O Globo / O Estado de S. Paulo
Se não existe sociedade perfeita — como
adverte Claude Lévi-Strauss —, é necessário entender nossas doenças. E, se é
bíblico jogar pedras nos outros, foi preciso um presidente com a compulsão de jogar
pedras em todo mundo para que ele acabasse com a cabeça quebrada pelo meio
milhão de mortos, vítimas da sua política de sabotar vacinas.
Tudo o que vai volta. A horrível
experiência de Bolsonaro é a responsabilização por um boicote orquestrado e
criminoso às vacinas. Se a antropologia social não é muito animadora quando
confirma que toda coletividade tem problemas, ela mostra que não há sistema
fundado na mentira, na malandragem, na má-fé e no negacionismo.
Do mesmo modo que as sociedades humanas
(tribais ou nacionais) demandam território, elas exigem coerência moral. Não há
como combinar democracia com hipocrisia e com uma rejeição absurda de uma
doença por um governo federal que, eleito com o compromisso de acabar com a
velha política, hoje sucumbe pela patologia de um cancro conhecido pelo nome de
despotismo. Jair Bolsonaro foi feito presidente para cumprir um programa
democrático que seu atávico familismo tem ostensivamente negado. A tragédia é a
morte de mais de 500 mil pessoas por uma pandemia claramente sabotada.
Não há sistema sem trocas. Mas convenhamos
que comprar e vender seres humanos — que, no regime escravocrata, viravam
máquinas e animais e eram governados pela lógica do capital — é um irrefutável
negacionismo. No Brasil, o negacionismo dos costumes legitimou um estilo de
vida que combinou — como disse um FH sociólogo — capitalismo e escravidão,
ambos legitimados por um catolicismo romano oficializado.
Tal dissonância foi orquestrada, mas não deixou de ser algo incômodo no passado (Joaquim Nabuco e Machado de Assis testemunham tal aberração), e seus restos e rastros são hoje algo vergonhoso, porque negar o real é mais que um erro; é algo impensável, abusivo e, no limite, psicótico.
O negacionismo que rompe com a sintonia
entre meios e fins não é tampouco “jeito” ou teimosia. É, sejamos claros,
demência e autoflagelação. Se, como diziam os velhos ideólogos do militarismo,
a guerra não pode ser deixada a cargo de políticos interesseiros e levianos,
não se pode deixar que um obstinado negador do princípio de realidade (aquilo
que ocorre ignorando nossos planos e vontades) continue como um aliado e um
quinta-coluna do vírus. Um sócio remido de uma pandemia que, graças a essa
negação, matou, até o momento, mais de 500 mil brasileiros.
Você já perdeu um filho, mulher ou irmão
por incúria sanitária ou perseguição religiosa, étnica ou ideológica? Já viu
num caixão um corpo amado transformado pelo mármore da morte? Advirto que
nenhum morto morre sozinho. Com ele, morrem no mínimo dez ou mais pessoas de modo
direto e, indiretamente, uma multidão de outros corações, que exigem respeito,
solidariedade e compaixão. Mas como sentir comiseração se o líder nacional não
mostra o menor sentimento? Se é que ele, além do narcisismo, tem mesmo piedade
pelo próximo...
Não há, por certo, perfeição, mas não há em
nenhuma democracia honesta presidentes — com uma vênia a Donald Trump —
sabotadores de seus eleitores. A indiferença ao bom senso e a deslealdade
interesseira, negacionista das obrigações eleitorais — traição que é rotina na
“política” brasileira — , são nossa patologia. São nossa doença mais ou menos
clara dos governantes. Porque “politicar” virou desfaçatez e traição em nome do
povo e dos pobres. Não é de hoje que a esfera política virou sinônimo de força
bruta funcionalmente legalizada, permitindo todos os abusos em nome de fins
jamais pronunciados.
Quando a delinquência é envolvida por uma
pandemia renegada por quem está no poder, chegamos a esse meio milhão de mortos
reveladores, ao fim e ao cabo, de nosso descaso por nós mesmos. Escrevo como
perdedor, já que faço questão de honrar minhas perdas. É assim que o meu
coração se solidariza com os dos sobreviventes das mais de 500 mil vítimas. Um
coração e uma alma que se envergonham de testemunhar um vírus sabotado pela
onipotência e pelo egoísmo de um presidente que ficará na História como traidor
das promessas feitas solenemente ao povo que o elegeu.
Penso que não há religião, ciência ou arte capazes de resistir a nossa ética de insinceridade. Este país feito por um rei fujão, esta República sem republicanos fundada na escravidão. Este sistema permanentemente transformado pelos interesses de políticos e juízes formalistas, de generais subservientes e de um Estado explorador da sociedade. Enfim, de um país que, educadamente, confunde demência e incúria com negacionismo — essa patologia nacional.
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