Valor Econômico
Foi significativo o surto emocional e místico
de Michelle Bolsonaro e as palavras dirigidas à emoção e não à razão dos
espectadores e ouvintes
Fracos nos números, somos um povo que gosta
de calcular tamanhos, não só os dos muito menos do que precisam as fantasias
numéricas para se viver a suposição da vitória em face do esperado fracasso do
outro. Mas também os dos muito mais do que o bom senso não confirma, para supor
a ilusão de números que dizem o muito sem dizer o verdadeiro. É coisa que vem
da cultura das fake news que dão aparência de legitimidade ao meramente
imaginado.
O evento de domingo na avenida Paulista não
escapou desse jogo, oscilando as estimativas de presenças entre 185 mil e 600
mil. Fico com os 185 mil porque calculados com base na pesquisa “Monitor do
debate político”, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de
São Paulo e técnica definida.
Esse tipo de número vale por sua relação com uma base de referência. Nesse sentido, os 185 mil correspondem a 1,5% da população da cidade de São Paulo, onde o evento ocorreu. Seria mais prudente tomar como referência a população da área metropolitana de São Paulo, dada a relativa facilidade de deslocamento para o local da manifestação.
Nesse caso, sobre os quase 21 milhões de
habitantes da área, os manifestantes foram apenas 0,89%. Sobre os 600 mil da
estimativa oficial, a porcentagem dos que compareceram à Paulista foi de menos
de 3% (2,89%). Nesse sentido, foi um fracasso?
No entanto, o conjunto da multidão visto do
alto constituiu uma massa impressionante, ocupando uns oito quarteirões dos
três longos quilômetros da avenida. Um pastor adventista, analisando na TV as
imagens, na manhã seguinte, assinalou que os uniformizados com a camiseta
amarela estavam densamente concentrados nos dois lados do caminhão-palanque em
frente ao Masp. Pouco mais de um quarteirão de cada lado. Na sequência, uma
outra multidão de não uniformizados, distribuída de maneira rala.
O que isso prova? Nada. Mas indica o
potencial efeito demonstração da imagem, de que Bolsonaro mantém a capacidade
de mobilização. E que, diferentemente do que aconteceu com Lula durante a
Lava-Jato, que viu seu prestígio decrescer, as investigações e processos
policiais e judiciais contra Bolsonaro não afetam seu apelo à curiosidade da
grande massa em relação à teatralidade da política.
O ato de domingo sociologicamente baseou-se
na explícita negação da política para renovar e legitimar o primeiro governante
antipolítico de nossa história republicana, Bolsonaro. No ato da Paulista, ele
e seus coadjuvantes mais próximos esmeraram-se em explicitar esse curioso e
contraditório modo de personificar a política. É aí que ganha visibilidade a
concepção totalitária do bolsonarismo, expressamente na usurpação do sagrado
pela política.
Foi significativo o surto emocional e místico
de Michelle Bolsonaro e as palavras dirigidas à emoção e não à razão dos
espectadores e ouvintes. Um discurso anestésico de reinterpretação dos fatos
que levaram seu marido e bolsonaristas à investigação da Polícia Federal por um
conjunto de atos que deram sentido ao processo de golpe de Estado para mantê-lo
no poder.
Ela desenvolveu a narrativa do sofrimento que
lhes foi causado por aqueles que quiseram impedir o cumprimento da vontade de
Deus ao escolher Jair Messias para governar do Brasil. A emoção e o pranto
foram coadjuvados pelo marido, um passo atrás da esposa, e pelo pastor que
patrocinou o ato. Ela se movia de um lado para outro para falar ora aos que
estavam do lado norte, ora aos que estavam do lado sul. Eles se moviam
posicionados atrás dela, Messias em posição de sentido, o pastor em posição de
dono do púlpito.
O ato da Paulista mostrou, desse modo, que a
direita brasileira adota uma lógica política que adultera a política. A do
questionamento do poder. A faxina espiritual no Palácio do Planalto, que
Michelle Bolsonaro fez e revelou em culto, em Belo Horizonte, em 2022, foi rito
de supressão da política como expressão da vontade racional do eleitor. Com
Bolsonaro, a presidência passara a ser ocupada por Deus.
O pastor que teve a função de capelão da
República e no palco coadjuvava a oradora, em sua crítica demolidora das
instituições, mostrou que estamos em face de um processo de conversão do Estado
brasileiro num Estado teocrático. Michelle agradeceu à igreja brasileira. Qual?
Hamilton Mourão, no Senado, entrou com um
projeto de anistia, referendado no caminhão-tribuna por Bolsonaro, para os
protagonistas e paus-mandados da intentona de 8 de janeiro de 2023. Se
aprovado, o atentado contra as instituições, de crime, passará a ser tratado
como virtude patriótica. Bolsonaro, antes de condenado, será anistiado pelo
crime contra a Constituição e a democracia, de que é investigado pela PF.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).
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