Por Bernardo Mello / O Globo
Notório pesquisador da
História política brasileira e da ditadura militar, o professor da UFRJ Carlos
Fico afirma que nunca houve no país, até 2022, um plano para matar o
presidente eleito no contexto de um golpe de Estado. Outro ineditismo no caso
que resultou no indiciamento
do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras 36 pessoas, diz, é o
próprio fato de estar havendo investigação.
Veja abaixo a entrevista ao GLOBO:
Já houve algo similar a uma
tentativa de golpe de Estado que envolvesse o assassinato do chefe eleito do
Executivo?
Nunca houve na História
brasileira um plano para matar o presidente eleito no contexto de um golpe. Em
1897, ocorreu um atentado contra o então presidente Prudente de Moraes. Mas
talvez o que mais se aproxime da situação atual foi em 1938, com o ataque armado
da Ação Integralista Brasileira ao Palácio Guanabara, onde estavam Getulio
Vargas e sua família. Foi um evento perigoso, o palácio estava desguarnecido, a
própria filha de Getulio teve que reagir atirando.
E existe paralelo com a
tentativa do entorno de Bolsonaro de criar um “gabinete de exceção”, comandado
por militares aliados, após uma eventual morte de autoridades?
Nessa tentativa de 2022, se
o plano tivesse vingado, seria algo similar ao “autogolpe” de 1937 que gerou o
Estado Novo. Foi planejado por dois generais, Eurico Gaspar Dutra e Góis
Monteiro, e com conhecimento de Getulio, para evitar as eleições de 1938 e
mantê-lo indevidamente no poder. Só que não havia plano explícito para
assassinar presidente eleito, vice, chefe do tribunal eleitoral. Tudo indica
que agora houve um planejamento terrorista, para gerar um clima de comoção
nacional, instaurar uma comissão ou junta militar e manter Bolsonaro no poder.
E as evidências coletadas
pela PF sugerem que Bolsonaro sabia desse plano.
Isso só poderá ser
comprovado no futuro, mas é muito difícil que ele não tivesse conhecimento.
Bolsonaro já usava uma retórica de extremismo para chamar atenção para si muito
antes de ser presidente. Depois de assumir o Executivo, é claro que fica mais ameaçador
o discurso de enaltecer a ditadura, dizer que não vai obedecer o Supremo,
sugerir ruptura institucional. E é evidente que isso estimula o surgimento
desse tipo de plano por parte de pessoas mais radicalizadas, sejam civis ou
militares, para promover um governo autoritário e perpetuá-lo no poder.
Sob um ponto de vista
histórico, qual é a importância da investigação atual?
Já tivemos muitos golpes e
tentativas de golpes, mas a novidade nessa última onda de golpismo é que tem
havido investigação. O indiciamento de militares é coisa inédita, assim como
nunca houve condenação de militar golpista no Brasil, sobretudo quando as
expectativas de golpe fracassam, o que foi o caso.
Dos 37 indiciados pela
Polícia Federal, 25 são ou foram membros das Forças Armadas. Foi um movimento
preponderantemente militar?
Existe toda uma preocupação,
sobretudo no ambiente dos próprios militares, de distinguir a instituição de
iniciativas individuais. Isso é correto, de certo modo. Mas também é correta a
percepção de que a maior parte dos oficiais, em todos os golpes ou tentativas
de golpes na História brasileira, se mantiveram em compasso de espera para ver
para onde as coisas iam. Há um padrão recorrente: começa com uma iniciativa
muito ousada, surpreendente, e o processo de adesão dos oficiais é paulatino.
Há a informação de que o Alto Comando não aderiu, e que por isso o golpe deu
errado. Mas então esses oficiais generais, embora tenham decidido não embarcar,
tampouco deram voz de prisão? É preciso saber se havia convicção democrática ou
se houve apenas um balanço de perdas e danos.
Até que ponto é preocupante
o fato de os acampamentos golpistas terem se mantido até janeiro, mesmo após o
Alto Comando supostamente saber de um plano de golpe?
Ter permitido a presença
daquelas pessoas em frente aos quartéis foi absurdo e mostrou leniência dos
militares com aquele tipo de provocação. Entendo que essa leniência se
relaciona com a percepção de algo favorável aos militares. O governo Bolsonaro
foi muito positivo para os militares sob o ponto de vista material, de cargos,
de remuneração. Parece que a grande preocupação agora era a manutenção de
privilégios. Não havia muita ênfase em pretextos de natureza ideológica ou
doutrinária, como o combate ao comunismo, à corrupção, o que era habitual em
outras tentativas de golpe, como em 1955 (contra a posse de Juscelino
Kubitschek) ou no próprio golpe de 1964.
Bolsonaro diz se arrepender
de ter colocado militares como ministros palacianos. Acredita que os militares
se arrependam de tê-lo apoiado?
Existe um movimento contraditório: provavelmente os militares sempre vão se lembrar dos benefícios materiais obtidos naquele governo, mas fica cada vez mais evidente que Bolsonaro foi péssimo para a imagem institucional das Forças Armadas. Tenho certeza que há oficiais das três Forças incomodados com isso.
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