O Globo
Culpados, com sentenças em todas as
instâncias, não são declarados inocentes. Apenas se arranja uma formalidade, e
todo mundo livre
Quando a descoberta dos casos de corrupção
estava no auge, derrubando políticos e empresários, tive uma boa conversa com
Fernando Henrique Cardoso, já ex-presidente, sobre as relações perversas entre
os interesses públicos e privados no Brasil. Um grande empresário, que começava
a ser apanhado, havia dito a interlocutores que estava em curso a formação de
ampla aliança para acabar com aquela sangria. FH estaria nesse movimento.
De jeito nenhum, disse o ex-presidente quando
o procurei para checar a história. Lembro que ficou bem incomodado. Falou com
várias pessoas para entender e desmentir a versão do empresário — que, aliás,
acabou preso e fez delação.
Para além dos fatos, a questão que colocava para o político e sociólogo FH era a seguinte: como o país havia sido tão tolerante com a corrupção? Pensando bem, o que mais chamava a atenção na Lava-Jato e noutras operações não era propriamente a roubalheira revelada, mas o fato de, finalmente, apanharem os corruptos.
Caramba! Pegaram os caras — essa parecia a surpresa.
FH apontou para certa cultura espalhada pela
sociedade: em geral, as pessoas acham que, aparecendo a chance, têm o direito
de se aproveitar do Estado. Ou melhor, têm o justo privilégio de obter alguma
vantagem. Isso vai desde tirar uma casquinha, como estacionar num lugar
proibido ou cavar uma mordomia para o Sambódromo, até roubar a Petrobras ou
assaltar o Orçamento da União.
O ex-presidente então me contou algo que
acontecera naquele dia mesmo. Um familiar pedira a ele para usar o carro
oficial, com motorista, à disposição do ex-presidente. Para ir ao aeroporto. FH
explicou: o veículo era “institucional”, para uso oficial de uma autoridade.
Ofereceu-se para pagar um táxi. Disse que o familiar reclamou da má vontade.
O antropólogo Roberto DaMatta tem tratado
desse tema. Cita Oliveira Viana para acentuar a chave da política nacional:
“Temos todas as coragens, menos a de negar o pedido de um amigo”.
Adhemar de Barros, que foi governador de São
Paulo, sabia bem. Dizia:
— Amigo meu não fica na estrada.
E nomeava todo mundo.
E hoje? Parece que estamos voltando ao
normal. O empresário ali do início foi ao Judiciário para anular a delação e
cancelar as multas. Está quase conseguindo. As condenações aos corruptos têm
sido anuladas. Reparem: os então culpados, com sentenças em todas as instâncias
jurídicas, não são declarados inocentes. Apenas se arranja uma formalidade, e
todo mundo livre. Os réus ficam satisfeitos. Não lhes ocorre pleitear uma
sentença de absolvição. Preferem seguir na linha do “não aconteceu nada”.
Os pedaços do bolo continuam na mesa. Nesta
semana, o Tesouro Nacional divulgou estudo mostrando que os tribunais
brasileiros gastaram 1,6% do PIB em 2021,
algo como R$ 160 bilhões. São os mais caros entre 53 países analisados. Do
total, nada menos que 80% (perto de R$ 130 bilhões) correspondem a remuneração
de juízes e servidores. E onde estão os melhores salários? No Judiciário — onde
os próprios interessados inventaram truques para ultrapassar o teto salarial de
R$ 41 mil por mês, que já não é pouca coisa.
Segundo dados do IBGE,
a renda média real do trabalhador brasileiro chegou a R$ 3.034 no final do ano
passado. Em alta. Mas ganhar 13 vezes mais que a média nacional não parece
suficiente. São frequentes as remunerações que ultrapassam de longe os R$ 41
mil, tudo no rigor da lei, interpretada pelos próprios juízes. Se os juízes
consideram normal que eles próprios fixem seus salários, e fazem isso
generosamente, onde reclamar? É como se um juiz atendesse ao pedido do outro,
seu amigo.
A gente até entende que as pessoas achem
melhor buscar suas próprias vantagens. Se os de cima podem, por que não os de
baixo? Como dizia Stanislaw Ponte Preta, nos anos 1960: “Restaure-se a
moralidade ou locupletemo-nos todos”.
O problema é que não tem para todo mundo. Se
você não tem amigos no governo, cai no rigor da lei. É por isso que se vê essa
onda de nomeações quando um partido ou um grupo chegam ao poder. Melhor
aproveitar. O que queriam, que nomeassem os inimigos?
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