segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Os limites do pacote fiscal e as fragilidades do arcabouço - Sergio Lamucci

Valor Econômico

Um pacote de R$ 70 bilhões não é desprezível, mas não deverá ser suficiente para reduzir significativamente as incertezas sobre as contas públicas

O governo deverá enfim anunciar nesta semana as medidas de contenção de gastos, após seguidos adiamentos. A expectativa é que as iniciativas poupem em torno de R$ 70 bilhões em dois anos, dos quais R$ 25 bilhões a R$ 30 bilhões em 2025 e R$ 40 bilhões em 2026. Pelo que tem dito o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a lógica é que a dinâmica das despesas obrigatórias caiba dentro do arcabouço fiscal. Em 15 de novembro, ele afirmou “que a ideia é fazer com que as partes não comprometam o todo, e o arcabouço tenha sustentabilidade de médio e longo prazo, que é a dúvida do mercado”. Um pacote dessa magnitude não é desprezível, podendo levar a algum alívio no câmbio e nos juros de longo prazo, mas não deverá ser suficiente para reduzir significativamente as incertezas sobre as contas públicas.

O problema é que as regras do arcabouço fiscal em si são frouxas, e não garantem a estabilização da dívida pública como proporção do PIB num horizonte minimamente razoável. A dúvida de quem acompanha de perto a situação fiscal do país vai além do cumprimento das regras do arcabouço - que já teve a sua credibilidade arranhada com menos de um ano de vigência. A meta de resultado primário (não inclui gastos com juros) de 2024 tende a ser atingida com o uso da banda de tolerância de 0,25 ponto percentual do PIB. Em vez de déficit zero, o rombo deve ficar torno de 0,25% do PIB, com a exclusão de algumas despesas, como os gastos para combater os efeitos das enchentes no Rio Grande do Sul. Além disso, o alvo de 2025 foi reduzido de um superávit de 0,5% do PIB para zero.

O arcabouço prevê um crescimento anual das despesas do governo central entre 0,6% e 2,5%, descontada a inflação, exigindo um forte aumento de receitas para que as metas sejam cumpridas. Os economistas Gabriel Hartung e Mario Carvalho, da SPX, apontam a lentidão do ajuste embutido no novo regime fiscal. Em artigo para o Blog do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), eles estimam a melhora do resultado primário com o arcabouço em cerca de 0,15% do PIB por ano. Como avaliam ser necessário um superávit na casa de 2% do PIB para estabilizar a dívida pública, é um ritmo muito lento.

Para chegar a esses 2% do PIB, eles consideram um crescimento médio do PIB de 2% ao ano e um juro real de 4,75%, a estimativa do Banco Central (BC) para a chamada taxa neutra, aquela que permite a expansão da economia sem acelerar a inflação. Hartung e Carvalho ressaltam que esse número calculado pelo BC é bem mais baixo que os juros refletidos nos preços de mercado. As taxas dos títulos do Tesouro atrelados à inflação com vencimento em 2045 e 2050, por exemplo, fecharam sexta-feira em torno de 6,75% ao ano. Em resumo, uma melhora anual de 0,15% do PIB do resultado primário leva a um ajuste fiscal muito demorado, dizem eles. Para os economistas da SPX, deve haver um déficit de 0,5% do PIB em 2024, com o rombo crescendo para 0,9% do PIB em 2025.

As medidas a serem anunciadas pelo governo devem tentar adequar o crescimento dos gastos obrigatórios ao ritmo previsto no arcabouço, de alta anual de 0,6% a 2,5% acima da inflação. Uma das iniciativas em estudo é limitar o reajuste do salário mínimo, que impacta benefícios previdenciários e assistenciais, a um máximo de 2,5%. Hoje, o piso salarial é corrigido pela inflação do ano anterior mais a variação do PIB de dois anos antes - o mínimo de 2025, por exemplo, seria reajustado pela soma dos índices de preços de 2024 e mais 2,9%, o crescimento em 2023. Também há, contudo, o aumento vegetativo de beneficiários da Previdência, em torno de 2% ao ano, como dizem os economistas da SPX. Pela regra atual, o reajuste real do salário mínimo nos próximos anos ficaria em torno de 3%, o que, combinado ao aumento de 2% do número de beneficiários, levaria a um “crescimento real de 5% dos gastos previdenciários e assistenciais indexados ao salário mínimo”, afirmam Hartung e Carvalho. Se o limite de correção do mínimo cair para 2,5%, o conjunto dessas despesas crescerá menos, mas ainda deverá ficar em torno de 4,5% ao ano, continuando bastante acima do teto da banda do arcabouço.

Outro problema é que as despesas com saúde e educação voltaram a estar vinculadas à arrecadação no novo regime fiscal. Nesse cenário, esses gastos “crescem a uma taxa de 100% do crescimento da receita, enquanto o mecanismo do arcabouço prevê um crescimento da despesa primária total a uma taxa de 50% ou 70%” do ritmo da arrecadação, observam os economistas da SPX. As medidas a serem anunciadas pelo governo não devem mexer nas regras de correção dos gastos com saúde e educação.

Esses dois pontos - a vinculação dos benefícios previdenciários e assistenciais ao mínimo e as despesas com saúde e educação à receita - “tornam o arcabouço inviável no longo prazo”, por comprimir as despesas não obrigatórias do Executivos para níveis historicamente baixos, o que pode “levar a regra a uma exaustão política, em processo similar ao ocorrido com o teto de gastos”, dizem Hartung e Carvalho.

Os dois economistas observam que as medidas em discussão não alteram o limite global para as despesas primárias, já definido pelo mecanismo do arcabouço. Nesse sentido, as iniciativas a serem anunciadas não melhoram o resultado primário, dizem eles. Elas podem abrir espaço para os gastos não obrigatórios, ajudando a evitar o estrangulamento da máquina pública, mas não são suficientes para estabilizar a dívida. Pelas contas apresentadas no artigo, mesmo se o governo mantiver o arcabouço fiscal funcionando, isso não seria suficiente para manter estável a relação dívida/PIB nos próximos dez anos - o endividamento bruto, que ficou em 78,3% do PIB em setembro, atingiria 102% do PIB em 2034.

Nesse quadro, o pacote de contenção de gastos não deverá diminuir substancialmente as incertezas fiscais, mesmo que torne mais viável o cumprimento das regras do arcabouço.

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