O Globo
Talvez você não esteja acompanhando com
atenção o que está acontecendo nas eleições argentinas. Isso é natural.
Provavelmente você reage com base em sua identidade política brasileira — se
você é de esquerda, gosta do candidato peronista; se é de direita, vai com
Milei. Mas a realidade é que ambos têm posturas que seriam inaceitáveis por
aqui. A Argentina está à beira do caos.
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Comecemos pelo governismo. Sergio Massa é o
Ministro da Fazenda do governo Fernandez e candidato à Presidência. Isso já é
uma situação inusitada num país que sofre com inflação acima de 120% ao ano e
crises recorrentes nos últimos anos.
Ele sabia que dificilmente teria chance de ser eleito. Como ministro da Fazenda — cargo que ele ainda exerce, pois não há exigência de desincompatibilização — ele aprovou alguns meses antes da eleição uma série de medidas que, no Brasil, seriam ilegais e interpretadas como compra de voto.
Por exemplo, ele aprovou a isenção de Imposto
de Renda para todos os argentinos que ganham menos de R$ 10.700 por mês
(valores no dólar paralelo). Isso inclui 99% da população. Ou seja, hoje quase
toda a população argentina deixou de pagar Imposto de Renda.
Há dois grandes problemas aí. Primeiro,
Imposto de Renda é um imposto adequado para fazer ações redistributivas. Quando
você exclui quase toda a população, significa que é difícil conseguir fazer
redistribuição sem gerar grandes incentivos à sonegação. Segundo, o custo
fiscal da medida é alto. Mesmo segundo o governo, a medida vai custar cerca de
1% do PIB — e possivelmente essa conta seja otimista demais.
Em outra benesse, o governo decidiu dar
“empréstimos” para trabalhadores e aposentados, respectivamente, de até R$
5.400. A pegadinha? A taxa de juros desses empréstimos é de 50% ao ano, num
país em que a inflação é de 120% ao ano.
Isto é, quem pedir esses empréstimos vai
devolver ao governo, descontada a inflação, menos do que pediu emprestado. É
literalmente uma medida para distribuir dinheiro de forma indiscriminada para a
população antes das eleições. Como o custo fiscal é só a diferença entre
inflação e juros compostos, ele estima que esta medida custará entre 0,4% e
0,6% do PIB.
Estes são só dois exemplos. Entre outros
incluem-se subsídios energéticos, sociais, de transporte e outros. Fica claro
que Massa está montando uma bomba fiscal. Não se sabe ainda se para si mesmo ou
se para outro.
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Na cobertura brasileira, fica parecendo que
Javier Milei é a combinação de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Mas ele é algo
muito mais particular, com ideias em diversos aspectos muito mais radicais que
ambos os políticos brasileiros.
Milei se declara um “anarcocapitalista”.
Etimologicamente, claramente, a palavra é a combinação de anarquista com
capitalista. Politicamente, ela é uma deturpação do liberalismo, que reduz a
filosofia da preservação da liberdade individual no sentido amplo a uma
rejeição moral de tudo que é do estado.
É por isso que Milei seja talvez até mais
perigoso que a dupla brasileira. Se Bolsonaro era um político do Centrão,
afeito ao poder, e Guedes era um misto de empresário da elite com economista
que faz análise de custo-benefício, Milei é antes de tudo alguém que discursa
como um ideólogo.
Mesmo ignorando suas outras excentricidades —
como o fato dele ter clonado seus cachorros — há diversos episódios caricatos
em sua campanha. Na estética, por vezes ele se aproxima de Bolsonaro, indo à TV
dizendo que o país precisa se livrar dos “esquerdistas de m*”.
Mas isso também se traduz nas propostas
econômicas e políticas. Ele diz que vai cortar quase todos os ministérios, em
vídeos de campanha em que passa a motosserra no estado. E fala de dolarização
sem dar pormenores sobre como implementá-la de fato, como já discutimos aqui na
coluna.
É uma campanha essencialmente negativa,
baseada na oposição às falhas graves do peronismo. Que pode ter sucesso
eleitoral, mas não garante o sucesso da gestão futura.
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Do Brasil, há duas formas de ver os problemas na Argentina. Em alguns aspectos, percebemos que nossas instituições estão mais avançadas do que as de nossos vizinhos. Por outro lado, na economia internacional, assim como em astrofísica, a gravidade é a força mais determinante — e vizinhos estão umbilicalmente ligados. O que acontece por lá é importante por aqui. Por isso, melhor desejar o melhor para os hermanos (tirante hoje à tarde no Maracanã!).
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