O Estado de S. Paulo
Expor à luz do sol os maus costumes inerentes às emendas do relator foi do que tratou o Supremo na sua decisão
A transparência do processo orçamentário,
que diz respeito à aplicação de recursos financeiros do Estado, está na ordem
do dia do debate político. Sua prática vem sendo questionada em razão dos
procedimentos das emendas do relator-geral do Orçamento no Congresso e das
implicações, não republicanas, do seu sigiloso uso político para a obtenção, em
conjugação com o Executivo, de apoio parlamentar.
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu
um julgamento sobre a matéria, a partir do substancioso e qualificado voto da
relatora, ministra Rosa Weber. A questão é de grande alcance. Transcende os
aspectos técnicos. Merece, no seu rescaldo e possíveis desdobramentos,
discussão e exame.
A decisão do STF analisa o princípio da publicidade que constitucionalmente rege a administração pública no País e os atos do governo em todas as suas instâncias. O princípio é um dos pressupostos da democracia, que se baseia no exercício em público do poder comum, na límpida formulação de Norberto Bobbio. Com efeito, o público, por ser o comum a todos numa República, deve ser do conhecimento de todos. Transparência e visibilidade do poder dão à cidadania a condição de controle da ação dos governantes e dos seus atos. O que se mascara e se esconde põe em questão o chão da vida política democrática. Enseja o poder invisível de um bobbiano “cripto” e “sotto” governo.
A publicidade tem a alargada dimensão
adicional de ser um critério de justiça e ética, reveladora do ilícito. Todas
as ações relativas ao direito de outros homens que não forem compatíveis com a
publicidade são injustas, afirma Kant ao formular o conceito transcendental de
direito público no Projeto da Paz Perpétua.
Uma ação conduzida em segredo não é apenas
injusta em relação a terceiros que são por ela afetados. Explicita o potencial
de uma transgressão. Qual agente público pode afirmar com desfaçatez, em
público, sem escandalizar, que usará dinheiro do contribuinte para atender a
seus interesses privados? É o caso, por exemplo, das “rachadinhas”.
O empenho no ocultamento de ação usualmente
tem como objetivo esconder o ilícito de uma transgressão ética. É por essa
razão de alcance geral que Rosa Weber, no seu voto, relembrou a afirmação do
juiz Louis Brandeis, da Corte Suprema dos EUA: “A luz solar é o melhor dos
desinfetantes”.
Numa democracia, voltada para a res
publica, as boas leis e os seus princípios, como o da publicidade da
administração pública, positivada no artigo 37 da Constituição, devem ser
conjugados com os bons costumes. Expor à luz do sol os maus costumes inerentes
às emendas do relator-geral do Orçamento foi do que tratou o STF na sua
decisão, ao exercer a sua função precípua da guarda da Constituição.
Apontou que as emendas do relator não
seguem os procedimentos previstos para outras emendas parlamentares.
Ampliaram-se, em comparação ao exercício financeiro anterior, na quantidade (aumento
de 523%) e nos valores consignados (374%). Não guardam relação com os
propósitos originários do papel das emendas do relator, voltadas apenas para
erros e omissões de ordem técnica e legal e à organização sistemática das
despesas conforme suas finalidades.
Daí a decisão, expressa no voto de Rosa
Weber: “Constatação objetiva da ocorrência de transgressão em postulados
republicanos da transparência da publicidade e impessoalidade no âmbito da
gestão estatal dos recursos públicos. Práticas institucionais condescendentes
com a ocultação dos autores e beneficiários das despesas decorrentes de emendas
do relator do orçamento federal. Modelo que institui inadmissível exceção ao
regime da transparência no âmbito dos instrumentos orçamentários”.
O STF assentou a existência de
descumprimento de preceito constitucional fundamental. Consignou, assim, um
efetivo limite ao poder do que o Congresso pode chancelar em matéria de emendas
do relator.
Não cabe alegar que o trâmite destas
emendas obedecem ao regimento interno do Congresso. O STF não assumiu função
que cabe ao Congresso. Definiu que as normas do seu regimento interno devem
estar conformes aos preceitos constitucionais da publicidade e da
transparência. As normas do regimento que permitem as emendas do relator não
estão em conformidade com estes requisitos. Por isso não são válidas. Ensejam
os maus costumes que corroem a boa lei dos princípios constitucionais da
administração pública e dos atos do poder e do governo em todas as instâncias,
inclusive o Poder Legislativo.
Padre Antônio Vieira trata dos pecados de
omissão e os de consequência. Os primeiros são os que mais frequentemente se
cometem. Os segundos são os que, depois de acabados, ainda duram, por isso são
pecados de consequência. O STF, na linha do preciso voto de Rosa Weber, não
incidiu na facilidade de um pecado de omissão jurídica. Suspendeu todas as
consequências do pecado jurídico de descumprimento de um princípio fundamental
da Constituição – o da publicidade e transparência da ação governamental numa
democracia.
*Professor Emérito da Faculdade de Direito
da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
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