O triunfo da democracia
Correio Braziliense
As investigações sobre o 8 de janeiro mostram que as ideias derrotadas por Tancredo ainda encontram adeptos
Tancredo de Almeida Neves (PMDB-MG) foi escolhido presidente da República pelo Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, em eleição indireta na qual derrotou o candidato do PDS, o deputado Paulo Maluf (SP). Porém, na véspera de tomar posse, em 14 de março daquele ano, foi internado em estado grave, no Hospital de Base de Brasília, e faleceu sem tomar posse na Presidência.
O vice José Sarney assumiu o cargo e comandou um longo processo de transição do regime militar à democracia, concluído com promulgação da Constituição de 1988 e a realização de eleições diretas para a Presidência em 1988, quando foi eleito Collor de Mello. Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje exerce seu terceiro mandato à frente do Executivo, fora o candidato derrotado no segundo turno.
A agonia de Tancredo Neves naqueles dias provocou uma comoção nacional: foram sete cirurgias, duas em Brasília e cinco em São Paulo, até o dia 21 de abril daquele ano, quando faleceu. Seu legado como presidente da República eleito foi essencialmente político: derrotou o projeto de institucionalização de um regime autoritário, de características "iliberais", que manteria a tutela militar sobre a República, por meio de artifícios institucionais que a legitimassem.
Tancredo era um político liberal, egresso do antigo PSD, que fora primeiro-ministro no período parlamentarista do governo de João Goulart, de 1961 a 1962. Hábil, moderado e resiliente, em 1985, conseguiria unir um amplo leque de forças políticas, instituições democráticas e movimentos sociais em torno de sua candidatura, mesmo depois da derrota da campanha das Diretas, Já, liderada pelo presidente do MDB, Ulysses Guimarães.
A chapa de Tancredo e Sarney, a Aliança Democrática, fora formada após a derrota no Congresso, em abril de 1984, da emenda Dante de Oliveira, que previa eleições diretas para presidente da República. O mesmo parlamento que o elegeria logo depois, graças a uma dissidência da Arena, liderada por seu vice e o ex-governador da Bahia Antônio Carlos Magalhães, entre outros líderes conservadores, que formaram o PFL.
Devido à sua história política e por ser um conciliador, Tancredo era aceito pelos militares, sem risco de retrocesso político. Podemos especular sobre os rumos do país caso fosse o presidente da República nessa transição, sem os constrangimentos pelos quais passou Sarney. Provavelmente, teria feito reformas liberais para controlar a inflação e teria mais força para influenciar a Constituinte, mas tudo isso é apenas uma hipótese a posteriori.
Sarney realizou um governo social liberal, que melhorou todos os indicadores sociais do país, mas enfrentou dissabores na economia, apesar das tentativas que fez, entre as quais o ambicioso Plano Cruzado. Tampouco Collor de Mello, que o sucedeu, superou o desafio da inflação indexada. Foi somente com Itamar Franco e o lançamento do Plano Real, em 1994, que o Brasil encontrou o caminho da estabilidade monetária.
Apesar de todos os problemas, o Brasil tornou-se uma democracia de massas. Passadas praticamente quatro décadas daquele ano de 1985, precisa ser hoje permanentemente preservada. As investigações sobre o 8 de janeiro mostram que as ideias derrotadas por Tancredo ainda encontram adeptos, que precisam ser isolados e neutralizados, inclusive nas Forças Armadas, assediadas pelos golpistas.
Como? Por meio da construção de consensos nacionais, respeito às normas constitucionais e fortalecimento das instituições democráticas.
O Globo
Operação para capturar detentos que escaparam
de presídio de segurança máxima só trouxe frustração
Mais de um mês depois da fuga desmoralizante
de dois presos da Penitenciária Federal de Mossoró (RN),
concebida como presídio de segurança máxima, o governo vive um dilema. Se
mantém as operações de busca — envolvendo mais de 500 agentes de diferentes
forças com a ajuda de helicópteros, drones e cães farejadores — e não captura
os fugitivos, dois criminosos de alta periculosidade, expõe-se a um desgaste
que aumenta a cada dia. Se desmobiliza as tropas, que já apresentam sinais de
cansaço, o desgaste é igual ou até maior, uma vez que passa a imagem de
capitulação diante do crime.
Os dois presos fugiram na madrugada de 14 de fevereiro, desmontando a ideia de que os presídios federais construídos a partir de 2006 eram inexpugnáveis. É verdade que, até então, nunca haviam registrado fuga e que, na comparação com as cadeias estaduais, eles são bem mais eficazes. Não há superlotação — ao contrário, há vagas sobrando —, o controle sobre os presos e as visitas é mais rigoroso, e as chances de fuga bem mais reduzidas. Mas também são vulneráveis, como o episódio mostrou. Falhas não demoraram a aparecer: câmeras de vigilância inoperantes, buracos nas celas, facilidade para acessar a área externa, demora para perceber a fuga e dar início às buscas.
Os presos eram mantidos em celas separadas.
De acordo com investigações preliminares, fugiram por um buraco na parede
aproveitando a abertura da luminária. Usaram, segundo essa apuração, vergalhões
da própria cela como ferramenta para ampliar os vãos. Ainda não foi esclarecido
como arrancaram os vergalhões. Depois acessaram o pátio, onde encontraram um
alicate, usado para cortar o alambrado e fugir. Autoridades investigam se
receberam ajuda. Tal facilidade desmente a principal característica atribuída ao
presídio — a segurança máxima.
As operações de busca têm se concentrado nos
arredores das cidades potiguares de Mossoró e Baraúna. Cartazes com fotos dos
fugitivos foram espalhados pelas ruas. Autoridades ofereceram recompensa por
informações. A polícia prendeu pelo menos sete suspeitos de ajudar os
criminosos, mas as pistas ainda são incertas — o último relato é do início de
março. Não se sabe nem se eles ainda estão na área demarcada pelas forças de
segurança ou se já saíram do estado. Informações de inteligência sugerem que
receberam armamento vindo de Aracati, no Ceará.
Na quarta-feira, o ministro da Justiça e
Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, esteve pela segunda vez em Mossoró para
acompanhar as ações. “Vim para cobrá-los, precisava dar uma incerta, como se
diz no meio militar”, afirmou. “A polícia me garante que serão capturados, mas
não sabemos quando.” Segundo Lewandowski, enquanto houver indícios de que os
fugitivos permanecem na região, as operações serão mantidas.
O país passa por uma grave crise de segurança
pública. A violência explode
nas grandes cidades, no interior dos estados e na Amazônia, com guerras entre
facções do crime organizado, assassinatos, feminicídios, balas perdidas,
estupros, roubos em série. A fuga do presídio de Mossoró, que até então parecia
blindado, acrescenta mais um capítulo à longa lista de problemas. Capturar os
dois fugitivos — um dever do Estado — poderá aliviar a pressão sobre
Lewandowski, que assumiu o ministério em fevereiro. Mas o desgaste para o
governo já está feito.
Renegociação das dívidas estaduais tem de ser
pautada por rigor e cuidado
O Globo
A cada ano, União tem sido forçada a honrar
débitos sem que governos cumpram todos os compromissos
Desde a conquista da estabilidade monetária,
com o êxito do Plano Real, governadores frequentam Brasília em busca de alguma
solução para o pagamento de dívidas de seus estados. Assim como bancos
quebraram com o fim da hiperinflação, os estados tiveram de se adequar ao
sumiço do volume providencial de receita tributária oriunda da alta de preços.
Era renda fictícia, logo corroída pela própria inflação.
Com o anúncio feito pelo ministro da
Fazenda, Fernando
Haddad, de que enviará neste semestre um projeto de lei complementar
para disciplinar a renegociação da dívida dos estados, o governo de cada um e
as respectivas bancadas no Congresso preparam-se para tentar obter o máximo de
ajuda do Tesouro com o mínimo de ajuste nas próprias despesas. Costuma ser
forte a resistência à contrapartida de cortes nos gastos, principalmente às
restrições impostas à folha de pagamento pela Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF).
A história dessas dívidas é também a crônica
de sucessivas romarias de governadores ao Supremo Tribunal Federal em busca de
algum alívio ou mesmo suspensão de pagamento, em geral com sucesso. A situação
seria ainda pior se, com a estabilização da economia, e o início das tentativas
de repactuar as dívidas, estados e municípios não tivessem sido proibidos de se
endividar por meio do lançamento de títulos.
A cada ano, a União tem sido forçada a honrar
dívidas estaduais e municipais garantidas pelo Tesouro. E a pagar o que devem
os estados que aderiram ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) e continuam
incapazes de saldar seus débitos. No ano passado, o Tesouro pagou R$ 4,6
bilhões devidos pelo Rio de
Janeiro; R$ 3,6 bilhões por Minas Gerais (ainda
em fase de adesão); e R$ 1,4 bilhão pelo Rio Grande do
Sul. Goiás é o único outro estado no RRF.
Os estados que estão nesse regime já não
pagam suas dívidas, e suas garantias não são executadas pela União. Desde 2016,
o Tesouro gastou R$ 63,9 bilhões para honrar operações de crédito de estados e
municípios e recebeu apenas R$ 5,62 bilhões em garantias — nem 10% do total. No
ano passado, a despesa do Tesouro alcançou R$ 12,3 bilhões, 25,5% a mais que os
R$ 9,8 bilhões de 2022. A inadimplência dos estados sempre desemboca em nova
rodada de renegociação de dívidas.
Um dos indicadores da saúde financeira de
qualquer ente federativo é a relação entre a dívida e a receita corrente
líquida. O máximo permitido pela LRF é 200%. No ano passado, o Rio de Janeiro,
líder do ranking de endividamento, chegou a 188,4%. O Rio Grande do Sul, a
185,2%. Minas, a 168,2%. Os três estados ficaram também acima do “limite
prudencial” de 46,6% para gastos com pessoal. Evidentemente as finanças
estaduais não podem ser sufocadas para não inviabilizar serviços essenciais à
população em áreas como saúde, educação ou segurança. Mas os estados precisam
honrar as contrapartidas exigidas pelo RRF, reduzindo gastos com pessoal e
previdência. Do contrário, continuarão insolventes, e as renegociações não
passarão de faz de conta à custa do contribuinte.
Rússia faz eleição com democracia degradada
Folha de S. Paulo
Mais uma vitória esperada de Putin, por
grande margem, é um exemplo de manipulação do sistema para fins autoritários
A dúvida não
é se Vladimir Putin vencerá a eleição russa em curso, mas se
vai superar 80% dos votos. Em 2018, ele marcou 76,7%; a atual ocorre em meio a
uma guerra, com aumento da repressão sobre a oposição e esforços do governo
para ampliar o comparecimento à aprovação do autocrata.
O sufrágio será realizado durante três dias,
de sexta (15) a domingo (17), e com a possibilidade de os cidadãos depositarem
o voto online, que críticos apontam como passível de monitoramento e pressão
por empregadores.
Apesar de ser um jogo de cartas marcadas, o
pleito ainda servirá para dar pistas valiosas sobre a popularidade de Putin.
Aqui, é preciso distinguir entre diferentes tipos de eleições manipuladas.
Ditadores árabes se especializaram em
vitórias hiperbólicas. Em 2002, Saddam Hussein foi aprovado por 100% dos
iraquianos. O presidente sírio Hafez al Assad (1971-2000) era mais modesto,
nunca superou os 99%. Também em 2002, o presidente Zin El Abidin Ben Ali, da
Tunísia, ficou com 99,5%.
É possível que, nesses casos, os votos nem
sequer fossem contados, já que os resultados viriam prontos do gabinete
presidencial.
Na Rússia, não há fraude tão escancarada. A
influência indevida ocorre principalmente por meio de regras eleitorais
enviesadas, que beneficiam sobremaneira o autocrata, propaganda oficial maciça,
pressão via empregadores próximos ao governo e, em especial, controle sobre a
oposição.
Putin elimina na origem qualquer candidato
que possa fazer-lhe sombra ou apenas levantar problemas que não quer ver
mencionados.
Ademais, a vida do russo médio melhorou
substancialmente desde que ele assumiu o poder, em 2000, e foram contornadas
sanções econômicas impostas ao país por causa da guerra na Ucrânia.
Ou seja, mesmo sem artimanhas eleitorais, o
autocrata provavelmente venceria. Pesquisa do respeitado Instituto Levada de
fevereiro indicou que Putin tem 86% de popularidade —ressalvando-se o risco de
manifestar desaprovação a um líder de regime autoritário.
De todo modo, a situação do russo é diferente
da de Nicolás Maduro, por exemplo. Se o venezuelano organizasse uma eleição
limpa, a chance de derrota seria enorme.
Desde que o bolivarianismo foi derrotado nas
eleições legislativas de 2015, todos os pleitos são manipulados no país, o que
inclui a eleição do próprio Maduro em 2018 e a planejada para julho deste ano,
da qual todos os
candidatos competitivos da oposição foram excluídos.
A insistência, por vezes patética, de tiranos
em simular banhos de votos para tentar legitimar seus governos diz algo sobre o
valor do sistema democrático.
Alimentos no radar
Folha de S. Paulo
Lula indica preocupação com comida mais cara;
fenômeno tende a se esgotar logo
Como seria de esperar, a queda da
popularidade observada nas últimas pesquisas não tardou em provocar reação de
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e seu governo.
Além da surrada estratégia de apontar o
mercado e o Banco Central como bodes expiatórios, o Planalto fez saber que
está preocupado
com a alta recente dos preços dos alimentos, um suposto motivo de
insatisfação do eleitorado.
De fato, nos últimos meses houve
encarecimento de diversos artigos de peso na cesta de consumo popular,
ocasionado principalmente pelo fenômeno climático El Niño, que altera o regime
de chuvas e temperatura nos meses do verão.
Entre dezembro e fevereiro, a alta no grupo
de alimentação no domicílio do IPCA ficou em 4,3%, com destaque para
hortifrutigranjeiros, culturas em sua maioria de ciclo curto que são muito
impactadas pela mudança do clima.
Tubérculos, raízes e legumes, por exemplo,
subiram 25% no período. Arroz e feijão também ficaram 17% e 31% mais caros,
respectivamente. Frutas avançaram 13%.
Também houve impacto negativo na safra de
grãos, que terá produtividade menor que a observada no ano passado. Nesse
grupo, porém, a pressão permanece controlada, dados os estoques elevados e
menos compras da Argentina.
No geral, a perspectiva é de esgotamento
dessa tendência nos próximos meses. Espera-se que a inflação de alimentos fique
em torno de 3,5% neste ano, muito abaixo da média de quase 12% ao ano do
período 2019 a 2022.
Sempre é pertinente que o governo aperfeiçoe
mecanismos como estoques reguladores, financiamento ao pequeno produtor e
seguros para a safra. Mas o setor já é amplamente subsidiado e conta com
crédito abundante, de modo que não fariam sentido aportes adicionais do poder
público.
Para além desse tema, a gestão petista deveria evitar que a ansiedade com a queda da aprovação de Lula leve a uma nova rodada de alta de gastos públicos e outras medidas imprudentes. As consequências nocivas para o bem-estar da população teriam tempo de sobra para se materializarem até o fim do mandato presidencial.
A ressocialização do Zé
O Estado de S. Paulo
Concorrida festa de aniversário de Dirceu
mostra que o petista, preso três vezes por corrupção, não perdeu o ar de
‘consigliere’. O risco é de que a ressaca do rega-bofe recaia sobre o País
A comemoração pelos 78 anos de José Dirceu,
na quinta-feira passada, mostra que o sistema penitenciário brasileiro
funciona: o petista, devidamente ressocializado depois de ter sido preso três
vezes, reuniu em torno de si boa parte da cúpula do poder numa mansão do Lago
Sul, em Brasília. O beija-mão que se viu naquela festa mostrou que nenhum dos
inúmeros reveses jurídicos e políticos de que Dirceu padeceu por ter se metido
em toda sorte de malfeitos durante os primeiros mandatos do presidente Lula da
Silva parece ter lhe tirado os ares de consigliere.
Nem parecia que os cerca de 500 convidados do
aniversariante – entre os quais figuravam políticos de todos os matizes,
advogados, empresários e jornalistas – estavam reunidos em torno de um
criminoso condenado por delitos graves em várias instâncias do Poder
Judiciário. Decerto a costelinha de porco, o feijão tropeiro, o sorvete do Pará
e a perspectiva de poder oferecidos no banquete pareceram tão saborosos aos
convivas que a vergonha passou longe dali.
Não se sabe exatamente por que Dirceu
celebrou seu aniversário, que é hoje, na quinta-feira. O fato é que Brasília é
conhecida por se tornar um deserto nos fins de semana. Sendo a festa num dia
útil, convenientemente, puderam abraçar Dirceu – e lhe emprestar prestígio – o
vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, o presidente da Câmara, Arthur
Lira, o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e o deputado Guilherme
Boulos, pré-candidato à Prefeitura de São Paulo. Postulantes à sucessão de Lira
no comando da Câmara, os deputados Elmar Nascimento, Marcos Pereira, Antonio
Brito e Isnaldo Bulhões foram outros que, entre um brinde e outro, foram ouvir
os conselhos do mandachuva petista.
Lula não prestigiou o amigo, mas, além de
Alckmin, fez-se representar pelos ministros José Múcio Monteiro (Defesa),
Fernando Haddad (Fazenda), Nísia Trindade (Saúde), Alexandre Padilha (Relações
Institucionais ) e Silvio Costa Filho (Portos e Aeroportos).
A noite de festa pode ter sido maravilhosa
para todos os que lá estiveram. Mas, para a grande parcela da sociedade
brasileira que não perdeu a memória nem o juízo, o bolo servido foi indigesto.
Num discurso que soou quase como uma ameaça
ao País que deseja se desenvolver social e economicamente com responsabilidade,
Dirceu defendeu não só a reeleição de Lula em 2026, como ainda mais um mandato
petista, no mínimo, até 2034. “Nós (os petistas) não temos mais 30, 40 anos.
Nós temos dez anos para fazer as mudanças”, disse o aniversariante. “Nós não
chegamos ao governo com maioria no País. Nós chegamos ao governo pelas
circunstâncias históricas do bolsonarismo.”
Deve-se reconhecer que José Dirceu, um dos
líderes de facto do PT, segue sendo um dos mais argutos e lúcidos estrategistas
políticos do partido. Sua clareza de diagnóstico sobre as circunstâncias
excepcionalíssimas que permitiram a volta de Lula e do PT ao poder parece
faltar ao próprio presidente da República. Não se sabe se Lula tem a
compreensão de que o que levou uma apertada maioria de eleitores a reabilitá-lo
nas urnas foi o golpismo bolsonarista. O que seus atos e palavras demonstram,
na direção diametralmente oposta, é que ele parece acreditar que sua vitória
representou a chancela do eleitorado à agenda petista.
Que não haja ilusões. Dirceu está em franca
campanha para voltar formalmente ao poder. Se Lula hoje, com um séquito de
auxiliares que nem remotamente têm a história e a experiência política de seus
primeiros assessores palacianos, já está inclinado a retomar políticas que,
comprovadamente, quase levaram o Brasil à ruína no passado recente, tanto pior
será com alguém muito mais inteligente e capaz, como Dirceu, a seu lado nessa
empreitada rumo ao atraso.
Para que não seja o País a sofrer com a
ressaca, seria prudente que uma direita democrática e responsável se
articulasse para enfrentar essa força retrógrada. Afinal, como o próprio Dirceu
admitiu, caso a direita não tivesse sido sequestrada por um desqualificado como
Bolsonaro, o PT jamais teria voltado ao poder.
Um plano pela metade nos institutos federais
O Estado de S. Paulo
À bem-vinda iniciativa de investir na
expansão e interiorização do ensino técnico e profissionalizante, o governo
precisa urgentemente acrescentar outra tarefa: repensar o modelo
Falta uma peça essencial na engrenagem
montada pelo governo federal para ampliar a rede de Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia em todo o Brasil: definir o que deseja de fato
para o ensino técnico e profissionalizante. Os artífices dessa política
precisam apontar com mais precisão qual o modelo de ensino e gestão que estamos
construindo, algo que não se limite ao fetiche lulopetista por obras e
instalações e resulte em ganhos efetivos de longo prazo para os estudantes e o
País. Sem isso, os números eloquentes anunciados recentemente se converterão em
meras promessas e peças de marketing para o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC). Serão 100 novos campi de institutos federais, com
expectativa de criar 140 mil vagas – a maioria em cursos técnicos integrados ao
ensino médio. O governo prevê investir R$ 2,5 bilhões em novas unidades, além
de R$ 1,4 bilhão em melhorias das unidades existentes, hoje com 656 campi.
Vinda de um governo que se habituou a
concentrar esforços em demasia na abertura de novas vagas nas universidades,
como se fossem garantia de passaporte para o futuro dos nossos jovens, a
notícia é especialmente bem-vinda: a expansão e a interiorização são dois eixos
fundamentais para dar mais robustez ao ensino técnico e profissionalizante. Não
se sabe ao certo, contudo, a natureza desse modelo, dúvida que se torna mais
inquietante quando a vemos expressada até mesmo por quem acompanha o tema de
perto. Foi o caso de Claudia Costin, reconhecida especialista em Educação, que
em entrevista ao Estadão sugeriu com clareza: é hora de repensar o modelo do
ensino técnico. Mesmo elogiando a iniciativa de expandir e interiorizar a rede,
ela revelou a incerteza sobre o modelo vigente e apontou caminhos possíveis
para correções de rota.
Antes de tudo, convém ao Brasil superar a
ideia corrente segundo a qual o ensino técnico se destina a quem não faz
faculdade, e que aqueles que estão fora das universidades pertencem a um grupo
social menos privilegiado. Essa soma de preconceitos e equívocos gera problemas
por todos os lados: aos ensinos superior, médio e técnico e, claro, aos
próprios estudantes. Além disso, desvirtua uma premissa elementar: ingressar no
ensino técnico não significa impedir a opção pelo ensino superior. Algumas das
melhores experiências internacionais envolvem políticas conciliáveis.
Duas palavras-chave costumam faltar no
vocabulário educacional do PT: política pedagógica e gestão. Apesar de ambas
causarem urticária no comissariado petista, o ministro Camilo Santana sabe de
sua importância, pela experiência bem-sucedida do modelo adotado no Ceará na
educação básica. Mas o que o governo de fato espera do ensino técnico? Cursos
capazes de gerar maior empregabilidade? Atender a expectativas de muitos jovens
de usar o ensino médio como uma forma de postergar a faculdade e, ao mesmo tempo,
trabalhar na sua área, ganhando conhecimento prévio e renda? Ter formações
pensadas a partir das demandas do setor produtivo? Estimular áreas relevantes,
como tecnologia, a fim de reduzir os gaps existentes e aproveitar o potencial
presente e futuro? Servir de trampolim para o ensino superior? Por outro lado,
como planejar e aperfeiçoar a gestão das novas e atuais unidades? Haverá também
professores com formação e expertise adequadas a essas demandas?
Nada disso parece claro. Claudia Costin
mostrou modelos inspiradores: na Coreia do Sul, por exemplo, há ensino técnico
de tecnologia de ponta no nível médio; em países como Alemanha, Áustria e
Suécia, o ensino técnico dialoga com o mundo do trabalho, com formação feita
nas escolas, nos laboratórios e também nas empresas. Ao Brasil convém ainda não
ignorar a necessidade de atrelar o ensino técnico com o agronegócio, área em
que o País avança com tecnologia. Levar em conta um plano de desenvolvimento
das microrregiões pode significar, por exemplo, incentivar os jovens locais a
trabalhar no agronegócio, não só plantando, mas operando drones e inteligência
artificial.
Por ora, o que parece inquestionável é o
desejo de expansão da rede e obras. Uma iniciativa positiva, insista-se. Mas
longe de ser suficiente.
Milei perde mais uma
O Estado de S. Paulo
Se quiser aprovar o seu plano econômico, ‘El Loco’ vai ter de curvar-se ao rito democrático
O Senado da Argentina rechaçou, na
quinta-feira passada, o pacote do presidente Javier Milei para desregulamentar
a economia do país. A derrota do Decreto Nacional de Urgência (DNU) era
previsível, uma vez que a constitucionalidade do texto é questionada na
Justiça. Mas a negativa da maioria dos senadores, inclusive de expoentes da
base do governo, impõe um grande revés político para as ambições de “El Loco”
na presidência. Como de costume, Milei esperneou contra os políticos do
Congresso. Mais uma vez, perdeu a chance de encarar a razão efetiva de seu
fiasco: sua hostilidade ao diálogo.
Nada disso teria relevância não fosse o fato
de o Senado ter rejeitado pela primeira vez um Decreto Nacional de Urgência –
instrumento que, como diz o próprio nome, abarca medidas consideradas
emergenciais pela Casa Rosada. Conforme o rito congressual, o decreto ainda
passará pelo escrutínio da Câmara dos Deputados, onde o peso dos governadores
contrariados por Milei se faz presente e a bancada da oposição está bem mais
articulada. O “não” definitivo das duas Casas está no horizonte e, com ele, o
veto a boa parte das iniciativas do governo para “reconstruir” a economia.
Milei enfrenta reveses previsíveis para
cumprir os postulados de sua agenda econômica – a mesma que garantiu endosso do
Fundo Monetário Internacional (FMI) e um recente aporte de US$ 4,7 bilhões para
evitar o calote do país com a própria instituição. Em fevereiro, o segundo
pilar de seu programa para a economia, que também lhe daria poder de legislar
por dois anos, saiu do plenário e voltou à fase inicial de tramitação. Ao
contrário do DNU, parcialmente vigente por se tratar de um decreto
presidencial, as reformas elencadas na chamada Lei Ônibus estão no limbo e
correm o risco de jamais serem sancionadas.
O cenário agrava as incertezas sobre a
execução de medidas com potencial de liberalizar e desregular a economia
argentina, dar impulso ao crescimento e evitar uma rota hiperinflacionária.
Parte da oposição se dispôs a dialogar com a Casa Rosada ao dar-se conta dos
aspectos positivos dos dois pacotes. Milei, entretanto, continua a agir como o
“El Loco” da campanha eleitoral de 2023: espera o passivo amém do Congresso a
todas as suas propostas. Para piorar, teima em não aprender com seus erros.
Despejar furiosamente sua frustração sobre os políticos que ele chama de “orcs” – uma referência a personagens da saga Senhor dos Anéis cuja natureza é essencialmente destrutiva – é o pior de seus equívocos. Em três meses de governo, Milei já deveria ter constatado que, nas regras do jogo democrático, todo presidente da República enfrenta limites – mais estritos para os que, como ele, detêm minoria amadora no Parlamento – e tem de dialogar. A intransigência já lhe custou três importantes derrotas no plenário. Outras virão, com certeza, enquanto “El Loco” não se despojar de seus arroubos autoritários e reconhecer que, na Argentina, não há atalhos aos ritos do Congresso nem caminho fora da democracia.
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