Folha de S. Paulo
Como nos EUA, editoras brasileiras começam a
entrar na Justiça para impedir abusos de autoridade
A Companhia das Letras, que publica "O
Avesso da Pele", entrou na Justiça para barrar o recolhimento de
exemplares do livro em bibliotecas de escolas do Paraná. Grandes grupos
editoriais nos EUA, diante da onda de censura a obras literárias que também se
alastra por lá, já adotam instrumentos jurídicos para frear o abuso de
autoridade. Se copiamos a ideia de jerico, por que não a contraofensiva
cultural?
Jeferson Tenório e seu romance —que incomoda por denunciar o racismo, não por trechos "inadequados"— estão em boa companhia. Já enfrentaram desavenças nos tribunais Flaubert, autor de "Madame Bovary"; Baudelaire, de "As Flores do Mal"; Joyce, de "Ulisses"; D. H. Lawrence, de "O Amante de Lady Chatterley"; Henry Miller, de "Trópico de Câncer"; Nabokov, de "Lolita". Todos conseguiram a liberação de suas obras para o público.
No Brasil sob ataque da burrice orgulhosa e
das armações da extrema direita, o banimento atinge até clássicos da língua. Em
2020, o governo de Rondônia pôs no índex "Memórias Póstumas de Brás
Cubas", de Machado de
Assis, elevando o patamar do festival de besteiras. Além de Machado, o
desterro alcançou Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Nelson Rodrigues,
Ferreira Gullar.
"O Avesso da Pele" —cujo expurgo se
estendeu às escolas de Goiás e Mato Grosso do Sul— é a bola da vez. Daqui a
pouco os obscurantistas vão descobrir outro título para botar na fogueira. E
sem nem sequer terem folheado a obra, quanto mais lido duas páginas. O
governador Ronaldo Caiado disse que não leu o livro de Jeferson Tenório:
"Não tive coragem". Mesmo assim o definiu: "Promiscuidade".
Chamar Caiado de cínico, inculto, infantilizado é tudo o que ele quer para inflamar as milícias digitais. Levar o caso à decisão da Justiça pode ser um remédio com mais eficácia. Há jurisprudência. "O cala-boca já morreu", garantiu a ministra Cármen Lúcia, do Supremo.
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