Revista Veja
O descaso com a educação faz o país avançar muito pouco
Nos esportes, só comemoramos o vencedor — o segundo colocado não recebe festa. Na educação, porém, consideramos vitória um avanço pessoal, ainda que seja prova de fracasso nacional. A televisão tem mostrado a fala de um jovem brasileiro celebrando ser o primeiro de sua família a ingressar em curso superior. Não há dúvida do sucesso do menino ao ser uma exceção em sua família. Mas seu sucesso pessoal e a publicidade como êxito social são provas do descaso nacional com a educação. Na terceira década do século XXI, duzentos anos depois da independência, quase um século e meio de república, quarenta anos depois da redemocratização, quinze anos de governos de esquerda, o atual ocupante do Planalto comemora o primeiro membro de uma família a ingressar no ensino superior.
A publicidade revela fracasso ao admitir que
o êxito do jovem ainda é uma exceção, sem mesmo dizer qual a qualidade de seu
curso para dar-lhe chances na vida e condições de ajudar a construir um Brasil
melhor. O governo ignora o fracasso público de não conseguir assegurar a
conclusão da educação de base com qualidade a todos os brasileiros,
independentemente da renda e do endereço de suas famílias. O jovem merece
aplausos, mas sua glória indica que dez governos democráticos ainda comemoram a
exceção devido ao descuido por não terem feito do ingresso na faculdade uma
regra natural do talento de cada jovem, de qualquer origem social.
“É como se, no lugar de promover a abolição,
comemorássemos a alforria de um jovem brilhante”
Quando o jovem brilhante e bem-sucedido que
aparece na publicidade do governo nasceu, a democracia já tinha 20 anos, o
presidente Lula já
estava no poder. Desde então, o Brasil assistiu a diversas políticas públicas
positivas que permitiram aumento substancial no número de vagas no ensino
superior, inclusive graças à adoção de cotas raciais e sociais. Sem esse
aumento de vagas e essas cotas, o jovem talvez não tivesse conseguido ser o
primeiro da família a ingressar no ensino superior, mas os governos
democráticos, inclusive de esquerda, não conseguiram fazer com que todos os
jovens terminem a educação de base em cursos de qualidade para poder caminhar
na vida em busca da felicidade pessoal, dispondo do conhecimento necessário
para participar da construção do país, e ao mesmo tempo disputar vaga no ensino
superior em condições iguais, independentemente da desigualdade social na sua
origem. O governo comemora o êxito pessoal devido ao fracasso governamental: a
justa comemoração de uma família pobre por conquistar a exceção do ingresso no
ensino superior decorre da pobreza do governo na educação de base.
É como se, no lugar de promover a abolição da
escravatura para todos, os governos ainda hoje comemorassem a alforria de um
jovem brilhante que consegue o raro feito de ser o primeiro de sua família a
sair da escravidão ao ingressar no ensino superior. Esta não é a única pobre
comemoração relacionada com a educação de base: o governo comemora o aumento no
número de famílias que recebem o Bolsa Família em
vez de comemorar a redução no número das famílias necessitadas dessa ajuda para
a sobrevivência sem fome; comemora a intenção de alfabetizar crianças aos 8
anos, quando todos já deveriam saber ler aos 5; cria auxílio para aumentar
algumas vagas em horário integral, em vez de adotar as escolas nos municípios
sem condições de educar suas crianças com máxima qualidade e total equidade, a
despeito da renda e do endereço. Precisamos parar de comemorar exceções.
*Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884
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