O Estado de S. Paulo
Centrão opera como minoria de veto, mas é
incapaz de convergir sobre agendas positivas
Estamos numa democracia representativa, e o
cidadão é o único portador da soberania do Estado. Melhor dizendo: ainda
estamos numa democracia e o Estado de Direito funciona, mas a insegurança
jurídica é a única certeza. As instituições operam de maneira disfuncional. Os
privilégios e as desigualdades crescem ou se consolidam. E a autoridade do
cidadão sobre seus representantes sofre a ameaça de uma reforma eleitoral que
esvazia, ainda mais, o papel do eleitor. Como se não bastasse, um golpe de
Estado está em andamento desde 2019, ante a omissão dos Poderes da República.
Além dos desafios sanitários, econômicos e
sociais que ameaçam nossa sobrevivência como nação livre, enfrentar a ameaça
golpista é a condição necessária para enfrentar as demais. Encarar tal ameaça
exige definir um objetivo, isto é, enfrentar, contornar ou adaptar-se a ela. Exige,
também, mobilizar recursos para atingir esse objetivo inescapável: recursos de
poder, econômicos, institucionais, políticos, de capacidade de gestão pública,
de liderança, etc. Ou seja, confrontar-se com uma ameaça letal implica
responder a esses elementos básicos de uma estratégia.
Falta um movimento decidido das
instituições e de suas lideranças para cumprir tais requisitos. Em primeiro
lugar, não há convergência, nem muito menos consenso, sobre a ameaça letal à
Nação provocada pelo golpe em andamento.
Para alguns, o que deve ser combatido, acima de tudo, é a ameaça de perder as eleições, como é o caso de Lula, do PT, e de parte dos partidos de esquerda – e também de Ciro Gomes e João Doria, embora não necessariamente de seus respectivos partidos. A prioridade máxima do objetivo eleitoral obriga esses candidatos a adotarem uma estratégia ambivalente em face da ameaça de golpe. Para todos eles, é vital garantir Bolsonaro nas urnas e, para isso, é preciso mantê-lo no poder.
Para Bolsonaro, perder a reeleição, sofrer
impeachment, ter sua eleição anulada, perder a guerra da pandemia, descumprir
sua promessa de deixar um legado de pai dos pobres e desproteger sua família de
denúncias criminais são obstáculos secundários. E decorrem da ameaça imaginária
de usurpação definitiva de um alucinatório poder absoluto, que lhe teria sido
conferido pela divindade que o fez “mito”.
Tal multiplicidade de alvos o força a
empregar uma metralhadora giratória, provocando baixas em sua própria
retaguarda. O caráter fragmentado de seus objetivos o impede de manter o foco
na eliminação dos usurpadores de seu direito ao poder absoluto, o que
demandaria alguma forma de golpe de Estado.
Como podemos observar, a cantilena da
inevitabilidade de uma polarização radicalizada entre Lula e Bolsonaro nada é
senão uma narrativa tendenciosa de ambos para desmoralizar a inclinação
majoritária da opinião pública para a moderação, desacreditando os candidatos,
os partidos e as políticas sociais e econômicas que precisam ser debatidos na
campanha, para serem adotados num próximo governo.
Alternativas, como Arthur Lira e seus
seguidores, não faltam. Para estes, as principais ameaças são o impeachment do
atual presidente e sua sucessão por Mourão, o que eliminaria a possibilidade de
este setor do Centrão controlar, simultaneamente, o Executivo e o Congresso.
Para outros setores do Centrão, que parecem aproximar-se do vice-presidente, a
ameaça vital seria o oposto, isto é, a cassação da chapa Bolsonaro/mourão pelo
Tribunal Superior Eleitoral, que os tiraria do jogo.
Por falta de uma estratégia de poder que o
unifique, o Centrão confirma o que venho observando neste mesmo espaço: que
este grupo de pressão opera como uma minoria de veto, capaz de unirse para
derrotar governo ou oposição, mas incapaz de convergir sobre agendas positivas.
Essa fragmentação é útil para uma minoria de veto. Mas inviabiliza o governo de
franquia – hoje exercido pela dupla Ciro/lira – e também eventuais ambições
presidenciais. O descolamento do PSD de Kassab e a possível criação de um
grande partido de direita, resultante da fusão entre o DEM e o PSL, reforçam os
obstáculos para a adoção de uma estratégia comum para o Centrão.
Um grupo de quatro possíveis candidatos –
que chamarei de políticos novos, porque se empenham numa via independente, não
são velhas raposas, não se deixam acorrentar ao passado, não são aventureiros
nem extremistas – tem um alvo comum, que é enfrentar a ameaça representada hoje
pela tentativa de golpe ainda em andamento. No comício do dia 12 de setembro,
todos – Simone Tebet, Alessandro Vieira, Eduardo Leite e Luiz Henrique Mandetta
– convergiram sobre a inevitabilidade do impedimento do atual presidente, que é
o primeiro passo para adotar uma estratégia comum, pois é indispensável para
garantir uma eleição livre em 2022.
Sobre esses “políticos novos” recai hoje a responsabilidade de negociar a mobilização dos recursos econômicos, institucionais, políticos, de capacidade de gestão pública e de liderança, necessários para garantir a presença e a competitividade de candidatos da terceira via.
*Professor Titular de Ciência Política da USP
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