação brasileira é leniente demais com crimes cometidos por
políticos e consideram que a versão aprovada na Câmara contribui para torná-la
ainda mais permissiva. É certo, por isso, que o texto enfrentaria percalços no
Senado, daí a cautela de Pacheco. Não se trata, contudo, de uma notícia
necessariamente ruim.
É mesmo preciso que o país aperfeiçoe a
legislação que lida com desvios, enriquecimento ilícito ou recebimento de
vantagens indevidas por parte de agentes públicos. A lei atual tem sido usada
de modo abusivo para punir meros erros administrativos. Funciona como um
repelente que afugenta bons gestores de postos no governo onde a competência
deles poderia ser fundamental. Também inibe práticas inovadoras e a agilidade
nas decisões, já que qualquer equívoco poderá depois vir a ser julgado
improbidade nos tribunais. A lentidão de decisões na atual crise sanitária
mostrou que isso tem de mudar.
Mas o texto aprovado na Câmara, embora
torne o serviço público menos arriscado para aqueles que temem ser processados
apenas por cometer erros, peca por exageros na direção oposta, que o Senado tem
o dever de consertar. O principal diz respeito à extensão das penas pelos
crimes cometidos. Os deputados agravaram as penas máximas, como a suspensão de
direitos políticos. Esqueceram-se apenas de estabelecer penas mínimas — falha
grosseira, já que são elas o maior fator dissuasivo contra crimes.
Os senadores também precisam definir com
mais precisão certas mudanças que, embora necessárias, podem abrir brechas para
a impunidade. É o caso do prazo de prescrição dos crimes, estabelecido como
oito anos a partir da data da infração. Ou dos 180 dias concedidos aos
inquéritos que apuram os desvios. Ambos os limites abrem flancos que bons
advogados saberiam aproveitar para seus clientes ficarem impunes.
Mesmo que crie dificuldades para as
autoridades que investigam crimes, é correta a principal mudança na lei, a
exigência de comprovação de dolo, para que o gestor não seja punido apenas por
decisões que deram errado. A legislação brasileira dispõe de vários outros
instrumentos para combater os corruptos, como a Lei Anticorrupção ou a Lei das
Organizações Criminosas. O mais difícil na luta contra a corrupção, nestes
últimos tempos, não tem sido a falta de lei. Tem sido a leniência de juízes, em
particular da ala garantista do Supremo Tribunal Federal, que têm se recusado a
aplicá-las, mesmo diante de evidências eloquentes.
O presidente nervoso
O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro mais uma vez
agrediu um jornalista que estava no exercício de sua profissão. Bolsonaro
estava em um evento militar em Guaratinguetá (SP) quando foi questionado por
uma repórter de uma afiliada da TV Globo sobre o fato de ter sido multado em
São Paulo por não ter usado máscara numa manifestação.
Era uma pergunta pertinente,
considerando-se o fato de que o presidente é o chefe de Estado e, como tal,
deveria ser o primeiro a dar o exemplo, adotando a proteção facial,
comprovadamente eficiente para reduzir o risco de contaminação, num país que
poucos dias antes atingira a terrível marca de 500 mil mortos pela pandemia de
covid-19. A pergunta enfureceu Bolsonaro.
“Olha, eu chego como eu quiser, onde eu
quiser, está certo? Eu cuido da minha vida. Se você não quiser usar a máscara,
você não usa”, disse Bolsonaro, descontrolado. O presidente, aos gritos, mandou
a jornalista calar a boca, chamou-a de “canalha” e disse que ela estava fazendo
um “serviço porco”.
Bolsonaro já demonstrou em diversas
ocasiões seu profundo desapreço pela imprensa em geral, com exceção dos
veículos bolsonaristas que o adulam. A um jornalista que o questionou, em agosto
de 2020, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da
primeira-dama Michelle Bolsonaro, o presidente disse que sua “vontade” era
“encher tua boca de porrada”.
A nova demonstração de irascibilidade de
Bolsonaro talvez se explique pelo contexto: além da terrível marca de meio
milhão de mortos, há o crescente cerco da CPI da Pandemia, há a novidade das
manifestações de rua contra o governo, cuja afluência tem sido cada vez maior,
e há uma queda significativa de sua popularidade – que deriva não somente da
administração irresponsável da crise, mas da alta da inflação e do desemprego.
A pergunta sobre a máscara, que o lembra de suas responsabilidades como
governante, teria sido a gota d’água que fez transbordar o nervosismo de
Bolsonaro com um cenário muito adverso.
Mas é bom que o presidente vá tomando chá
de camomila, porque as perguntas incômodas apenas começaram. Bolsonaro terá que
explicar, por exemplo, por que seu governo comprou a vacina indiana Covaxin por
um preço 1.000% superior ao que o fabricante anunciava seis meses antes,
conforme revelou o Estado.
Segundo a reportagem, o laboratório indiano
Bharat Biotech ofereceu seu imunizante por US$ 1,34 a dose, conforme telegrama
secreto da Embaixada do Brasil em Nova Délhi. Em dezembro, outro telegrama
dizia que a vacina custaria “menos do que uma garrafa de água”. Ao fazer a
aquisição do imunizante, por ordem de Bolsonaro, o Ministério da Saúde aceitou
pagar US$ 15 por unidade.
Ao contrário do que foi feito na negociação
de outros imunizantes, a importação da Covaxin teve uma empresa intermediária,
a Precisa Medicamentos, acusada de fraude com testes de covid e que tem como
sócia uma empresa que é alvo de processo por não entregar remédios comprados
pelo Ministério da Saúde. Por óbvio, a CPI da Pandemia quer saber por que, no
caso da Covaxin, o governo recorreu a um intermediário – e um tão cheio de
pendências judiciais.
Ademais, chamam a atenção a celeridade do
governo para fechar negócio (foram 3 meses de negociação, contra 11 no caso da
Pfizer), o alto preço pago (muito acima do inicialmente anunciado e bem
superior ao da Pfizer, que vendeu por US$ 10 a dose) e o fato de que a Covaxin
foi adquirida sem ter passado por todas as fases de testes e sem ter aval da
Anvisa – condições que Bolsonaro havia imposto para comprar “qualquer vacina”.
Em depoimento em poder da CPI, um servidor do Ministério da Saúde revelou ter
havido “pressões anormais” para a compra da Covaxin.
É um escândalo, que se junta com destaque à
extensa lista de delinquências do governo na gestão da pandemia e em outras
searas. Bolsonaro pode continuar tentando intimidar jornalistas que se atrevem
a lhe fazer perguntas, mas em algum momento, de um jeito ou de outro, terá que
responder, mais do que às questões que lhe fazem, por seus atos.
Vacina é proteção coletiva
O Estado de S. Paulo
O Brasil ainda está distante de atingir o
patamar de cidadãos vacinados que permita frear a disseminação comunitária do
coronavírus e, consequentemente, pôr fim ao flagelo da pandemia. Epidemiologistas
consideram que isto só ocorrerá quando cerca de 70% dos brasileiros estiverem
totalmente imunizados, ou seja, tenham recebido as duas doses da vacina (ou uma
dose, no caso da vacina da Janssen). Passados cinco meses do início da
vacinação no País, no entanto, apenas 30,43% da população brasileira havia
recebido a primeira dose até o dia 22 passado. O porcentual de pessoas que
receberam as duas doses é ainda menor – 11,52%, de acordo com o consórcio de
veículos de imprensa que compila dados das Secretarias Estaduais da Saúde.
Diante deste quadro, é impressionante –
além de muito perigoso – que ainda haja quem simplesmente se recuse a tomar uma
vacina quando chega sua vez porque o fabricante do imunizante à disposição no
momento não é o de sua predileção, seja lá por que razões. Tal comportamento
revela uma enorme irresponsabilidade, tanto do ponto de vista individual como
coletivo.
Todas as vacinas que estão sendo aplicadas
no Brasil são seguras e eficazes contra a covid-19, independentemente de sua
origem. As quatro disponíveis – Coronavac, Oxford/AstraZeneca, Pfizer e Janssen
– foram aprovadas para uso pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por agências reguladoras
internacionais, todas estas instituições de reputação inquestionável. Portanto,
ao deixar de tomar uma delas por questão de preferência pessoal, o cidadão põe
em risco a sua própria saúde e, o que é pior, a da coletividade, optando
deliberadamente por manter-se como vetor de disseminação da doença. A vacinação
contra doenças virais, nunca é demais reforçar, é, antes de tudo, uma ação de
proteção coletiva.
Todas as vacinas já citadas, em que pesem
seus diferentes porcentuais de eficácia geral, oferecem ampla proteção contra
casos graves de covid-19, o que praticamente elimina o risco de internações e
mortes em decorrência da doença no caso de contágio. Logo, quanto mais pessoas
forem vacinadas, menor será a pressão sobre os sistemas de saúde público e
privado, o que salva vidas. É elementar.
Este comportamento egoísta de muitos
cidadãos é inédito na bela história do Programa Nacional de Imunizações (PNI),
um caso de sucesso que é reconhecido no mundo inteiro. Ele decorre,
evidentemente, do criminoso ataque perpetrado pelo presidente Jair Bolsonaro às
vacinas em geral e à Coronavac, em particular, por razões estritamente
político-ideológicas, não científicas.
Até a pandemia de covid-19, nunca os
brasileiros haviam se ocupado de questionar a origem das vacinas que recebiam
contra as mais diferentes doenças. A alta adesão às campanhas de vacinação é
uma marca nacional. Hoje, há quem escolha que vacina quer receber contra a
covid-19, no melhor dos cenários. No pior, nem sequer querem ser vacinados.
Grassa no País uma perniciosa campanha de desinformação da população a respeito
dos imunizantes, cujo propagador de mentiras é nada menos do que a Presidência
da República.
O País ultrapassou a terrível marca das 500
mil mortes decorrentes da covid-19. Isto deveria bastar para comover a Nação e
levar todos os cidadãos aptos a serem vacinados aos postos de saúde. Só o
avanço da vacinação, ao lado de medidas de proteção individual, como o uso de
máscaras, a higienização das mãos e o distanciamento social, será capaz de
interromper a catástrofe.
Recusar uma das vacinas, por qualquer que
seja o motivo, é, sobretudo, um desrespeito à memória de mais de meio milhão de
nossos concidadãos aos quais não foi dada a chance de receber a proteção. Do
governo federal não se pode esperar uma campanha de comunicação séria
estimulando a população a acorrer aos postos de saúde, não enquanto Bolsonaro
for presidente. Resta à imprensa, à chamada comunidade científica e, mais
importante, a cada cidadão reforçar em seus círculos de influência a
importância da vacinação como única forma de salvar vidas em um país já por
demais enlutado.
Uma paródia de privatização
O Estado de S. Paulo
Mais que uma vergonhosa coleção de jabutis,
espertezas incluídas no texto por senadores e deputados, a Medida Provisória
(MP) de privatização da Eletrobrás, a maior empresa de energia elétrica da
América Latina, virou uma aberração. Senadores enxertaram na proposta enviada
pelo governo 28 emendas, com vários jabutis, dispositivos sem relação direta
com o assunto apresentado ao Legislativo. Reexaminados na Câmara, os acréscimos
foram parcialmente eliminados pelo relator, deputado Elmar Nascimento (DEM-BA).
Mas o texto afinal aprovado continuou aberrante, muito diferente do objetivo
central, uma cautelosa transferência de controle para o setor privado, e acabou
invadindo a área do planejamento energético, onde a iniciativa normalmente
pertence ao Executivo.
Transferir o controle acionário por meio da
capitalização era o propósito central da MP 1.031. Sem participar da subscrição
das novas ações, a União deveria ter sua cota reduzida de 60% para 45% do
capital. Teria, no entanto, uma golden share, com possibilidade de veto em
relação a certas iniciativas, manteria o controle da Eletronuclear e da Itaipu
Binacional e preservaria alguns poderes, como o de prorrogar concessões de um
conjunto de hidrelétricas. Mas parlamentares tinham planos próprios para a
transformação do setor elétrico e decidiram misturar seus interesses com o
projeto técnico do Executivo.
Seria impróprio comparar o resultado com um
ornitorrinco. O bichinho australiano, um mamífero ovíparo, com bico semelhante
ao do pato, rabo como o do castor, patas com membranas e esporões com veneno
letal para pequenos animais, consegue mover-se, reproduzir-se e ocupar seu
espaço. Ao contrário desse e de outros bichos, a versão final da MP da
Eletrobrás é um conjunto desarticulado, produto da justaposição de muitos
interesses particulares.
Nada, além desses interesses parciais, pode
explicar a presença, naquele texto, da prorrogação por 20 anos dos contratos de
usinas construídas por meio do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de
Energia Elétrica (Proinfa), da contratação por 15 anos de usinas termoelétricas
movidas a gás natural, da reserva de mercado para contratação de pequenas
hidrelétricas e da obrigação de cuidar da navegabilidade da hidrovia
Tietê-Paraná.
O caso das térmicas movidas a gás é
especialmente interessante. Essas usinas deverão estar instaladas
principalmente em áreas desprovidas de infraestrutura de transporte de gás
natural. Será preciso, portanto, investir numa infraestrutura desse tipo.
Tem-se discutido se os jabutis prejudicarão
o funcionamento do mercado e se aumentarão os custos para os consumidores. A
discussão é importante, mas só contempla um aspecto muito restrito das emendas.
A discussão, desde o início, deveria ter-se voltado para uma mais importante do
ponto de vista da gestão: as obrigações incluídas na MP são mesmo necessárias
ao sistema energético, razoáveis quanto ao custo e de fato úteis ao sistema
produtivo e aos consumidores?
O mexidão improvisado inclui a possível
isenção de licenças do Ibama e da Funai para a construção do Linhão do Tucuruí,
para ligar Roraima ao sistema elétrico nacional, e a criação no prazo de um ano
de um plano de recuperação de reservatórios das usinas hidrelétricas.
Parlamentares simplesmente adicionaram ao texto dispositivos ditados por
interesses particulares ou regionais, como se a MP da privatização da
Eletrobrás fosse um trem de carga com espaço à disposição de quem quisesse ocupá-lo.
Mais do que qualquer detalhe, no entanto,
aberrante é o conjunto formado pelo texto original e pelas emendas. Esse
conjunto é uma caricatura grotesca de planejamento setorial. A saudável
iniciativa de privatização da Eletrobrás por meio de capitalização converteu-se
numa paródia sinistra do planejamento, atividade típica do Executivo, mas quase
ignorada pelo presidente da República e por sua equipe. Sem partido, e
dependente do apoio do Centrão, o Executivo foi incapaz de impedir a
transformação da MP da Eletrobrás numa farra.
A desigualdade e o IR
Folha de S. Paulo
Busca por carga total mais justa deveria
balizar a reforma do Imposto de Renda
Os últimos anos foram de más notícias para
o enfrentamento da infame desigualdade social brasileira. Na década passada,
caiu por terra a convicção de que a distância entre ricos e pobres estava em
retração; agora, teme-se que ela cresça com os impactos da pandemia.
Dados que apontavam melhora a partir dos
anos 2000, com base nos rendimentos do mercado de trabalho, foram
posteriormente contestados por estudos mais amplos, amparados nas estatísticas
do Imposto de Renda, que contemplavam também ganhos de capital como os oriundos
de lucros, aluguéis e aplicações financeiras.
A Covid-19 agrava um quadro já dramático na
América Latina, como aponta relatório
recém-publicado pela ONU. Em particular, porque as medidas imperativas de
restrição às atividades prejudicam mais os estudantes e trabalhadores dos
estratos mais carentes.
Fenômeno complexo, a desigualdade se
apresenta de múltiplas maneiras. Há discrepâncias salariais entre homens e
mulheres; há discriminação de pessoas LGBT no mercado; negros têm muito menos
acesso que os brancos às benesses do desenvolvimento, como mostra o índice
de equilíbrio racial (Ifer) lançado por esta Folha.
Destaque no grupo de países mais desiguais
do mundo, o Brasil tomou providências para lidar com essa chaga —a mais
importante delas foi instituir um aparato de seguridade de dimensões raras no
mundo emergente.
O vultoso gasto social tem sua eficácia
comprometida, porém, quando o mesmo poder público falha em prover educação de
qualidade e, mais ainda, insiste em conceder privilégios a setores influentes
da burocracia e do empresariado.
O Estado brasileiro realimenta a
desigualdade, ainda, ao tributar de modo iníquo, com muito mais ênfase na
taxação do consumo, o que onera em excesso os mais pobres, que na da renda.
O tema volta à pauta com a proposta
de reforma do IR mais uma vez ensaiada pelo governo Jair Bolsonaro —e
mais uma vez motivo de resistências antecipadas e pressões de natureza
política.
Há muito a fazer para tornar a carga de
impostos mais progressiva, sem elevá-la além de seu patamar já exagerado. Rever
subsídios, tributar dividendos (com ajuste no gravame dos lucros) e até majorar
alíquotas sobre rendimentos altos se mostram caminhos viáveis.
Infelizmente, o debate corre o risco de ser
contaminado pelo imediatismo eleitoral e pela promessa demagógica de Bolsonaro
de ampliar a faixa de isenção. Mesmo forças à esquerda, aliás, relutam em
abraçar propostas mais ambiciosas para o IR, dados os interesses dos sindicatos
de categorias mais bem situadas na pirâmide social.
França incerta
Folha de S. Paulo
Em pleito com enorme abstenção, direita
radical e Macron têm fraco desempenho
O primeiro turno das eleições
regionais da França, realizado no domingo, trouxe más notícias tanto para o
presidente do país, Emmanuel Macron, como para sua principal contendora, Marine
Le Pen.
Favorito em 6 das 13 regiões em disputa, o
ultradireitista Reunião Nacional, partido comandado por Le Pen, teve um saldo
bastante aquém do previsto. Conquistou o primeiro lugar em apenas uma
localidade, e ainda assim por margem estreita, granjeando, no cômputo geral,
19% dos votos.
Trata-se de um resultado bem mais modesto
que o da disputa regional anterior, ocorrida no final de 2015, quando a
agremiação foi a mais votada no primeiro turno, com quase 28% dos sufrágios
—embora, no segundo, tenha perdido para as alianças contrárias.
O revés representa um banho de água fria
nas pretensões de Le Pen, derrotada por Macron em 2017, que pretendia transformar
a votação numa catapulta para a corrida presidencial do ano que vem. Evidencia
também os limites da estratégia de dar nova cara à sigla.
Nos últimos anos, Le Pen vem tentado
suavizar a imagem do Reunião Nacional, marcada pelo discurso xenofóbico e pela
defesa de políticas anti-imigração, com o objetivo de conquistar novos
eleitores e, assim, romper as barreiras que até hoje impediram a ultradireita
de alçar voos maiores no país.
As coisas tampouco transcorreram bem para o
atual mandatário. O seu República em Marcha amealhou pouco mais de 11% dos
votos, e nenhum dos ministros que concorreram obteve votos suficientes para
chegar ao segundo turno.
Ainda que Macron lidere as pesquisas para a
próxima eleição, o malogro regional acende o sinal amarelo num governo que
principiou cercado de enormes expectativas, mas cujo capital político foi se
esvaindo ao longo de seguidas crises —dos “coletes amarelos” aos protestos
contra a reforma previdenciária e a nova lei de segurança.
Numa votação em que nada menos de 66% dos
franceses se ausentaram, os vitoriosos acabaram sendo os partidos tradicionais,
que haviam perdido terreno nos últimos anos. Os Republicanos, de
centro-direita, obtiveram 27% dos votos, e os socialistas, quase 18%.
Assim, a dez meses do pleito presidencial, o panorama político que se delineia na França é profundamente incerto, com os principais postulantes enfraquecidos, enquanto as forças que reinaram no passado ganham novo impulso.
Mercado de trabalho fraco aprofunda a
desigualdade
Valor Econômico
No ano, cairão o número de pessoas com
carteira assinada e a renda real
Indicadores sociais recentemente divulgados
mostram novas facetas dos efeitos negativos da covid-19 e das graves falhas do
governo no enfrentamento da pandemia. Em comum, eles têm a deterioração do
mercado de trabalho, que resulta no aumento do desemprego, do desalento e da
desigualdade, na piora da perspectiva de vida e na queda de renda, agravada
agora pela elevação da inflação.
Um desses indicadores é o índice de
miséria, que atingiu em maio o maior nível em nove anos, pico da série estimada
pelo economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale. Calculado pela soma da
taxa de inflação com a de desemprego, o indicador ficou em 23,4 pontos
percentuais em maio, que pode superado neste mês. O cálculo leva em
consideração que a inflação em 12 meses, medida pelo IPCA, chegou a 8,1% no mês
passado, e o desemprego estimado atingiu 15,3%. O dado mais recente de
desemprego divulgado pelo IBGE é de março, quando estava em 14,7%.
Outra pesquisa, esta feita pelo Centro de
Estudos FGV Social, constatou que a renda média individual do trabalho
despencou 11,3% do primeiro trimestre de 2020 para R$ 995, menos de um
salário-mínimo, o menor nível da série histórica. O cálculo é feito pela média
móvel de quatro trimestres. Sem levar em conta a média móvel, a queda da renda
individual do trabalho foi 10,89% no primeiro trimestre de 2021. Entre os mais pobres,
a redução foi ainda maior, de 20,81%.
Desse modo, a recuperação do PIB registrada
no início deste ano não ocorreu de modo uniforme, mas ficou concentrada em um
segmento limitado, ampliando a desigualdade. O levantamento do Centro de
Estudos FGV Social constatou que o impacto da pandemia no mercado de trabalho
levou a nível recorde a desigualdade da renda, medida pelo índice de Gini. No
primeiro trimestre de 2020, o índice estava em 0,642. Já no primeiro trimestre
deste ano, o indicador alcançou a marca de 0,674, a maior da série analisada.
Quanto mais perto de 1 estiver o índice de Gini, maior é a desigualdade.
Em desdobramento da pesquisa, o Centro de
Estudos FGV Social registrou as repercussões psicológicas, como maior
insatisfação com a vida e aumento dos sentimentos de raiva, estresse,
preocupação e tristeza, com maior frequência do que em outros países igualmente
atingidos pela pandemia, em comparação feita com dados do Gallup World Poll.
O principal determinante desses resultados
é o mercado de trabalho. Desde a recessão de 2015 e 2016, o mercado de trabalho
vem se deteriorando. A pandemia agravou o quadro, especialmente com a dizimação
da ocupação informal e do emprego na área de serviços. A situação foi pior para
os trabalhadores menos instruídos, que geralmente atuam nessas áreas.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) constatou que o número de horas trabalhadas pelos profissionais
com ensino fundamental incompleto despencou 12,9% no primeiro trimestre deste
ano em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, enquanto as pessoas com
ensino superior completo trabalharam 11,7% mais. O levantamento mostra perda no
número de horas trabalhadas também para quem tinha o ensino fundamental
completo (6%) e ensino médio completo (4,1%).
A reversão desse quadro passa pela recuperação
do mercado de trabalho, o que deve demorar. Espera-se que o desemprego até
aumente à medida que o avanço da vacinação anime a busca por emprego pelos que
conseguiram se isolar. Além disso, a recuperação que começa a dar sinais na
economia é desigual e ainda não atinge setores que empregam mais mão de obra,
inclusive não especializada, como o de serviços, construção civil e transporte.
A própria Secretaria de Política Econômica,
do Ministério da Economia, projeta para este ano queda de 0,45% na população
ocupada com carteira assinada e de 2,4% na renda real dos trabalhadores. Apesar
disso, o governo parece despreparado ou sem disposição para lidar com esses
problemas. Foi o que demonstrou ao demorar tanto para definir a extensão do
auxílio emergencial no início do ano, ao acreditar que com a mudança do
calendário a pandemia iria embora; e, agora, ao hesitar em reformular o Bolsa
Família. Negligenciando o reforço das redes de proteção social, o governo é
responsável pela volta do país ao mapa da fome, depois de ter ficado 17 anos
fora dele.
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