sábado, 4 de novembro de 2023

Paulo Sternick* - Desatenção, terror e barbárie

O Globo

Pensar que o Hamas representa os palestinos é uma mentira e um contrassenso que deslegitima toda a esquerda que não pensa desse jeito

A surpresa é fator essencial para qualquer ação terrorista, mas desta vez sua eficácia foi amplificada por uma variável adicional: a desatenção coletiva da sociedade israelense. Polarizada e exaurida pelo discurso do ódio, Israel estava atordoada e afogada em intensos conflitos políticos internos provocados por Netanyahu e seus aliados de extrema direita.

A psicanálise nos mostra que a energia emocional humana não é ilimitada: o amor e o ódio são endereçados a alvos específicos a cada vez, mas são deslocáveis. O resto sofre uma espécie de esvaziamento de importância — ou desinvestimento. E o Hamas foi absurdamente esquecido. O destino da atenção suspeitosa, do alerta de risco iminente foi transferido para os lados opostos da disputa interna, um dos quais sentindo a democracia seriamente ameaçada.

Israel sofreu um apagão da atenção, e até o mais inteligente serviço secreto do mundo teve seu momento de burrice. Já acontecera na Guerra do Yom Kippur, em 1973. Pois o dispositivo da freudiana negação é uma virtualidade psíquica pronta a se infiltrar e nos afastar da realidade. Não convém negar que a negação sempre está prestes a agir perturbando a visão. Israel não enxergou até que ponto o Hamas poderia avançar em sua explícita determinação de varrê-la do mapa. De forma arrogante e onipotente, não só dormiu com o vizinho sanguinário, grupo que deveria eliminar, como o instigou com assentamentos, cercos e humilhações, alimentando um ódio palestino inesquecível e manipulado pelo Hamas — enquanto Tel Aviv sonhava com uma ilusória estabilidade da Faixa de Gaza.

Se estivesse mais alerta, Israel poderia ter abortado, contido ou dissuadido o ataque absurdo? A polarização exaure e atordoa outros países do mundo, inclusive o Brasil, perturbando o foco. A divergência converteu-se em ódio, conflito de opinião virou intolerância pessoal e inimizade. Reduzem-se todos a suas posições ideológicas, como se estas fossem a síntese do caráter. A própria formação da personalidade é abortada e simplificada pelo slogan político, time de futebol e gênero. A singular subjetividade de cada um foi reduzida, e assim é mais fácil matar ou morrer em guerras — invasão da Ucrânia e de Israel — que apontam para o retorno da barbárie que os iPhones de titânio anunciam.

O mundo virou uma estreita faixa de gente amontoada em redes sociais, todos muito perto uns dos outros em pequena aldeia digital, onde a intolerância é exponencial. Já vi análises que atribuem ao mundo multipolar a causa do caos atual, evocando a nostalgia dos fortes atores da era bipolar, ou até da unilateral pax americana. Mais um pouco, e teremos de voltar a ler “Totem e tabu”, de Freud, para entender o que se passa. Enfim, o assassinato do pai primevo, a emergência de uma luta fratricida caótica — e isso pode acabar em fascismo, ou no reforço das leis e da civilização.

O curioso é que, em vez do mundo multipolar, emerge um binarismo político e cultural paradoxal no interior das nações e entre as pessoas. Como se, no alfabeto, só existissem letras como L ou B. Mas o alfabeto vai do A ao Z. Com todas essas letras, somos capazes de formar criativamente infinitas ideias lúcidas e independentes. A política não precisa ser essa simplificação ideológica mediocrizada, com ridículas adesões impensadas, mecânicas e automáticas.

A faixa da esquerda míope tem pudor de condenar o Hamas, como se este representasse o povo palestino em seu inequívoco direito a um Estado independente (que torcemos para ser constituído em breve). Pensar que o Hamas representa os palestinos é uma mentira e um contrassenso que acaba desacreditando e deslegitimando toda a esquerda que não pensa desse jeito, dando munição que seus adversários agradecem. O grupo terrorista na verdade é o carrasco totalitário de seu povo. Ao ameaçar eliminar Israel, e constantemente atacá-lo, sem acenar para uma saída, se deslegitima, provoca respostas mortíferas e acirra o extremismo israelense, além de adiar a paz e a constituição de um Estado da Palestina.

*Paulo Sternick é psicanalista

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