sábado, 4 de novembro de 2023

José Casado* - “Operação 06”

Enigma da Abin lança suspeita sobre rede ilegal de espionagem

Há cinco meses o Congresso tenta, sem êxito, decifrar um enigma: a “Operação 06” da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Sabe-se que foi uma ação secreta no Rio. Há indícios de gastos expressivos, com estimativas variáveis entre 2 e 6 milhões de reais. As despesas, aparentemente, foram concentradas em equipamentos, softwares, transporte e pessoal em áreas controladas pelo crime organizado — milícias de policiais e de narcotraficantes.

Sabe-se, também, que começou em 2021 e durou até meados do ano passado. Por coincidência, época em que partidos definiam candidaturas para as eleições de outubro. Foram selecionados 1037 candidatos para as 46 vagas da bancada do estado do Rio na Câmara.

Em maio, o ex-presidente do Senado Renan Calheiros (MDB-AL) aprovou na Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência um pedido à Casa Civil da Presidência da República para a entrega de toda a documentação sobre os objetivos, as metas e os resultados dessa iniciativa clandestina coordenada pela superintendência regional da Abin. Além disso, requisitou: cópias dos relatórios de quatro dezenas de órgãos estatais envolvidos; listagem das autoridades e servidores responsáveis; detalhes do orçamento e da execução financeira em cada etapa das atividades até abril de 2022.

As respostas recebidas na comissão, por enquanto, são consideradas insuficientes para decodificar a “Operação 06” no governo Jair Bolsonaro. Ela aconteceu durante a estadia do policial federal Alexandre Ramagem na direção da agência. Em abril do ano passado, Ramagem saiu da Abin para se candidatar a deputado federal e passou o comando a Victor Carneiro, até então superintendente no Rio. Elegeu-se com 59170 votos pela seção fluminense do Partido Liberal, controlada por Bolsonaro. Na chegada à Câmara preocupou-se em garantir vaga na comissão legislativa que, agora, tenta desvendar a ação do serviço secreto no Rio durante a sua gestão.

As atividades da Abin de Ramagem e Bolsonaro estão sob investigação, simultânea, em várias instâncias (Congresso, Supremo, Tribunal Superior Eleitoral, Polícia Federal, Ministério Público, Controladoria-Geral e Tribunal de Contas da União). São múltiplas as suspeitas sobre uso da estrutura, orçamento e equipamentos em espionagem doméstica com objetivos políticos e econômicos privados. O governo já sabe o que e como aconteceu. Lula resumiu, na semana passada: “Estamos vendo escutas telefônicas de gente que não deveria ter (sido) escutada, e que não tinha decisão judicial”.

Dias antes, o juiz do STF Alexandre de Moraes havia determinado a prisão de dois dirigentes, afastado outros cinco funcionários e autorizado buscas em escritórios e residências de São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Goiás e Brasília. Na casa de um diretor da agência, demitido há uma semana, foram apreendidos 170000 dólares em espécie, o equivalente a 850000 reais. “É poupança familiar, alegou o oficial de inteligência na sua segunda passagem pela polícia em quinze anos, pelas mesmas razões.

O caso da Abin é parte de mosaico de espionagem ilegal que, suspeita-se no Congresso, envolve organismos federais e estaduais de segurança. É condimentado pelo aumento exponencial de gastos públicos na compra de equipamentos e softwares para rastreamento, coleta e extração de informações pessoais em todo o país, sempre em nome da segurança pública, sem fiscalização e controle das atividades dos agentes usuários.

Esse tipo de despesa aumentou muito na última década, até 100 vezes em alguns estados. A organização independente Derechos Digitales concluiu em novembro uma análise de 209 contratos públicos para máquinas e programas de espionagem. Os pesquisadores André Ramiro, Pedro Amaral, Mariana Canto e Marcos Pereira vislumbraram os contornos de um mercado onde, praticamente, não existe fronteira real entre interesse público e privado. A vulnerabilidade, acham, começa nos principais fornecedores, as empresas israelenses Cellebrite e Verint. Elas são donas de 80% das vendas nacionais e guardam um histórico de “escândalos de vigilância governamental abusiva” no exterior.

O caso da Abin sugere mais do que abuso eventual em órgãos de investigação. Há indícios de manipulação de orçamentos federais e esta­duais na expansão de um arsenal de ferramentas contra as quais não existe segurança para informações individuais. Sem regulação e supervisão efetivas, governos estimulam grandes negócios na espionagem política e econômica — e tudo subsidiado com dinheiro público.

*Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866

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