sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Incêndios florestais expõem Brasil a retaliação global

O Globo

Origem criminosa do fogo deverá ser explorada pela UE e por outros países para barrar importações brasileiras

Além da devastação ambiental, os incêndios florestais que castigam o Brasil criarão graves problemas econômicos, em particular no comércio internacional. A ameaça mais urgente vem da entrada em vigor na União Europeia, em 1º de janeiro de 2025, da regra que proíbe importações de produtos de áreas desmatadas ilegalmente. Se as queimadas forem vinculadas ao desmatamento ilegal — e, dada a proliferação de incêndios criminosos, não será difícil fazer a conexão —, o país poderá perder US$ 15 bilhões em receitas, o equivalente a mais de um terço das exportações para o bloco europeu. Entre as mercadorias mais atingidas estão café, carne, cacau, soja e os próprios produtos florestais, como madeira ou móveis.

A norma da UE pode ser considerada um mecanismo protecionista, criado sob medida para agradar a pequenos e médios agricultores do continente que não conseguem competir com as exportações brasileiras. Mas ela também coincide com o interesse do Brasil. O país precisa reprimir o desmatamento ilegal. Se isso evitar dificuldades nas exportações de produtos primários, tanto melhor.

O secretário de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, Roberto Perosa, afirma que o governo concorda com a nova diretriz da UE, mas reivindica mais tempo para os países exportadores se estruturarem para cumpri-la. Nessa negociação, além dos contatos bilaterais, o Brasil tem chamado para as conversas outros exportadores de produtos agrícolas, como ColômbiaEquadorMalásiaIndonésia e Congo.

O principal argumento para expandir a discussão é alegar que os incêndios não ocorrem apenas no Brasil, pois os eventos climáticos extremos que resultam do aquecimento global atingem todo o mundo. Na Europa, Portugal está em chamas. As temporadas de incêndios que costumam ocorrer no meio do ano em vários países do Hemisfério Norte, como Estados Unidos e Canadá, têm sido especialmente preocupantes. Mas seria ingênuo acreditar que essa realidade ajudará a diminuir as pressões contra o desmatamento. De acordo com Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior e consultor internacional, outros parceiros comerciais do Brasil deverão adotar a mesma atitude do bloco europeu. Ele cita Estados Unidos e Reino Unido.

A posição brasileira é vulnerável porque a maioria esmagadora das queimadas tem origem criminosa. Os incêndios têm exposto a leniência dos governos federal e estaduais, que, em meio a uma seca atroz, não fiscalizam nem forçam a mudança de costumes, principalmente de pequenos produtores ainda habituados a limpar o terreno com fogo para o plantio. O enfrentamento dessa situação está há muito tempo na agenda do Brasil.

Para atender à norma da UE e se precaver contra novas retaliações comerciais devido ao descaso com o meio ambiente, o país precisa ter um sistema eficiente para rastrear produtos importantes da pauta de exportações, certificá-los de modo confiável e garantir sua origem. Não é mais aceitável que florestas sejam derrubadas por grileiros sem que haja vigilância ou punição, a madeira seja exportada e o terreno transformado em pasto. Para colocar ordem no acesso à terra já existem leis como o Código Florestal. Basta aplicá-las. Trata-se de assunto estratégico.

Reforma no Judiciário enfraquece a democracia no México

O Globo

Com eleição direta para juízes em todos os níveis, as decisões da Justiça passarão a ser reféns da política

Faltando menos de um mês para sair da Presidência do México, o populista de esquerda Andrés Manuel López Obrador, mais conhecido como AMLO, promoveu uma reforma radical no Judiciário. O Parlamento, dominado por seu partido, o Morena, aprovou uma emenda constitucional no último domingo mudando o sistema de escolha de juízes em todo o país. Dos ministros da Suprema Corte aos responsáveis por tribunais locais, cerca de 7 mil cargos serão doravante escolhidos pelo voto popular.

À primeira vista, a reviravolta poderia ser interpretada como democratização das Cortes. Nos Estados Unidos, há eleições de diferentes formatos para tribunais locais. A prática também é adotada em certos cantões da Suíça, e no Japão há referendos para nomes indicados à Suprema Corte. Mas, com exceção da Bolívia, em nenhuma democracia digna do nome juízes federais ou dos tribunais superiores são eleitos.

O caso boliviano ilustra os riscos para o México. Como decisões judiciais afetam a vida de candidatos e partidos, figurões da política passaram a prestar atenção especial às eleições para o Judiciário. A independência dos tribunais ficou comprometida, e são raras as iniciativas da Justiça contrariando interesses dos partidos no poder. Em contraste, parlamentares que confrontam o governo sabem que têm pouca chance de concluir o mandato. Nas democracias funcionais, a contaminação dos tribunais pela política é uma realidade indesejada. Na Bolívia, é regra. O voto popular enfraqueceu o sistema de freios e contrapesos.

Com a tentativa de manietar o Judiciário, AMLO segue o roteiro de populistas como o venezuelano Hugo Chávez ou o húngaro Viktor Orbán — que subjugaram as Cortes superiores de seus países aos desígnios do Executivo e consolidaram regimes autocráticos. A motivação dele foram decisões da Suprema Corte contrárias a seus interesses. Uma delas bloqueou a tentativa de enfraquecer a instituição responsável pela organização de eleições. “O Judiciário está podre”, disse na época. Com a votação histórica do Morena nas eleições de junho, AMLO viu a chance de obter a maioria de que precisava para mudar a Constituição. A presidente eleita, Claudia Sheinbaum, pupila dele, será empossada em outubro e nada fez para demovê-lo.

As principais críticas vieram do setor privado. Câmaras de comércio expressaram preocupação e previram, com a deterioração institucional, queda na entrada de investimento externo. O peso mexicano perdeu valor de mercado. No final de agosto, o embaixador americano na Cidade do México, Ken Salazar, avisou que a emenda constitucional ameaçaria a relação comercial com os Estados Unidos. Salazar também lembrou que a mudança induziria cartéis de drogas a tirar proveito “de juízes politicamente motivados e inexperientes”. Com casos de corrupção e ineficiência, o sistema judicial mexicano está longe de ser perfeito. De agora em diante, certamente ficará muito pior.

Milei mantém austeridade, mas crescimento é desafio

Valor Econômico

Se a economia não se recuperar, a perda de apoio popular lhe será fatal e há um encontro marcado para saber o apoio a seu governo: as eleições legislativas de 2025

O presidente da Argentina, Javier Milei, apresentou o orçamento de 2025 na segunda-feira prometendo mais do mesmo: dureza fiscal com um superávit primário de 1,3% do PIB. Com a melhora inegável do resultado fiscal neste ano, o primeiro em um ano em duas décadas e mais progressos em 2025, Milei consegue uma façanha pela qual conta com apoio de boa parte do empresariado. Mas o restante do orçamento foi visto por economistas de fora do governo como pouco crível e sem resposta a um problema fundamental - como escapar dos controles cambiais, uma das promessas de sua campanha.

Os pressupostos da peça orçamentária são otimistas, se não fora da realidade. A inflação de 2024 terminará o ano em 104%, o que obriga o índice de preços a não subir mais que 1,2% em média nos quatro meses finais do ano. Desde maio, ela se situa um pouco acima dos 4%, com resistência a descer abaixo desse nível. Ainda assim, é um feito. Quando assumiu, em dezembro, o Índice de Preços ao Consumidor mensal marcou 25,8%.

Em setembro, o governo reduziu o imposto de importação de 17,5% para 7,5%, o que terá influência baixista na inflação nos próximos meses. Mas, em oposição a esse movimento, foram reajustados os preços administrados. Gás e eletricidade subiram 4%, combustíveis, 3% e transporte público, 37,5%. O dólar está se valorizando sob controle a 2% ao mês, o que ajuda a derrubar os preços, mas amplia perigosamente a brecha entre o dólar blue (paralelo) e a cotação oficial. Ontem, a distância entre as duas cotações era de 23%. O orçamento de 2025 projeta inflação de 18,3%, praticamente a metade do que os analistas privados estimam, 38%. O Fundo Monetário Internacional indicou que o IPC deve encerrar 2025 em 45%.

O governo argentino prevê que a recessão está acabando e, depois de a economia encolher 3,8% no atual exercício, irá se expandir 5% no próximo. No entanto, pode faltar fôlego para isso. Milei aposta que o fim do financiamento da dívida pelo Banco Central, com controle rígido da emissão de moeda, pode por si só aniquilar a inflação, o que é possível, e que isso relançará o crescimento, o que é duvidoso. O orçamento mantém a penúria de investimentos estatais e, em reunião com os governadores - exceto peronistas -, Milei pediu a eles economia de US$ 60 bilhões nos gastos públicos. O pedido foi recebido com incredulidade, e a equipe econômica depois não quis cravar números.

O estilo de Milei continua o mesmo, de críticas pesadas à “casta”, especialmente aos políticos peronistas. Em um espírito oposto ao que se esperaria de um presidente que vai ao Congresso anunciar o orçamento e pedir sua aprovação, Milei declarou aos deputados: “Os cidadãos vão decidir se colocam vocês na avenida dos virtuosos ou no canto dos miseráveis ratos que apostam contra o país”.

Sem maioria no Congresso, o presidente faz discursos não para os políticos, mas para audiências amplas, nas quais ainda dispõe de popularidade maior do que fariam supor as dificuldades econômicas por que passam os argentinos. Minoritário no Congresso, faz pressão política sobre os parlamentares de fora para dentro e mantém seu estilo belicoso.

O problema principal da Argentina é a falta de dólares. Empresas e cidadãos não confiam no peso e estima-se que mantenham US$ 258 bilhões no exterior, ou entesourados no país. Para cumprir com pagamento de importações, serviços e outras obrigações, as reservas líquidas do Banco Central continuam negativas, apesar do aporte de US$ 41,4 bilhões (a maior parte durante o governo de Mauricio Macri). Economistas preveem que se chegará ao fim do ano com US$ 9 bilhões negativos. Sem recursos, o governo tem poucos meios de obter mais reservas, condição essencial para unificar e liberar o câmbio e normalizar a economia.

Para obter divisas, recorreu a outros expedientes, como dar incentivos fiscais à repatriação de recursos, que se encerra em dezembro e tem trazido algum alento. Nos oito primeiros meses do ano, houve depósitos líquidos de US$ 5 bilhões, com baixa multa de regularização (5%) ou nenhuma penalidade, se o dinheiro for aplicado em bônus do governo ou privados, ações de empresas locais e fundos imobiliários. Ainda assim, é uma gota d’água em um oceano de necessidade de dólares. Os investimentos externos não decolarão enquanto a Argentina não arrumar a casa. Isso implica eliminar o cipoal do câmbio evitando nova megadesvalorização, que poria a perder muito do que foi feito para debelar a inflação, reforçaria a desconfiança no plano e realimentaria a fuga de dólares.

Milei enfrenta forte oposição política, mas tem impedido derrotas desfigurantes de seus planos por meio dos vetos presidenciais. Ele conseguiu formar bloco de um terço de deputados para impedir a derrubada de seu veto no aumento das aposentadorias. Milei, um radical, consegue avançar em seus planos a uma velocidade muito menor do que gostaria. Ele tem alguns trunfos na economia e no manejo político-parlamentar. A impressão de que faria um governo fugaz e caótico está ficando para trás. Se a economia não se recuperar - e ela começa a fazê-lo com timidez -, a perda de apoio popular lhe será fatal. Ele tem encontro marcado para saber o apoio a seu governo: as eleições legislativas de 2025.

Com BC autônomo, custo do controle da inflação é menor

Folha de S. Paulo

Elevar juros é medida amarga, mas necessária com a expansão dos gastos do governo; bravatas de Lula criaram insegurança

Com a decisão de elevar seus juros para 10,75% ao ano, o Banco Central deu prosseguimento à guinada da política monetária que teve início há quatro meses. Não se sabe ainda quais serão seus próximos passos nesse processo, sem dúvida doloroso para a economia, mas ao menos a instituição se fortaleceu no período.

Temeu-se pelo pior em maio, quando houve um racha perigoso no Comitê de Política Monetária —os quatro diretores indicados pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se opuseram à decisão majoritária de reduzir o ritmo de cortes da taxa Selic devido ao risco de alta da inflação.

Vislumbrou-se, ali, o temor de que um Copom de maioria indicada pela administração petista —como será o caso a partir de 2025— viesse a ser mais subserviente às conveniências políticas imediatistas e às convicções econômicas arcaicas de Lula.

De lá para cá, todo o colegiado tratou de dar mostras de compromisso cristalino com a meta de 3% ao ano fixada para o IPCA. A decisão de quarta-feira (18) parece um cala-boca direcionado aos que apostaram num BC "político" e leniente com a inflação.

O ciclo de queda da Selic foi sustado e, agora, começa um novo ciclo de alta, de duração e intensidade ainda difíceis de projetar a partir das indicações oficiais. O cenário atual, infelizmente, justifica a providência amarga.

A atividade econômica está em crescimento acima do esperado com impulso da expansão desmesurada dos gastos do governo Lula, o que não é sustentável. Prova disso é que as projeções para a inflação até 2026 estão acima da meta.

A única boa notícia para o BC foi a decisão de seu congênere americano, o Fed, de reduzir seus juros em 0,5 ponto percentual, para o intervalo entre 4,75% e 5%. Com isso, cai a atratividade das aplicações em dólar, cujas cotações perdem impulso de alta.

contraste entre as medidas tomadas no mesmo dia nos Estados Unidos e aqui, ambas com sólido amparo técnico, evidencia o enorme avanço institucional propiciado pela autonomia da autoridade monetária brasileira —cuja medida corajosa deixa para trás as pressões e diatribes do presidente da República.

Lula insistiu tolamente em ataques bravateiros aos juros e à autonomia, como se fosse capaz de baixar as taxas à base de voluntarismo. Tudo o que conseguiu foi semear desconfiança, alimentar a escalada do dólar e dificultar o combate à inflação.

Viu-se forçado a recuar, sob pena de criar uma crise econômica antes de chegar à metade de seu terceiro mandato. Com a transição de comando no BC bem encaminhada, prevaleceu o entendimento de que uma gestão imune a ingerências políticas é capaz de zelar pela estabilidade da moeda a um custo mais baixo.

Resta ao governo entender que sua melhor contribuição para a queda dos juros é indicar, com atos concretos, seu compromisso com o ajuste do Orçamento.

O fogo e o risco de savanização amazônica

Folha de S. Paulo

Estiagem intensa e mais incêndios em florestas elevam perigo de devastação irreversível; urge ação integrada de governos

Para além da catástrofe conjuntural, os megaincêndios —quando o terreno queimado ultrapassa 10 mil hectares— em florestas na amazônia elevam o risco de uma devastação irreversível do bioma.

Uma área de 67 mil hectares na Terra Indígena Kayapó, no Pará, está em chamas desde 8 de agosto, de acordo com monitoração por satélite da Nasa. Esse tipo de destruição avassaladora foi verificado pela primeira vez na região em 1998, ano de ação do El Niño, que diminui o volume de chuvas.

Em 2023, tal fenômeno meteorológico aliado à mudança climática, que eleva temperaturas em todo o mundo, também causou forte estiagem no bioma, e sabia-se que ele se estenderia por 2024.

Segundo especialistas, a estação seca nos mais de 2 milhões de km² do sul da amazônia ficou de quatro a cinco semanas mais longa e cerca de 20% mais intensa nos últimos 40 anos. Sem a proteção de sua umidade natural, florestas ficam mais inflamáveis.

Daí a mudança no perfil das queimadasque têm atingido mais florestas primárias —que ainda não sofreram mudanças por atividade humana. Isso contribui para o processo de degradação da mata, que perde as árvores mais altas, criando clareiras que enfraquecem o ecossistema com vento, luz do sol e calor.

De acordo com o MapBiomas, entre janeiro e agosto de 2024, mais de 1,7 milhão de hectares de floresta queimaram na amazônia. No mesmo período do ano passado, o número foi bem menor, cerca de 482 mil hectares.

Estiagem, incêndios florestais e degradação podem fazer com que a amazônia não consiga mais produzir o volume de chuvas necessário para manter sua sobrevivência, o que levaria ao temido ponto de não retorno —quando a o processo de savanização do bioma torna-se irreversível.

Estima-se que tal cenário tenha início se e quando 25% da floresta amazônica estiver destruída. Apesar de não haver consenso científico sobre essa porcentagem, projeta-se que até 2050 esse ponto será ultrapassado.

O governo federal precisa implantar políticas nacionais contínuas para prevenção do fogo, adaptação à mudança climática, regularização fundiária e descarbonização da agropecuária.

Já as gestões estaduais não podem depender só do Planalto, dado que são responsáveis por autorizar queimadas e têm efetivo mais numeroso de bombeiros e brigadistas para combate ao fogo.

Devem-se integrar ações em ambas as esferas, para que a maior floresta tropical do planeta não rume com celeridade a uma tragédia previsível.

Banco Central faz o necessário

O Estado de S. Paulo

Expansionismo fiscal do governo Lula dificulta a tarefa do BC, e essa divergência entre as políticas monetária e fiscal exige juros cada vez mais altos para trazer a inflação à meta

Como esperado, o Banco Central (BC) decidiu elevar a taxa básica de juros em 0,25 ponto porcentual (p.p.), para 10,75% ao ano. A decisão foi unânime, e o tom do comunicado foi tão duro que parte do mercado financeiro viu no texto fatores suficientes para um aumento maior que o anunciado.

Foi a primeira vez que os juros subiram desde o início do governo Lula da Silva. A última elevação havia ocorrido em agosto de 2022, em plena campanha eleitoral, quando a Selic chegou a 13,75% ao ano.

De fato, o Comitê de Política Monetária (Copom) não tinha alternativa para conter a piora das expectativas. A atividade econômica segue resiliente, o mercado de trabalho permanece aquecido, as projeções de inflação continuam a aumentar e o câmbio está longe do patamar registrado no início do ano.

Mas, desta vez, o Banco Central reavaliou o hiato do produto para o campo positivo – ou seja, reconheceu que a economia está crescendo acima de sua capacidade. Além disso, o BC admitiu que o balanço de riscos está assimétrico, ou seja, que há mais chances de que a inflação suba do que caia.

No cenário de referência, as projeções para a inflação continuaram a aumentar – de 4,2% para 4,3% em 2024, de 3,6% para 3,7% em 2025 e de 3,4% para 3,5% em 2026. Em todos os casos, as previsões estão acima da meta de 3%, com a qual o BC sustenta ter firme compromisso. Cumpri-la, portanto, requer uma atividade econômica menos aquecida e, portanto, juros mais elevados.

Trata-se de um cenário aventado por muitos economistas logo após a divulgação do Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre, que surpreendeu todos ao aumentar 1,4% ante o primeiro trimestre e 3,3% na comparação com o segundo trimestre de 2023.

Mas tudo muda de figura quando a autoridade monetária compartilha dessa mesma percepção. E o fato de que isso já constou do comunicado publicado logo após a reunião, e não somente na ata que é divulgada somente na semana seguinte, é sinal de que há convergência entre todos os diretores – e não apenas alguns ou vários deles.

A decisão do Copom já chamaria mais atenção do que o costume pelo aumento da Selic depois de tanto tempo, mas o fato de que o Federal Reserve (Fed), o banco central norte-americano, reduziu os juros pela primeira vez desde 2020 – e em 0,50 ponto porcentual, para o patamar entre 4,75% e 5%, mais que o 0,25 p.p. esperado pela maioria – gerou injustificada polêmica no mundo político, sobretudo após a pequena e pontual deflação registrada em agosto.

São situações incomparáveis. Afinal, os Estados Unidos passam por um momento muito diferente do vivenciado pela economia brasileira. Ao contrário do que ocorre no Brasil, por lá, a inflação está cada vez mais próxima da meta de 2%, a criação de postos de trabalho veio abaixo do esperado e o cenário indica um enfraquecimento da atividade econômica.

O Fed não deu sinalizações mais claras sobre o que fará a partir de agora, mas há uma perspectiva de que o diferencial entre as taxas de juros nos EUA e no Brasil possa atrair investidores estrangeiros e ajudar a valorizar o real ante o dólar, contribuindo para arrefecer parcialmente a inflação. Ninguém acredita, no entanto, no retorno do câmbio a níveis inferiores a R$ 5, como se via no início deste ano.

O Banco Central tampouco se comprometeu com sinalizações mais firmes sobre seus próximos passos, mas já há quem aposte que a Selic pode subir até 12% em janeiro – até então, a maioria dos analistas esperava 11,5%. Os ajustes nas expectativas supõem que o Copom deva acelerar o ritmo de alta dos juros de 0,25 para 0,50 ponto porcentual nas reuniões de novembro e dezembro.

Não há razões para culpar a autoridade monetária. A atitude expansionista do governo Lula da Silva dificulta a tarefa do Banco Central, e essa divergência entre as políticas monetária e fiscal exige juros cada vez mais altos para trazer a inflação de volta ao centro da meta. É o preço da retomada de manobras e da emissão de créditos extraordinários para não contabilizar gastos no cálculo do resultado primário e de perseguir o limite inferior da meta fiscal.

A aposta de Lula na ‘doutrina Amorim’

O Estado de S. Paulo

O Brasil não precisaria escolher nenhum lado nas disputas geopolíticas e econômicas da China e da Rússia com o Ocidente. Mas Lula escolheu, e o País só tem perdido com essa aposta

Na quarta-feira, o presidente Lula da Silva conversou por telefone com o presidente russo, Vladimir Putin. Na pauta, a guerra na Ucrânia e a cúpula do Brics, que acontecerá na Rússia em outubro. A atitude do brasileiro no bate-papo encapsulou a doutrina de Celso Amorim, o chanceler de facto que dita os rumos de sua política externa.

Lula discutiu a proposta do Brasil e da China para o fim da guerra. Trocando em miúdos, o Brasil propõe congelar as linhas territoriais atuais, entregando à Rússia 20% do território ucraniano sem nem sequer sugerir garantias concretas de segurança que não a boa-fé de Putin. Basicamente, o mesmo que se fez em 2014 com a Crimeia, à época com o endosso do Ocidente. Não há nenhum motivo para esperar que desta vez os desdobramentos seriam diferentes, e a proposta até soaria ingênua se Lula não soubesse disso.

Em tese, o Brasil reprova a agressão da Rússia. Na prática, é contrário aos meios que o agredido tem para se defender: as armas e as sanções de seus aliados ocidentais. Com mais de dois anos de conflito, longe de buscar alternativas às importações de fertilizantes e do diesel russos, Lula estimula sua expansão, ajudando a financiar o imperialismo de Putin. Sua proposta para o “fim” da guerra – a capitulação da Ucrânia – levaria em breve ao seu recomeço não só na Ucrânia, mas em outros países na mira do Kremlin, e afronta princípios da política externa nacional consagrados na Constituição: a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos e do direito internacional.

Não se tem detalhes das tratativas sobre a pauta dos Brics. Mas o governo tem sido conivente, para não dizer cúmplice, com a estratégia chinesa e russa de metamorfosear o que deveria ser um fórum econômico de grandes países emergentes em um clube autocrático antiocidental. Eis o núcleo duro da doutrina Amorim: um antiocidentalismo sob o qual não só a democracia, como já disse Lula, é “relativa”, mas relativos são até os ideais da esquerda. Os regimes de Putin e da teocracia do Irã – que o governo recebeu de braços abertos no Brics – são ultrarreacionários.

Se na era da globalização já era difícil para uma potência regional média, sem o poder das armas ou do dinheiro, como o Brasil, exercer seu soft power, tanto mais agora num momento de fragmentações e turbulências geopolíticas. Ainda assim, o País tem um aparato diplomático requintado, um histórico pacífico e recursos cruciais para que o mundo enfrente os grandes desafios globais da segurança alimentar, energética e ambiental. Esses ativos poderiam garantir ao País uma posição segura de equidistância e independência nos conflitos geopolíticos, e até de liderança em certos âmbitos, como na América Latina e na área ambiental.

É difícil para qualquer país se equilibrar no confronto entre EUA e China. O Brasil depende das exportações para a Ásia, mas também de insumos tecnológicos do Ocidente. Nem por isso o País precisaria renunciar aos valores comuns ao Ocidente, como a democracia liberal ou os direitos humanos, nem ser obrigado a escolher entre um lado e outro – vale lembrar que o maior parceiro comercial dos EUA é a China e vice-versa. A Índia tem logrado esse equilíbrio. Mas o Brasil de Lula escolhe um lado.

No início de seu mandato, a revista The Economist classificou sua política externa como oscilante e inconsistente: “Lula quer que o Brasil seja todas as coisas para todos: um amigo do Ocidente e um líder do Sul Global, um defensor do meio ambiente e uma potência petrolífera mundial, um promotor da paz e um amparo para os autocratas”. Quem dera. Se alguém tem dificuldade de enxergar as reais intenções de Lula por trás de suas conjurações ilusionistas, deveria conferir os posicionamentos oficiais do PT e de seu ideólogo Celso Amorim a propósito desses aparentes dilemas. Não há ambiguidade. Lula sabe o que quer e tem agido com coerência nesse sentido. Mas em troca da desconfiança dos parceiros ocidentais do Brasil, na melhor das hipóteses, e do seu escárnio, na pior, o País ainda não ganhou nada além do prato de lentilhas sino-russo.

A genuflexão de Nunes

O Estado de S. Paulo

Por conveniência, Ricardo Nunes renega vacinação obrigatória e esquece legado de Bruno Covas

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), manifestou arrependimento por ter apoiado a vacinação obrigatória durante a pandemia de covid-19, quando ele era vice do então prefeito Bruno Covas (PSDB). “Tenho humildade. Hoje sou contra a obrigatoriedade da vacina”, afirmou o prefeito em entrevista ao blogueiro Paulo Figueiredo, sujeito que se notabilizou por ser um bolsonarista radical e por responder criminalmente por sua suposta participação no 8 de Janeiro.

Se não falta “humildade” ao prefeito, sobra imprudência. Nunes, mais uma vez, faz pouco da memória de Bruno Covas nessa caça ao voto bolsonarista na campanha pela reeleição. Em meio àquela tragédia sanitária, Bruno Covas se ergueu como uma muralha na cidade de São Paulo para proteger tanto quanto pôde os paulistanos e a metrópole do lixo tóxico que o então presidente Jair Bolsonaro espalhou por todo o País.

Bolsonaro tanto fez para expor os brasileiros a risco de morte em nome de seus interesses particulares que foi preciso que o Supremo Tribunal Federal lembrasse que a Constituição assegura aos governadores e prefeitos o poder de atuar em prol das populações locais. E Bruno Covas fez muito bom uso de suas prerrogativas, não apenas apoiando a vacinação dos munícipes, como tomando decisões politicamente muito onerosas para ele, como o fechamento dos estabelecimentos não essenciais.

É desse jeito constrangedor que o sr. Nunes pretende ser visto como o maior defensor do “legado democrático” de seu antecessor? Ao se associar ao que há de pior e mais nocivo no bolsonarismo, o prefeito, ao contrário, trai o legado de Bruno Covas. Afinal, por que Nunes se arrepende de ter apoiado a vacinação obrigatória durante a pandemia? Todas as vacinas passam por rigoroso processo de desenvolvimento científico e, ademais, são aprovadas pela Anvisa após diligente escrutínio técnico antes de chegarem aos braços da população. Logo, é lícito inferir que Nunes agora se diz arrependido por ter apoiado a vacinação obrigatória porque se sente compelido a ajoelhar no altar da seita bolsonarista por conveniências políticas de ocasião – de resto, uma inequívoca manifestação de tibieza administrativa, para dizer o mínimo.

Ora, mais que a defesa, o estímulo à vacinação como uma política de promoção de saúde coletiva – sobretudo em meio a uma tragédia sanitária como foi a pandemia – é algo inegociável para qualquer administrador público minimamente responsável. É o caso de perguntar: como Nunes haverá de se comportar, caso seja reeleito, diante de um novo surto viral em São Paulo que exija a vacinação dos paulistanos, sobretudo crianças e idosos, os grupos mais vulneráveis às infecções?

Ademais, a vacinação contra vários tipos de doença, incluindo covid-19, é requisito para matrícula em todas as escolas das redes pública e privada no Estado de São Paulo, de acordo com o art. 1.º da Lei 17.252/2020. Ou seja, nem se quisesse Nunes poderia reverter a obrigatoriedade das vacinas, o que demonstra que seu arrependimento tardio, além de irresponsável, é vazio.

Quem cuida de quem cuida?

Correio Braziliense

O transtorno de ansiedade lidera a pesquisa com médicos: 33,5% estão com esse diagnóstico e 21,1% apresentaram os sintomas nos últimos 12 meses

É aquela velha história: quem cuida dos cuidadores? É consenso que os médicos estão precisando de cuidados. E há muito tempo. Quase metade dos profissionais, especialmente as médicas, apresenta quadros de adoecimento  mental, em maior ou menor grau.

Levantamento feito com mais de 2 mil médicos atuantes no mercado, de todas as regiões brasileiras, apontou doenças como depressão, ansiedade e burnout em uma parcela significativa dos entrevistados. De acordo com o estudo Qualidade de vida dos médicos, desenvolvido pelo Research Center e apresentado pela Afya, empresa de educação e soluções para a prática médica,  39,8% dos profissionais enfrentam algum tipo de doença mental, sendo que duas em cada três pessoas afetadas são do gênero feminino.

Outros aspectos chamam a atenção. Na faixa etária entre 25 e 35 anos, 49,6% dos profissionais sofrem com o problema — ou seja, praticamente metade dos entrevistados. Desses, 3,6% já estiveram internados para tratar alguma condição psíquica e precisaram ficar afastados do trabalho cerca de 5,1 semanas nos últimos 12 meses. No entanto, boa parte dos "médicos-pacientes" não busca acompanhamento profissional — talvez, pelo estigma associado a essas enfermidades.

Entre as mais citadas, o transtorno de ansiedade lidera a pesquisa: 33,5% estão com esse diagnóstico e 21,1% apresentaram os sintomas nos últimos 12 meses. Desses, 27,1% estão em tratamento e 6,4%, embora constatado o transtorno, não o tratam. As mulheres são as mais impactadas: quatro em cada 10 médicas (40%) sofrem com o transtorno de ansiedade, enquanto a taxa entre os homens é de 25,1%.

Em segundo lugar, está a depressão: 22,1% dos profissionais já receberam esse diagnóstico, sendo que 19,9% tratam e acompanham com especialistas e 2,2% não tratam. Outros 17,1% apresentam sintomas, mas não têm diagnóstico e não tratam a doença. De acordo com o estudo, 22,4% dos profissionais detectaram a condição nos últimos 12 meses.

O burnout aparece em 6,7% dos casos, e metade foi identificada nos últimos 12 meses. Não fazem acompanhamento 2% dos médicos diagnosticados com a condição. No entanto, em uma avaliação mais ampla, mais de 50% indicam já terem apresentado sintomas da doença, ainda que não tenham um diagnóstico fechado ou tenham se curado do distúrbio. 

A carga horária elevada é apontada como o principal motivo destacado: médicos com esse perfil trabalham em média 57,2 horas por semana, cerca de sete horas a mais do que a média geral. A boa notícia é que os dados indicam uma leve melhora em relação ao último ensaio, realizado em 2022. No entanto, as questões mentais continuam presentes e, vale lembrar, acometem outros profissionais de saúde.

Cada vez mais, discussões sobre saúde mental têm ocupado espaço em ambientes corporativos, no meio acadêmico, esportivo, cultural e em qualquer nível. No caso de quem atua na saúde, é preciso se conscientizar de que também não é infalível. Campanhas de alerta e cuidados devem atingir — e sensibilizar — todos os públicos.

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