quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Nicolau da Rocha Cavalcanti* - A presunção de inocência nos protege da barbárie

O Estado de S. Paulo

Tolerar a violação do princípio da presunção de inocência é permitir que o Estado tire direitos de quem ele quiser, porque assim o quer

A recente operação policial no Guarujá desvelou uma vez mais não apenas a brutalidade da ação estatal, mas quem nós somos enquanto sociedade: o nosso real estado civilizatório. Todos os muitos indícios de execução sumária de cidadãos foram insuficientes. Parcela significativa da população, incluindo autoridades públicas, considerou adequada e bem sucedida a atuação policial no litoral paulista sob o argumento de que os mortos eram bandidos, eram criminosos.

Há muitos problemas e contradições na legitimação das operações policiais com altíssima taxa de letalidade; por exemplo, a pena de morte é proibida no Brasil e essas operações contrariam a própria ideia de segurança pública. Aqui, destaco um fator específico, que contribui para a aceitação da barbárie: a rejeição do princípio da presunção de inocência.

Não se exige processo judicial. Não se pede espaço para o contraditório. Não se demanda perícia. Basta a palavra da polícia. Os mortos eram bandidos. Os mortos eram criminosos. E isso é o suficiente para que muitos considerem aceitável, ou mesmo louvável, a ação policial. Acolhem um julgamento sem provas e sem controle recursal. E pior: um julgamento coletivo, em que todos são condenados indistintamente. Todos são colocados na mesma vala comum.

O princípio da presunção de inocência está na Constituição. “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, diz o art. 5.º, LVII. A rigor, ele traduz algo elementar do Estado Democrático de Direito: o poder estatal não pode tratar ninguém como culpado antes da condenação definitiva. Mas, então, vem a ação policial no Guarujá e escancara como esse princípio é incompreendido, rejeitado, achincalhado.

Basta a menção de que uma pessoa teria antecedentes criminais – ou de que estaria sendo investigada – para ela ser privada de sua humanidade, de sua cidadania. Deixa de ser sujeito de direitos. Torna-se desprezível. No limite, perde até o direito à vida. Se a polícia assim o dispuser, o bandido pode ser abatido.

A retórica em favor da violência policial não nega a existência, no Direito brasileiro, do princípio da presunção de inocência. A tática para excluir sua efetividade é mais sutil: a aceitação formal do princípio, sem extrair dele consequências práticas. Com isso, formam-se as condições para que prevaleça – no imaginário popular, na ação dos policiais e na cabeça das autoridades – o juízo sumário, construído a partir de informações parciais e incompletas, mas que, num determinado momento, brilham e parecem extremamente convincentes. Essas informações têm a solidez de um castelo de cartas. No entanto, enquanto não desmontadas, produzem uma sombra impressionante sobre a pessoa e sua vida. Com um detalhe crucial: essa sombra deixa uma marca difícil, às vezes impossível, de ser removida.

Não existe sociedade livre – na qual os cidadãos não estejam reféns da arbitrariedade estatal e da escopeta policial – sem o princípio da presunção de inocência. E a efetividade desse princípio é garantida não por declarações formais, mas pelo respeito ao exercício do direito de defesa. É o direito de defesa que assegura a efetividade da presunção de inocência.

No caso do Guarujá, é evidente que os mortos foram privados do direito de se manifestar, de se defender, de produzir provas a seu favor. Mas a inoperância desses direitos não ocorre apenas em situações extremas. Frequentemente, sem negar abertamente as garantias fundamentais, o Judiciário frustra a relevância e a funcionalidade da defesa. Formalmente, continua existindo defesa, mas ela se torna inócua, ao não ter acesso ao que o Estado produz contra a pessoa investigada ou simplesmente por não ser ouvida. O que a defesa diz nos autos, na audiência, na sustentação oral não pode ser ignorado. Não pode ser apenas anexado nos autos da ação, como um adereço decorativo. O direito ao contraditório deve produzir consequências reais, e não ser mero teatro.

A relação do caso do Guarujá com a presunção de inocência e o direito de defesa precisa ser bem compreendida. Certamente, negar acesso ao conteúdo de um inquérito encerrado é muito diferente de executar uma pessoa na madrugada, como vingança pela morte de um policial. São realidades diversas, com efeitos muito díspares. No entanto, vejo nas duas situações um mesmo problema de fundo: a ideia de que o cidadão suspeito de um crime tem menos direitos e a de que, no combate ao crime, o Estado detém alguns privilégios, alguns superpoderes.

É uma espécie de círculo vicioso, em que os dois elementos se retroalimentam. O suspeito de um crime tem menos direitos, logo, o Estado pode ir além do que normalmente iria. Como dispõe de superpoderes para combater o crime, o Estado pode dizer sumariamente quem é suspeito, quem é bandido.

Não é hipérbole. Tolerar a violação do princípio da presunção de inocência é permitir que o Estado tire direitos de quem ele quiser, porque assim o quer. Até mesmo o direito à vida. Não é ficção: isso aconteceu e continua acontecendo em 2023.

*Advogado

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