Valor Econômico
Do ponto de vista de nossas tradições, o Dia das
bruxas é uma bobagem. No Brasil nós não temos bruxas; temos feiticeiros, que
nos vêm de outras tradições, indígenas e africanas
Neste final de outubro, tivemos em vários
lugares do Brasil, especialmente em grandes cidades como São Paulo, o ainda
esboço de uma comemoração infantil estranha, sem convicção enraizada, a do Dia
das Bruxas. Faz poucos anos que no 31 de outubro, à noite, crianças em grupo
batem ao portão de minha casa e me interrogam ou à minha mulher: “Doçuras ou
travessuras?”.
Na primeira vez em que isso aconteceu, nós não sabíamos o que fazer, não conhecíamos o “script”. Embaraçados, perguntamos às crianças o que elas esperavam que fizéssemos. Uma delas, quase adolescente, deu-nos uma aula bem didática sobre o assunto. Queriam doces.
Por sorte, numa compoteira, minha mulher de
vez em quando guarda balas ou bombons. Mas aquilo era insuficiente, e o
desapontamento das crianças nos sugeriu que no ano seguinte nos provêssemos
para não frustrá-las. Desde então, na véspera da data, compramos suficiente
variedade de balas e as colocamos em algumas dezenas de saquinhos para que não
faltem a nenhuma.
Sociólogos, fazemos observações para decifrar
e compreender essa novidade estrangeira. Na visita, são pouquíssimas as
crianças de nosso bairro de classe média. Mas são numerosas as de bairros
vizinhos, especialmente as das várias favelas do redor.
Cada um desses grupos tem organização social
peculiar. Os da classe média vêm acompanhados por um membro mais velho de uma
das famílias. Fica claro que mais para proteger os pequenos visitantes contra
os visitados. São eles personagens inocentes de uma sociedade imaginária de
inimigos.
‘Os das favelas vêm acompanhados por alguns
adolescentes, moleques, com clara responsabilidade pela ordem, pelo respeito
dos mais velhos em relação aos direitos dos mais novos. Zelam pelos valores
sociais.
Os da classe média terminam o ato dizendo ao
dono da casa “muito obrigado”. É só agradecimento, mediado pela materialidade
econômica da relação. Os das favelas invariavelmente o terminam dizendo-lhe
“Deus o abençoe”. É agradecimento e retribuição, pagamento moral da dádiva, com
base numa concepção das sociedades tradicionais: o agradecimento só é
verdadeiro se for, simbolicamente, retribuição maior do que o recebido.
Não é necessário que as crianças saibam
exatamente o que estão fazendo. Mas elas sabem, porque “sentem” que, se não o
fizerem, alguma omissão entrou naquela relação provisória e temporariamente
curta entre elas e quem as recebe e lhes dá um doce.
“Halloween” é, do ponto de vista de nossas
tradições, uma bobagem. No Brasil nós não temos bruxas, manipuladoras do mal.
Temos feiticeiros, que nos vêm de outras tradições, indígenas e africanas, e
que têm funções mágicas inacessíveis aos não iniciados. Portanto, é algo sem
sentido.
No Vale do Paraíba, há uns 20 anos, surgiu um
movimento dos fazedores de sacis para contrapor-se ao “Halloween”, mas não
pegou.
No diário de um fazendeiro paulista do fim do
século XIX, encontrei uma primeira referência a um Papai Noel com árvore de
Natal e neve falsa, de algodão. A novidade veio através de uma loja de produtos
importados, de que eram clientes os ricos de então, produtores de café, que
recebiam créditos de suas exportações em moeda estrangeira.
Para dar uso a esse dinheiro “de fora”, eram
induzidos por seus intermediários, as casas comissárias, a consumir produtos e
serviços no exterior ou do exterior. Até dentistas eram consultados na Europa
e, não raro, roupa europeia era enviada para tinturarias de lá para a devida
lavagem.
O avô de Tarsila do Amaral, grande
fazendeiro, morava na roça. Tinha por hábito tomar, ao jantar, sopa
liofilizada, de vegetais desidratados, importados da França. Quando ali mesmo,
ao pé do terreiro de suas fazendas, podia cultivar e delas consumir verduras
frescas.
Ser importado, nem a risada de Papai Noel tem
algo a ver conosco. Aquele pavoroso “ho, ho, ho” é mais para assustar adulto do
que para agradar criança. O nosso Papai Noel é tão estrangeiro que vem do polo
Norte e não do polo Sul, aqui perto. Talvez porque aqui se tenha pinguins e
seria o cúmulo se um deles, amantes do frio, nos visitasse com roupas para
aquecê-lo.
Ainda me lembro das celebrações de Natal e de
Reis dos meus tempos de criança. Na cidade, onde morávamos, era lugar da visita
de Papai Noel, que trazia ricos presentes para as crianças ricas e pobres
presentes para crianças pobres. Foi meu primeiro indício de injustiça social.
Na roça, na casa de meus avós, ainda se
celebrava, como no período colonial, no dia 6 de janeiro, a Festa dos Santos
Reis, uma festa religiosa. E não no Natal. Lá, era o dia de batata doce assada
no braseiro do fogão de taipa para as crianças. Era dia de celebração religiosa
diante do oratório e não dia de loja.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do
instante” (ed. Unesp, 2021).
Um comentário:
O colunista provavelmente desconhece uma das mais famosas tradições de Florianópolis: as BRUXAS! Portanto, a ausência de bruxas no Brasil não é uma regra. Como exemplo, um material bem simples e visual no link:
https://catarinas.info/web-stories/das-bruxas-as-benzedeiras-os-misterios-da-ilha-da-magia/
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