Os líderes do pós-Guerra negaram-se a entregar o destino das massas ao liberalismo econômico dos anos 20, embrião do nazifascismo
Vou perturbar os leitores de CartaCapital com
considerações a respeito das duas dimensões que convivem nas sociedades
capitalistas: as necessidades e aspirações coletivas de boa vida dos cidadãos e
os interesses particularistas que se realizam através do mercado. Nesse jogo,
crucial para a vida moderna e civilizada, deve-se reconhecer que a convivência
entre os interesses contrapostos exige um exercício permanente das políticas
comprometidas com a soberania popular e com o bem-estar dos cidadãos.
O debate contemporâneo está contaminado por
indagações binárias do tipo “é isto ou aquilo”. Estado ou Mercado?
É ousadia deselegante um modesto economista
invocar um filósofo da estatura de Hegel para arrostar essa banalidade. Mas vou
cometer tal impropriedade. Na Introdução à Ciência da Lógica o mestre de Iena
asseverou:
“Quando as formas são tomadas como
determinações fixas e consequentemente em sua separação uma da outra, e não
como uma unidade orgânica, elas são formas mortas e o espírito que anima sua
vida, a unidade concreta não reside nelas. …O conteúdo das formas lógicas nada
mais é senão o fundamento sólido e concreto dessas determinações abstratas”.
As lideranças democráticas subiram os
impostos sobre os ricos e, assim, ensejaram a prosperidade
A unidade orgânica entre as dimensões do capitalismo foi reconhecida no acolhimento dos direitos sociais e econômicos, na posteridade da Segunda Guerra Mundial por europeus e americanos. Roosevelt, Atlee, De Gaulle, De Gasperi e Adenauer sabiam que não era possível entregar o desamparo das massas aos desvarios do liberalismo econômico dos anos 20, matriz das soluções nazifascistas que demoliram as liberdades. Por isso, sacralizaram os princípios do liberalismo político para expurgar da vida social o arranjo econômico liberal dos anos 20, origem dos totalitarismos.
Ao impor o reconhecimento dos direitos do
cidadão, desde o nascimento até a morte, as lideranças democráticas subiram os
impostos sobre os afortunados e, assim, ensejaram a prosperidade virtuosa,
igualitária e garantidora das liberdades civis e políticas nos Trinta Anos
Gloriosos.
Na periferia do capitalismo, o
desenvolvimentismo dos anos 50 e 60 imaginou que o crescimento econômico
resolveria naturalmente os desequilíbrios sociais e econômicos herdados da
sociedade agrário-exportadora e semicolonial. A despeito de suas façanhas, o
desenvolvimentismo transportou as iniquidades do campo para as cidades, onde,
até hoje, as mazelas da desigualdade e da violência sobrevivem expostas nas
periferias e nos morros.
As dificuldades econômicas, sociais e
políticas em curso só vão recuar se as intolerâncias forem dissolvidas no
compromisso, sem abdicar das convicções. Ela não vai ser resolvida com as
truculências do personalismo exclusivista e muito menos com os exclusivismos
das truculências individualistas. Sem a percepção das verdadeiras razões do
retrocesso que nos aflige e da necessidade de juntar forças, haverá, sim,
ressentimento, incerteza política, crise social e turbulência financeira.
No seu célebre artigo O Fim do Laissez-Faire,
John Maynard Keynes ironizou a ideia de que a busca do interesse privado
levaria necessariamente ao bem-estar coletivo: “Não é uma dedução correta dos
princípios da teoria econômica afirmar que o egoísmo esclarecido leva sempre ao
interesse público. Nem é verdade que o autointeresse é, em geral, esclarecido”.
Conservador, Keynes professava a crença de
que a sociedade e o indivíduo são produtos da tradição e da história. Tinha
horror ao utilitarismo de Bentham e cultivava os valores de uma moral
comunitária, antivitoriana e, portanto, radicalmente antiutilitarista. Isso não
quer dizer que recusasse o programa da modernidade, empenhado no avanço das
liberdades e da autonomia do indivíduo. Não acreditava, porém, que a promessa
pudesse ser cumprida numa sociedade individualista, em que os possuidores de
riqueza orientam obsessivamente o seu comportamento para as vantagens do ganho
monetário.
O “amor ao dinheiro”, dizia, é o sentimento
que move o indivíduo na economia mercantil-capitalista. Fator de progresso e de
mudança social, “the love of money” pode transformar-se em um tormento para o
homem moderno. Seus efeitos negativos precisam ser neutralizados mediante a
ação jurídica e política do Estado e, sobretudo, pela atuação de “corpos
coletivos intermediários”; como, por exemplo, um Banco Central dedicado à
gestão consciente da moeda e do crédito.
Keynes acreditava que a cura para os males do
capitalismo deve “ser buscada, em parte, pelo controle da moeda e do crédito
por uma instituição central e, em parte, por um acompanhamento da situação dos
negócios, subsidiados por abundante produção de dados e informações”.
Keynes falava “da direção inteligente pela
sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados”;
particularmente os processos que envolvem as decisões de investimento, ou seja,
a criação de riqueza nova.
Na Teoria Geral, Keynes tratou do caráter
instável do investimento privado, concebido por ele como uma vitória do
espírito empreendedor sobre o medo decorrente da “incerteza e da ignorância
quanto ao futuro”. É a tensão não mensurável entre as expectativas a respeito
da evolução dos rendimentos do novo capital produtivo e o sentimento de
segurança proporcionado pelo dinheiro que vai determinar, em cada momento, o
desempenho das economias de mercado. A vida do homem comum vai depender do
volume de gastos que os capitalistas – detentores dos meios de produção e
controladores do crédito – estarão dispostos a realizar, criando mais renda e
mais emprego. O destino da sociedade é decidido na alma dos possuidores de
riqueza, onde se trava a batalha entre as forças de criação de nova riqueza e o
exército negro comandado pelo “amor ao dinheiro”.
Sem a percepção das razões do retrocesso,
haverá crise social e turbulência financeira
As decisões de gasto estão subordinadas às
expectativas dos capitalistas – enquanto possuidores de riqueza monetária – do
sistema bancário em derradeira instância – de abrir mão da liquidez, criando
crédito e incorporando novos títulos de dívida à sua carteira de ativos.
Nos momentos em que o medo do futuro atropela
o espírito de iniciativa, a demanda capitalista por riqueza pode concentrar-se
em ativos líquidos já existentes, inchando a circulação financeira e alterando
negativamente os preços dos papéis (e, portanto, as taxas de juro), com
prejuízos para o emprego e a renda da comunidade. Essa demanda não suscita o
aumento da produção e a contratação de novos trabalhadores para satisfazê-la.
Por isso, o investimento não deve ser deixado exclusivamente aos caprichos do
ganho privado. Entregues à sua lógica, os mercados são incapazes de derrotar a
incerteza e a ignorância.
A especificidade da ação econômica, numa
sociedade em que as decisões são “descentralizadas”, é definida pelo caráter
crucial das antecipações do grupo social que detêm o controle da riqueza e que
deve decidir o seu uso a partir de critérios privados. Por um lado, os planos
individuais de utilização da riqueza não podem ser pré-reconciliados; de outra
parte, os resultados não intencionais do turbilhão de ações egoístas modificam
irremediavelmente as circunstâncias em que as decisões foram concebidas. Há, portanto,
uma dupla incerteza.
Os detentores de riqueza sob a forma
monetária são obrigados a apostar que nenhum fenômeno perturbador vai ocorrer,
entre o momento em que tomam a decisão de empregar o seu dinheiro na
contratação de fatores de produção e a recuperação, no futuro, desse valor
monetário acrescido do lucro. Tais decisões são tomadas individualmente na
suposição ilusória de que o futuro vai continuar reproduzindo o passado.
Keynes não estava negando a possibilidade de
funcionamento das economias descentralizadas. Estava sugerindo que, ao
contrário do que procurava demonstrar a bela arquitetura dos modelos de
equilíbrio geral, a reprodução dessas sociedades não estava garantida. Estava,
sim, amparada em convenções precárias que poderiam ser desfeitas por impulsos,
medos e súbitas mudanças no estado de expectativas da classe social que tem o
monopólio dos meios de produção. Essa classe de empresários e de senhores da
finança desfruta de uma posição de poder que nasce da posse dos meios de
produção e do controle do crédito. Podem usá-lo para promover o próprio
enriquecimento, em benefício do conjunto da sociedade ou simplesmente
entregar-se ao “amor do dinheiro” e à proteção patrimonial, produzindo a
pobreza coletiva.
O nascimento das Ciências Sociais e da
Economia tem a ver basicamente com a questão das condições de reprodução de uma
sociedade fundada na divisão social do trabalho, na “separação” entre os
indivíduos e na busca do enriquecimento privado. Keynes e Marx, como Hobbes,
trataram dessa questão, acima de todas as demais. O importante, porém, não foi
a forma específica como cada um deles a tratou, mas o fato de que procuraram
demonstrar o caráter problemático da reprodução desse sistema social e
econômico.
Não falaram apenas de crises de
funcionamento, de desajustes passageiros quase autorregeneráveis, mas da
possibilidade de um colapso nos processos de coordenação que ensejam a
compatibilização das decisões descentralizadas. Um determinado grupo de indivíduos
é responsável, nessas sociedades, pelas decisões cruciais. Não é suficiente que
sejam sábios, prudentes e virtuosos. Não haverá sabedoria ou virtude capaz de
livrá-los de decisões socialmente insensatas, simplesmente porque eles não
podem abandonar seus impulsos de acumular riqueza abstrata. Tampouco podem –
recorrendo à lógica e ao cálculo de probabilidades – adivinhar o futuro. Estão
condenados a construir o futuro a cada momento, com o precário conhecimento do
passado.
O incômodo causado por Keynes aos que
postulam o paradigma da “racionalidade” foi e tem sido considerável. A
inexistência de bases “racionais” para a tomada das decisões econômicas
cruciais aproxima perigosamente a economia e suas pretensões científicas do
“inferno irracional” que os economistas imaginam cercar as decisões políticas.
A corrente dominante considera não científica
qualquer teoria construída a partir da hipótese que afirma o caráter crucial
das decisões capitalistas. Se há decisões que podem “criar o futuro”, o
processo econômico está mergulhado no fluxo do tempo histórico, que, dizem, só
passa uma vez pelo mesmo lugar. A economia, transformada num “saber histórico”,
converteria os economistas em cidadãos de segunda classe na hierarquia da
comunidade científica.
*Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital,
em 31 de janeiro de 2024.
3 comentários:
Brilhante! Belluzzo escreve com clareza e simplicidade sobre as coisas mais básicas da Economia e da nossa sociedade! Parabéns ao colunista, e ao blog que divulga seu trabalho.
Achei muito difícil o artigo.
Daniel gostou?É lixo petralha.MAM
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