Folha de S. Paulo
Tudo indica que nos EUA a onda de populismo
autoritário voltará com mais força e fúria
É um equívoco achar que as marés simplesmente
passam. Elas vêm e voltam. E tudo indica que nos Estados Unidos a onda de
populismo autoritário, encabeçada por Donald Trump,
retornará com mais força e fúria. Ressentido, Trump não poupará esforços para
romper as amarras estabelecidas pela Constituição para que possa exercer o
poder sem embaraços.
Se há uma característica comum às diversas
vertentes do populismo autoritário é o seu anti-institucionalismo. As
instituições liberais, criadas para estabilizar relações e conter o exercício
arbitrário do poder, devem ser subjugadas ou capturadas, para atender os
desígnios do líder populista.
O emprego da Abin para investigar opositores e autoridades vistas como inimigas por Bolsonaro, além de proteger familiares, se comprovado, é uma amostra de como populistas autoritários instrumentalizam as instituições para atender seus objetivos.
Distintamente dos Estados Unidos, as
instituições constitucionais brasileiras se demonstraram mais habilitadas a
enfrentar este último ciclo de ascensão de um populista autoritário. Certamente
nossa acidentada história política, marcada por golpes, regime autoritários e
também por marés populistas, levaram o constituinte de 1988 a ser mais
cuidadoso ao dispersar o poder e fortalecer as instituições de controle,
especialmente os tribunais, de maneira que a captura e subordinação dessas
instituições por um aventureiro de plantão se tornasse mais difícil.
Somado a isso, estabelecemos regras duras
para aqueles que são desleais à democracia. No campo eleitoral, o abuso de
poder político e o ataque às regras e instituições eleitorais pode levar a
inelegibilidade, como aconteceu com Bolsonaro. Da mesma forma, o direito penal
foi mobilizado para a defesa do Estado democrático de Direito, com a sanção da
lei 14.197, em setembro de 2021, que substituiu a velha Lei de
Segurança Nacional.
Necessário anotar que a aplicação da lei
penal contra aqueles que conspiraram contra a democracia em 8 de janeiro ainda
tem se demonstrado muito seletiva. Mandantes, financiadores, incitadores e
aqueles que criaram uma cerca de proteção ao baixo clero golpista continuam
impunes.
O sistema de defesa da democracia montado a
partir de 1988 demonstrou, no entanto, outras fissuras. O exercício monocrático
do poder conferido ao presidente da Câmara dos
Deputados, para dar início ao processo de impeachment, e ao
procurador-geral da República, para investigar e processar crimes comuns
eventualmente praticados pelo presidente da República, aponta para problemas a
serem corrigidos. Numa República não deve haver poder pessoal incontrastável.
Mais do que isso, essa falha no sistema,
levou à necessidade de um engrandecimento do poder do Supremo, para suprir a
omissão de outras esferas de proteção da democracia. Passada a crise aguda, que
justificou uma conduta mais ativa da corte na contenção dos ataques
autoritários, é fundamental que se busque desescalar o emprego dos mecanismos
da "democracia defensiva". Especial atenção deve ser conferida à
questão da imparcialidade do Supremo. É da imparcialidade que deriva a
principal fonte de autoridade de qualquer tribunal. Ministros que se tornaram
alvos preferenciais das investidas antidemocráticas não podem permanecer
responsáveis pela apuração de condutas de que foram vítimas.
Como alertava Benjamin Cardozo, histórico
juiz da Suprema Corte norte americana, os juízes não estão a salva das grande
marés e correntes que engolfam as demais pessoas. E elas vêm e voltam.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
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