segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Entrevista | historiador Carlos Fico: ‘Ter investigação é o novo num caso de golpismo’

Por Bernardo Mello / O Globo

Notório pesquisador da História política brasileira e da ditadura militar, o professor da UFRJ Carlos Fico afirma que nunca houve no país, até 2022, um plano para matar o presidente eleito no contexto de um golpe de Estado. Outro ineditismo no caso que resultou no indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras 36 pessoas, diz, é o próprio fato de estar havendo investigação.

Veja abaixo a entrevista ao GLOBO:

Já houve algo similar a uma tentativa de golpe de Estado que envolvesse o assassinato do chefe eleito do Executivo?

Nunca houve na História brasileira um plano para matar o presidente eleito no contexto de um golpe. Em 1897, ocorreu um atentado contra o então presidente Prudente de Moraes. Mas talvez o que mais se aproxime da situação atual foi em 1938, com o ataque armado da Ação Integralista Brasileira ao Palácio Guanabara, onde estavam Getulio Vargas e sua família. Foi um evento perigoso, o palácio estava desguarnecido, a própria filha de Getulio teve que reagir atirando.

E existe paralelo com a tentativa do entorno de Bolsonaro de criar um “gabinete de exceção”, comandado por militares aliados, após uma eventual morte de autoridades?

Nessa tentativa de 2022, se o plano tivesse vingado, seria algo similar ao “autogolpe” de 1937 que gerou o Estado Novo. Foi planejado por dois generais, Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro, e com conhecimento de Getulio, para evitar as eleições de 1938 e mantê-lo indevidamente no poder. Só que não havia plano explícito para assassinar presidente eleito, vice, chefe do tribunal eleitoral. Tudo indica que agora houve um planejamento terrorista, para gerar um clima de comoção nacional, instaurar uma comissão ou junta militar e manter Bolsonaro no poder.

E as evidências coletadas pela PF sugerem que Bolsonaro sabia desse plano.

Isso só poderá ser comprovado no futuro, mas é muito difícil que ele não tivesse conhecimento. Bolsonaro já usava uma retórica de extremismo para chamar atenção para si muito antes de ser presidente. Depois de assumir o Executivo, é claro que fica mais ameaçador o discurso de enaltecer a ditadura, dizer que não vai obedecer o Supremo, sugerir ruptura institucional. E é evidente que isso estimula o surgimento desse tipo de plano por parte de pessoas mais radicalizadas, sejam civis ou militares, para promover um governo autoritário e perpetuá-lo no poder.

Sob um ponto de vista histórico, qual é a importância da investigação atual?

Já tivemos muitos golpes e tentativas de golpes, mas a novidade nessa última onda de golpismo é que tem havido investigação. O indiciamento de militares é coisa inédita, assim como nunca houve condenação de militar golpista no Brasil, sobretudo quando as expectativas de golpe fracassam, o que foi o caso.

Dos 37 indiciados pela Polícia Federal, 25 são ou foram membros das Forças Armadas. Foi um movimento preponderantemente militar?

Existe toda uma preocupação, sobretudo no ambiente dos próprios militares, de distinguir a instituição de iniciativas individuais. Isso é correto, de certo modo. Mas também é correta a percepção de que a maior parte dos oficiais, em todos os golpes ou tentativas de golpes na História brasileira, se mantiveram em compasso de espera para ver para onde as coisas iam. Há um padrão recorrente: começa com uma iniciativa muito ousada, surpreendente, e o processo de adesão dos oficiais é paulatino. Há a informação de que o Alto Comando não aderiu, e que por isso o golpe deu errado. Mas então esses oficiais generais, embora tenham decidido não embarcar, tampouco deram voz de prisão? É preciso saber se havia convicção democrática ou se houve apenas um balanço de perdas e danos.

Até que ponto é preocupante o fato de os acampamentos golpistas terem se mantido até janeiro, mesmo após o Alto Comando supostamente saber de um plano de golpe?

Ter permitido a presença daquelas pessoas em frente aos quartéis foi absurdo e mostrou leniência dos militares com aquele tipo de provocação. Entendo que essa leniência se relaciona com a percepção de algo favorável aos militares. O governo Bolsonaro foi muito positivo para os militares sob o ponto de vista material, de cargos, de remuneração. Parece que a grande preocupação agora era a manutenção de privilégios. Não havia muita ênfase em pretextos de natureza ideológica ou doutrinária, como o combate ao comunismo, à corrupção, o que era habitual em outras tentativas de golpe, como em 1955 (contra a posse de Juscelino Kubitschek) ou no próprio golpe de 1964.

Bolsonaro diz se arrepender de ter colocado militares como ministros palacianos. Acredita que os militares se arrependam de tê-lo apoiado?

Existe um movimento contraditório: provavelmente os militares sempre vão se lembrar dos benefícios materiais obtidos naquele governo, mas fica cada vez mais evidente que Bolsonaro foi péssimo para a imagem institucional das Forças Armadas. Tenho certeza que há oficiais das três Forças incomodados com isso.

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