Valor Econômico
Depois da aprovação da reforma tributária
pelo Congresso Nacional no ano passado, ficou tacitamente estabelecido que o
ano legislativo de 2024, sobretudo sua primeira metade, será concentrado na
regulamentação da matéria. Acreditava-se até que os deputados e senadores já
iriam iniciar seus trabalhos pautados pelo governo, que tem prazo e pressa para
enviar as propostas.
Não é exatamente assim que o ano começou. Os
parlamentares abriram o plenário propondo mudar a parte de impostos da
Constituição mais uma vez, antes de qualquer lei complementar, e espaço para
regulamentar o novo sistema é o que não falta.
Essa semana provou que a discussão tributária sem dúvida é uma prioridade, mas com uma baliza: a ampliação de tratamentos tributários diferenciados para o grupo de pressão que se articular mais rápido e tiver maior poder de fogo. A bancada evangélica se organizou e o clero terá uma reforma tributária para chamar de sua, a PEC 5/2023, do deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), já na ordem do dia da Câmara.
É a PEC que garante imunidade tributária
plena, não apenas para as finalidades essenciais das entidades religiosas, como
diz a Constituição atual, mas para todo patrimônio, renda e compra de bens e
serviços que ajudem no custeio das entidades e das obras sociais ligadas a
elas. Mais detalhes com o Confaz, até 31 de dezembro de 2025, e com o novo
Comitê Gestor, depois dessa data. No limite, haverá uma cobrança do Imposto
sobre Bens e Serviços (IBS) diferenciado para tudo que as entidades consumirem.
Antes que se regulamente a reforma, portanto, se garantirá primeiro as regras
de um regime diferenciado para um setor específico. E a reforma tributária foi
promulgada há menos de 90 dias.
A PEC 5, obviamente, é para todas as crenças,
mas quem a encabeça como autor é um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus
e quem a relatou, o deputado Fernando Máximo (União Brasil-RO), pré-candidato a
prefeito de Porto Velho, demonstra nas redes sociais grande empenho em ter o
voto evangélico. A base governista docilmente aceita a inovação constitucional
proposta por Crivella.
O voto evangélico, tanto em Porto Velho
quanto no Rio de Janeiro, é um dos pilares do voto contra o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, mas é altamente duvidoso pensar que o governo pode
conseguir criar fissuras nessa parede proporcionando vantagens financeiras para
instituições religiosas. O endosso à PEC 5 parece mais relacionado a uma
rendição ao inevitável do que a uma estratégia de sedução. A força evangélica
está nas ruas como está no Parlamento. Lula pode pactuar no Congresso, fora
dele é mais complicado.
Existem pastores, padres, rabinos, imãs,
babalorixás argentários, mas o que move eleitores religiosos são questões
ideológicas, na acepção mais comum da palavra. E neste campo os fios
desencapados com a esquerda são numerosos. O governo tem demonstrado cuidado em
não cruzar certas linhas, mas vacila.
Um exemplo: na quarta-feira, dia seguinte ao
avanço da PEC 5, o Ministério da Saúde resolveu fazer uma nota técnica
suspendendo a fixação do prazo máximo - no caso, 21 semanas e 6 dias - para a
realização de aborto legal. Esse prazo máximo foi criado pelo governo Bolsonaro
para limitar o procedimento, permitido de acordo com o Código Penal e
normatização do Supremo nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e
anencefalia.
De Boa Vista (RR), onde cumpria agenda na
quinta-feira, a ministra da Saúde Nísia Trindade, rápida como uma flecha,
determinou a suspensão imediata da nota técnica, que portanto sobreviveu por 24
horas. A nota técnica era um desastre em forma de documento. Não se trata aqui
da discussão do mérito do tema, mas do ambiente político.
Se essa medida não tivesse sido revertida,
tornaria ainda mais profundo o fosso que separa Lula de evangélicos e católicos
praticantes.
Esse público não rejeita Lula porque o pastor
Silas Malafaia esbraveja nas redes sociais e nos palanques. Ele moveria sua
audiência para o apoio ao governo caso trocasse de lado?
É mais fácil que a realidade seja a oposta,
ou seja, talvez seja o pastor que se adapte à direção do rebanho, e não o
rebanho que siga o pastor. A mesma lógica pode ser aplicada para a questão da
política externa: a identificação do fundamentalismo cristão com Israel na
Guerra de Gaza vem de uma visão escatológica do mundo, antes portanto de uma
voz de comando do mundo político e impermeável a qualquer dado do noticiário
sobre o conflito.
Evitar comparações com o Holocausto seria um
dos poucos gestos possíveis. Lula em suas últimas declarações começou a se
esquivar da analogia incabível, mas a defesa da causa palestina é um tema que
organiza e engaja o campo da esquerda. Lula jamais irá se desvencilhar dessa
linha.
A gravidade dos últimos acontecimentos também
fala por si e bloqueia um recuo maior. Nessa quinta, o Exército israelense
abriu fogo contra uma multidão que aguardava ajuda humanitária no norte de
Gaza. Nessa conjuntura, a pressão internacional contra Israel deve aumentar,
inclusive na opinião pública dos países que ainda dão sustentação ao governo de
Netanyahu nos foros internacionais.
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