Acordos comerciais com China são passo correto
O Globo
Ao recusar aderir à Nova Rota da Seda, Brasil
mostra independência necessária para manter elo ocidental
Com a volta de Donald Trump à Casa Branca, a
disputa entre Estados Unidos e China tem tudo para
ficar mais acirrada. Trump deverá aumentar as barreiras comerciais a produtos
chineses, reforçando o “desacoplamento” das duas maiores economias do mundo.
Acabou há muito o tempo em que os dois países acreditavam num mundo de interdependência.
Tanto que a política para a China implementada no primeiro mandato de Trump foi
mantida sem grandes mudanças por Joe Biden. A partir de janeiro, é provável que
o enfrentamento ganhe contornos inéditos. Nesse cenário, o desafio para países
como o Brasil será manter o equilíbrio entre os dois polos, em busca do
interesse nacional.
A assinatura de 37 acordos entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o líder chinês Xi Jinping foi um passo correto na atual conjuntura. O Brasil firmou cooperações nas áreas de satélites, tecnologia nuclear, comércio (com a abertura do mercado chinês a quatro segmentos agrícolas) e projetos de infraestrutura. Mas, contrariando o interesse de Xi, não aderiu à Nova Rota da Seda, programa de investimento para expandir a influência chinesa no exterior que já gastou US$ 1 trilhão. Pagou um preço por isso: o mercado para carnes continuará restrito. Mesmo assim, isso pode ser negociado com o tempo.
Ao manter distância saudável de nosso maior
parceiro comercial, o governo manifestou, corretamente, que não se submeterá a
todos os desígnios de Pequim. O Peru não teve esse cuidado. Com dinheiro da
Nova Rota da Seda, inaugurou na semana passada um porto de US$ 3,5 bilhões. No
início do mês, a general Laura Richardson, então responsável pelo Comando Sul
dos Estados Unidos, afirmou que o porto de águas profundas poderá ser usado
pela marinha chinesa. Caso a suspeita resulte em sanções, sua atratividade comercial
afundará. O Brasil não pode correr nenhum risco dessa natureza.
Em Brasília, os próprios formuladores
da política
externa percebem os perigos de aderir incondicionalmente aos
planos chineses. Quando foi criado em 2001, o termo Bric — Brasil, Rússia,
Índia e China — era uma referência a países emergentes. Quando a África do Sul
— o “s” — entrou dez anos depois, a ênfase econômica foi mantida. Hoje o Brics
tem se transformado em instrumento da política externa chinesa (e russa). Com a
entrada do Irã, ficou nítida a inflexão antiocidental. Ao barrar recentemente a
entrada da Venezuela, o Brasil fez mais que retaliar Nicolás Maduro. Deixou de
fora um ditador e mostrou que ainda partilha valores com as democracias do
Ocidente.
Nas próximas semanas, é possível que o Brasil
dê um novo passo para fortalecer sua independência no cenário global. O acordo
de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul tem chance de se tornar enfim
realidade. Na tentativa de resguardar interesses setoriais, protecionistas de
lado a lado tentam afundar o projeto. Vencer essa oposição é crucial. E o
Brasil terá mostrado que não abandonou o Ocidente.
Paradoxalmente, o próximo governo Trump será
um incentivo a esse tipo de multilateralismo. Com os Estados Unidos voltados
para dentro, será necessário esforço de integração maior no resto do mundo. Os
próprios países europeus consideram maior aproximação da China. Para o Brasil,
com larga tradição de equilíbrio em sua diplomacia, o momento pode ser
favorável — e os acordos com chineses e europeus são iniciativas na direção
certa.
Previdência dos militares precisará passar
por nova reforma em breve
O Globo
Mudanças sugeridas no programa de corte de
gastos são bem-vindas, mas insuficientes para conter déficit
A necessidade de um programa de corte de
gastos trouxe à tona uma discussão bem-vinda sobre o sistema previdenciário dos
militares. É esperado que o pacote fiscal apresentado pelo ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, traga mudanças nas regras para a reforma — nome dado nas Forças
Armadas àquilo que os civis conhecem como aposentadoria. Pelas
informações disponíveis, essas mudanças trariam economias estimadas em R$ 6
bilhões anuais ao Orçamento. Mas a discussão deveria ir além da necessidade
imediata.
As mesmas forças demográficas que tornam
imperativo rever as regras da Previdência civil
atuam sobre a militar. Em 2023, as receitas de contribuições previdenciárias
dos militares somaram R$ 9,1 bilhões, ante despesas de R$ 58,8 bilhões. O
Tribunal de Contas da União (TCU) afirma que a reforma da Previdência de 2019,
ao instituir a contribuição obrigatória, contribuiu para reduzir o déficit,
mesmo assim foi insuficiente.
É verdade que a carreira dos militares
apresenta singularidades que justificam regras diferentes para a saída da
ativa. Eles exercem a atividade em dedicação exclusiva, sem limite de horário,
estão sujeitos a transferências compulsórias, a códigos rígidos de conduta e
podem ser convocados em situações de emergência mesmo na reserva. Por isso
foram poupados da maioria das mudanças impostas pela reforma da Previdência de
2019.
Até hoje, não existe idade mínima para
passarem à reserva (entre civis, ela é de 65 anos para homens e 62 para
mulheres). Mesmo quem é expulso da corporação deixa pensão para os parentes. E
a morte de um familiar leva à redistribuição da pensão para os demais. Tudo
isso o governo pretende mudar no pacote fiscal.
A ideia é que a idade mínima para passar à
reserva seja de 55 anos, com uma regra de transição. Para quem hoje entra na
caserna aos 20 anos, não haverá mudança, pois já é obrigado a se reformar com
pelo menos 35 anos de serviço. Outra mudança será impor na Marinha e na
Aeronáutica o recolhimento de 3,5% do salário ao Fundo de Saúde, como no
Exército. Aos parentes de militares expulsos, será garantido apenas o
auxílio-reclusão pago pelo INSS. E acabará a “cota de pensão", transferida
na morte de um dependente para os demais herdeiros.
Nada disso, contudo, alterará de forma
substancial o déficit da Previdência militar. No Orçamento de 2025, as três
Forças Armadas têm um custo de R$ 133 bilhões. Desse total, apenas R$ 12,8
bilhões são para investimentos. Os R$ 120,2 bilhões restantes destinam-se à
remuneração dos militares da ativa e da reserva. Como a demografia é
implacável, haverá pressão cada vez maior sobre esses gastos. Será preciso
implementar mudanças mais amplas, assim como nas regras da Previdência dos
civis. Os efeitos da reforma de 2019 se esgotarão nos próximos dois anos, pois
a população tem envelhecido mais rápido do que se previa. É preciso discutir
desde já uma nova reforma da Previdência — incluindo a militar.
Reforma deveria disciplinar e reduzir os
gastos tributários
Valor Econômico
O descontrole a que se chegou é nefasto: os recursos dos quais os governos abrem mão seriam suficientes para cobrir todos os déficits primários incorridos na última década e ainda sobraria dinheiro
Enquanto os governos buscam de todas as
maneiras como aumentar a arrecadação, União e Estados abdicarão este ano de
mais de R$ 700 bilhões em receitas decorrentes de gastos tributários,
abatimento ou isenção de impostos para incentivar setores, regiões e empresas
do país. Os números são de estudo feito em parceria entre FGV, Conselho em
Políticas Econômicas (Council on Economic Policies) e Instituto Alemão para o
Desenvolvimento e a Sustentabilidade (Idos), com o apoio da Samambaia.org. Pela
primeira vez, é feita uma estimativa dos gastos dos Estados - 1,5% a 2% do PIB,
com viés de alta, segundo os autores.
A União, de acordo com a Receita Federal,
deixará de receber R$ 544,4 bilhões, ou 4,4% do PIB, em 2024, enquanto o
governo Lula terá de comprimir o orçamento do ano para chegar a um déficit
permitido de R$ 28,8 bilhões. Da maneira como as contas públicas são tratadas
por todos os governos, não só os petistas, é mais fácil que a máquina do Estado
seja paralisada por falta de dinheiro do que colocar fim a esses benefícios. No
governo Bolsonaro, foi aprovada a Emenda Constitucional 109/2021, para reduzir
a 2% do PIB os gastos tributários em até 8 anos, sem mexer nos principais
programas, como Simples e Zona Franca de Manaus (ZFM). Ninguém mais tocou no
assunto até o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, voltar a mencionar
como esses recursos estão fazendo falta agora.
Entre os pontos de destaque do estudo está o
fato de que a maioria dos programas em que o Estado abre mão de impostos não
tem data para acabar. Dos 128 gastos tributários listados, 95 continuarão
vigentes até 2073, como os benefícios à ZFM, por exemplo. Depois de entrarem no
orçamento, perpetuam-se por inércia, sem que se tomem cuidados elementares, a
começar pela avaliação de resultados.
Até mesmo esta providência simples não se
concretiza por dois problemas: não há padrões para calcular seus impactos
financeiros e sequer obrigação de que sejam divulgados de forma clara. “No caso
dos governos estaduais, há disparidades na forma de contabilizar os subsídios
entre Estados e também mudanças ao longo do tempo em um mesmo Estado”, avalia o
estudo. Ele aponta que o Estado em que os gastos tributários representam maior
porcentagem da arrecadação própria é o Amazonas (62%), em função da ZFM, seguido
por Santa Catarina (47%), Mato Grosso (38%), Goiás (33%) e SP (30%).
Apenas em 2019 foi criado o Conselho de
Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (Cmap), para averiguar o
desempenho das renúncias fiscais, e 34 relatórios foram desde então concluídos.
Não tiveram o menor efeito prático e, pela disposição geral do atual governo e
do Congresso, exceto os Ministérios da Fazenda e Planejamento, nada será feito
para mudar o status quo.
Em tese, os gastos tributários visam a
atender objetivos econômicos e sociais que melhorem a vida de amplas camadas da
população e promover desenvolvimento regional. Mas o padrão delas contraria a
intenção - dois terços contemplam o Sudeste (47,2%) e o Sul (16,97%), segundo o
relatório da Receita sobre o Projeto de Lei Orçamentária de 2025. São as
regiões mais ricas do país.
Com 22,2% do total, o Simples é o maior
abatedouro de impostos da lista de gastos tributários. Sua reformulação em
2007, no segundo governo de Lula, marca, não por acaso, o início de uma curva
mais acentuada do aumento das renúncias de arrecadação. O Simples tem vários
problemas de desenho. Ele serviu para que executivos e funcionários com alta
remuneração nas empresas se transformassem em pessoas jurídicas e pagassem bem
menos impostos do que se permanecessem assalariados. Gastos com agroindústria
(15,25%) e abatimentos do IRPF (10,46%) vêm a seguir.
Um exemplo de incentivo com impostos que se
tornou anacrônico é o destinado aos combustíveis fósseis, de R$ 81,74 bilhões
em 2023 (incluindo o Repetro, regime especial para importação de equipamentos
do setor de óleo e gás), quantia mais de quatro vezes superior aos estímulos
tributários concedidos às energias renováveis (R$ 18 bilhões), segundo o estudo
da FGV.
As benesses tributárias terão repercussão na
reforma que está em vias de conclusão. A reforma fechará uma importante brecha
que permitia a guerra fiscal entre Estados. Mas a um custo: criou-se um fundo
de compensação de benefícios fiscais para os Estados, que receberá dotações a
partir do ano que vem, de R$ 8 bilhões, crescendo R$ 8 bilhões a cada ano até
2028. Em 2029 o valor é de R$ 32 bilhões, decrescendo R$ 8 bilhões anuais até
2032 - ou R$ 160 bilhões.
A reforma tributária deveria disciplinar
essas regalias tributárias, estabelecendo obrigatoriedade de avaliação de
desempenho, com metodologias universalmente aceitas para isso, regras comuns
para concessão e prazos de validade determinados. O descontrole a que se chegou
é nefasto: os recursos dos quais os governos abrem mão seriam suficientes para
cobrir todos os déficits primários incorridos na última década e ainda sobraria
dinheiro. Com Executivos cada vez mais fracos e sem maioria no Congresso, o desperdício
de recursos com benefícios opacos e perenes prosseguirá, com a ameaça de uma
crise fiscal sempre rondando no horizonte. Há dinheiro, mas ele está onde não
deveria estar.
Oportunidades nas relações com a China e o
mundo
Folha de S. Paulo
Gigante asiático pode ampliar aportes com
volta de Trump nos EUA; para ser atrativo, Brasil precisa de estabilidade e
menos custos
O encontro
desta semana entre Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) e o líder da China, Xi Jinping,
joga alguma luz adicional sobre as oportunidades nas relações econômicas entre
o Brasil e a ditadura comunista que responde pelo segundo maior PIB do
planeta.
Os chineses ainda detêm uma participação
relativamente pequena, mas em crescimento rápido do investimento
estrangeiro existente aqui —de 1% do total no começo da década
passada, foi a 5% em 2022, dado mais recente, atrás de Estados
Unidos (29%), Espanha, Reino Unido e França (todos com 6%).
Em particular desde o acirramento do conflito
econômico com os EUA, em 2018, o capital do gigante asiático procura
cada vez mais países emergentes.
Com a volta de Donald Trump à
Casa Branca, tal tendência pode se acentuar. Embora a operação seja
diplomaticamente complicada, o Brasil terá a chance de se esgueirar entre os
tiros trocados pelas duas potências.
O fluxo total de investimento direto
estrangeiro aqui equivaleu a 3,2% do PIB nos últimos 12 meses. Trata-se de
nível não exuberante, mas suficiente para cobrir o déficit nas transações de
bens e serviços com o exterior, que chegou a 2,1% do PIB.
Esse déficit está em alta, em parte por causa
do aquecimento da demanda interna e das remessas maiores de lucros e juros,
além da novidade dos gastos com "streaming", aplicativos e até
apostas online.
O preço das exportações —das commodities—
cai. O país importa mais insumos industriais e produtos manufaturados,
como veículos (aliás,
na maioria chineses, neste ano). Um eventual superaquecimento da economia elevaria
o déficit externo e demandaria mais cobertura por meio de investimentos
diretos.
Peso ainda mais relevante tem o comércio
externo. A soma de importações e exportações brasileiras, que
equivalia a algo em torno de 15% do PIB no início do século, chegou perto de
20% na década passada e a até 30% no ano excepcional de 2023, estando ora em
27%. Boa parte dessa mudança benfazeja se deveu ao aumento do consumo chinês.
Será muito difícil mudar tão cedo o padrão de
comércio com a China —a troca de commodities por bens
industrializados. O risco, de fato, é que sobrevenha inundação ainda maior de
produtos do país asiático, barateados devido a excedentes grandes.
Já o perfil do investimento no Brasil é
passível de mudança. Concentrado até aqui em eletricidade e petróleo, pode se
dirigir mais a infraestrutura e a manufaturas, como a de veículos.
Para que receba mais aportes, de quaisquer
outros países, o Brasil precisa de mais que habilidade na política externa. O
essencial é estabilidade econômica com crescimento regular, menos custos para
produzir e incentivo adequado à transformação tecnológica. Crescer com auxílio
do capital externo depende de ordem e inovação domésticas.
Projetos frágeis para segurança surgem a
reboque de crises
Folha de S. Paulo
Propostas do governo Lula pouco avançam no
Congresso; cumpre instituir política nacional que vise integrar objetivos,
diretrizes e metas
Projetos federais de segurança pública
costumam reagir a crises episódicas, são suscetíveis a descontinuidades
conforme o governo de turno e, não raro, apresentam resultados apenas pontuais.
Falta ao país uma política nacional sólida
que vise integrar princípios, objetivos e diretrizes, a ser encampada com o
mínimo de uniformidade pelos estados para reprimir o indiscutível avanço
do crime
organizado.
A inabilidade em lidar com o tema —segunda
principal preocupação dos brasileiros, só atrás da saúde, de acordo
com pesquisa Datafolha de 2023— é reconhecida pela própria esquerda, que
observa o domínio dessa agenda entre as forças conservadoras, nas quais grassam
vieses populistas.
No cenário atual, em que coexistem 72
facções criminosas e algumas delas rompem fronteiras regionais
e internacionais, causa espécie constatar que propostas em curso, apresentadas
pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tendem a ser limitadas ou de
alcance duvidoso.
Talvez até por isso pelo menos dez delas
dormitam no Congresso ou
no próprio Planalto. Atribui-se a morosidade na
tramitação à gestão federal: apesar de lançá-las em eventos
pomposos, não demonstra empenho em aprová-las para evitar supostos ruídos com a
pauta econômica.
Não faltaram crises episódicas neste governo,
como a
invasão das sedes dos Poderes em 8 de janeiro de 2023, queimadas
intencionais, escalada da violência no Rio de Janeiro e na Bahia e
ataques solitários a escolas.
Quanto a este último caso, a Câmara aprovou
tornar esses atentados crimes
hediondos, o que está longe de ser medida eficaz.
Outros projetos soam vagos, como agilizar a
investigação de delitos contra a vida de crianças e adolescentes, ou no mínimo
duvidosos, como criar uma Guarda para proteger prédios federais.
Em tese, o que mais se aproxima de um esboço
de política de Estado para o setor é a PEC da
Segurança, há meses na gaveta do Executivo e já alvo de
críticas de governadores oposicionistas, que temem perder suas
autonomias.
A bem-vinda busca por uma concertação
republicana entre União, estados e mesmo municípios não impõe, necessariamente,
mudanças constitucionais.
O diálogo com os estados começou tardiamente
e é contaminado por implicações ideológicas e eleitoreiras, mas há tempo para
dar início a um plano de ação de longo prazo que priorize investimentos em
prevenção e a articulação de políticas conjuntas.
O crime organizado já demonstra integração
mais assertiva.
Tentativa de golpe com nome e sobrenome
O Estado de S. Paulo
Embora já esperado, o indiciamento de
Bolsonaro e de seus principais assessores pela PF dá contornos dramáticos às
revelações de que o País esteve supostamente à beira da ruptura
A Polícia Federal (PF) indiciou ontem 37
pessoas por uma suposta tentativa de um golpe de Estado a fim de impedir a
posse do presidente Lula da Silva, legitimamente eleito em 2022. Somadas, as
penas máximas cominadas à miríade de crimes que compuseram essa desabrida
sedição chegam a 30 anos de prisão.
Entre os indiciados estão muitos ex-ocupantes
de altos cargos da República durante o governo de Jair Bolsonaro, o que torna
ocioso apontar a gravidade e o ineditismo da conclusão dessa minuciosa
investigação policial. Basta dizer que, além do próprio Bolsonaro, que
obviamente seria o maior beneficiário do eventual sucesso de um golpe, terão de
prestar contas à Justiça os generais da reserva Braga Netto, Augusto Heleno e
Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que foram os principais assessores do então
presidente no Palácio do Planalto.
Embora já fosse esperado, dado o andamento
das investigações da PF, o indiciamento da alta cúpula do governo Bolsonaro e
do próprio ex-presidente mostra que a trama golpista, se realmente houve,
provavelmente não se circunscreveu a um punhado de oficiais de segundo escalão
em conluio com agentes policiais. A ser verdade o que a PF diz ter descoberto,
o País esteve à beira da ruptura e esse movimento contou, na hipótese
benevolente, com a omissão de Bolsonaro, já que parece ser impossível que nem
ele nem os generais que o assessoravam não tivessem conhecimento do complô.
Tudo ganha contornos ainda mais dramáticos quando se imagina a hipótese menos
benevolente: a de que Bolsonaro não só sabia, como jamais desestimulou a
sedição, o que comprovaria de vez seu já notório golpismo.
Outro que se vê mais uma vez enredado por uma
espessa teia criminosa é o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, um habitué de
inquéritos policiais. O deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que chefiou a
Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo Bolsonaro, e Anderson
Torres, que foi ministro da Justiça naquela gestão, também estão entre os
indiciados por suspeita de participação na intentona.
Agora que essa suposta tentativa de golpe
passou a ter, oficialmente, nome e sobrenome, cabe ao Ministério Público e ao
Poder Judiciário processar e julgar cada um dos acusados, na medida exata de
sua responsabilidade. Os que forem considerados culpados, sem distinção, devem
ser punidos com todo o rigor da lei, pois é este, e somente este, o instrumento
de que dispõe o Estado Democrático de Direito para repelir os ataques de seus
inimigos e desencorajar audácia semelhante no futuro.
As investigações mostram que o planejamento
do suposto golpe foi realizado durante reuniões com oficiais da cúpula das
Forças Armadas. É estupefaciente. Conclui-se que só não foi concluído porque o
Alto Comando do Exército, em sua maioria, assim não quis. Há provas documentais
da conspiração. Não há perdão possível para quem se lança em uma empreitada
delinquente como essa. Se já era inaceitável falar em anistia para os que
tramaram acintosamente contra a Constituição antes que esse suposto complô
fosse revelado em contornos tão vívidos, espera-se que agora ninguém mais ouse
condescender com quem, por meio da força bruta, tentou subverter a soberania da
vontade popular.
Ficou claro a partir do relatório de
indiciamento de Bolsonaro et caterva que a dicotomia entre legalidade
e ilegalidade, natural para qualquer cidadão decente, jamais fez parte do
léxico dos militares golpistas. Para essa turma, imperava uma mentalidade
absolutamente distorcida que opõe “moralidade” à “imoralidade”, sendo “imoral”,
para essa súcia de sediciosos, dar posse ao “vagabundo”, como se referiu ao
presidente Lula da Silva o general reformado Mário Fernandes, preso no dia 19
passado por suspeita de ter tramado o seu assassinato com outros “kids pretos”,
como são conhecidos os militares das Forças Especiais do Exército.
O indiciamento pela PF é apenas o primeiro
passo para que o golpismo que grassou neste país com espantosa naturalidade
tenha uma resposta institucional à altura da ameaça que representou.
O Congresso vira as costas ao País
O Estado de S. Paulo
Senadores rejeitam destinação obrigatória de
metade das emendas parlamentares à Saúde e impossibilidade de bloqueio dos
recursos; Câmara deve seguir na mesma toada antirrepublicana
Sem surpresas, o Senado aprovou o projeto que
regulamenta o pagamento de emendas parlamentares rejeitando a possibilidade de
o Executivo bloquear o dinheiro em caso de necessidade de ajuste fiscal. Os
senadores também eliminaram a obrigatoriedade de destinar metade do valor das
emendas para a Saúde. E, assim, segue em curso uma nova versão do orçamento
secreto, talvez um tanto menos obscuro, mas nem por isso mais democrático e
republicano.
A indefectível aprovação do novo texto pela
Câmara dos Deputados deverá coroar o esforço do Congresso em manter o que os
parlamentares já consideram um direito adquirido: capturar fatia expressiva do
Orçamento da União que, de acordo com recente estudo do Insper, já corresponde
a 24% das despesas discricionárias do governo federal. O pagamento das emendas
está suspenso desde agosto por decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo
Tribunal Federal, que apontou falta de transparência e rastreabilidade nas transações.
Os congressistas têm pressa em destravar os
recursos com os quais vão abastecer suas paróquias eleitorais, mas não
demonstram o mesmo empenho em reduzir sua apropriação do Orçamento e tampouco
disposição para elucidar em detalhes os objetivos, destinos e justificativas
das propostas que fazem para alterar o Orçamento público. As emendas que,
principalmente nos últimos quatro anos, fizeram de deputados e senadores os
senhores de boa parte dos recursos federais distribuídos pelo País viraram uma
espécie de trincheira parlamentar.
Nesse caso, todo o esforço para acelerar o
trâmite no Legislativo parece que se torna válido. Na noite em que o texto-base
do Projeto 175/2024 estava sendo votado, os senadores demoraram a deixar o
plenário, mesmo diante dos estrondos que vinham da Praça dos Três Poderes, onde
um homem detonara explosivos que trazia junto ao corpo. Apesar do
desprendimento dos parlamentares, a sessão só pôde ser concluída cinco dias
depois, com a votação dos destaques, na qual o recado para o Planalto, que
havia pedido para incluir a possibilidade de bloqueio, foi explícito: não há
negociação possível em relação às emendas.
Mas não é ao governo Lula da Silva, ou a
qualquer outro que ocupe o Palácio do Planalto, que o Legislativo está virando
as costas. Senadores e deputados estão negando ao País uma reparação do arresto
que engendraram ao erário mantido por todos os contribuintes brasileiros. O
estudo do Insper mostrou que, do início de 2021 até agora as emendas
parlamentares consumiram R$ 131,7 bilhões do Orçamento em seus quatro modelos:
de bancada, de comissão, individuais e de relator, que deu origem ao famigerado
“orçamento secreto”, denunciado por este jornal.
O relator do projeto passou a liberar valores
no Orçamento a pedido de deputados e senadores sem identificá-los, numa
distribuição de dinheiro público movida por negociatas políticas, sem nenhuma
observância de critérios de utilidade pública. Como já dissemos neste espaço,
ainda que pudessem ser escrutinadas com transparência e direcionadas a
políticas públicas para melhorar a realidade dos municípios supostamente
atendidos por seus autores, as emendas já seriam uma excrescência pela evidente
afronta ao princípio republicano da separação de Poderes.
O projeto ora em análise no Congresso é uma
tentativa de resolver o impasse sobre o pagamento das emendas impositivas, das
quais fazem parte as chamadas “emendas Pix”, as mesmas que já bancaram
micaretas, festas juninas e corridas de carro Brasil afora e que receberam esse
sugestivo nome porque permitem o envio direto do dinheiro para o caixa de
municípios e Estados, sem necessidade de projeto ou justificativa. São emendas
que, neste ano, somam R$ 8 bilhões.
O escárnio com o qual os congressistas tratam
os recursos públicos e os cidadãos que contribuem para manter ativa a máquina
pública envergonha o Poder Legislativo. Caberia aqui um apelo para que a Câmara
dos Deputados trate com mais seriedade a avaliação do projeto de regulamentação
das emendas. Debalde, ao que tudo indica.
Isenção para quem não precisa
O Estado de S. Paulo
Divulgação de dados do Perse escancara um
Brasil viciado em incentivos fiscais para os mais ricos
A Receita Federal acaba de divulgar que
11.877 empresas se encontram atualmente habilitadas no Programa Emergencial de
Retomada do Setor de Eventos (Perse), originalmente criado em 2021 para
socorrer de forma emergencial o setor de eventos, duramente atingido pelo
isolamento social provocado pela pandemia de covid-19.
Estendido até 2026, o Perse, revela a lista
da Receita, vem beneficiando influenciadores abastados, artistas renomados e
grandes empresas, ou seja, um programa outrora concebido para apoiar pessoas
que, por conta de uma emergência sanitária, de um dia para o outro se viram sem
trabalho foi mantido pelo Congresso, e vem garantindo isenções fiscais aos mais
ricos, em mais uma demonstração do quanto o Brasil penaliza os mais pobres.
Na lista de beneficiados pelo Perse aparecem
personalidades como o influenciador Felipe Neto, notório por publicações nas
quais critica “elites” e “empresas” que não pagam impostos, embora ele mesmo
tenha se beneficiado de R$ 14 milhões em isenções fiscais até agosto deste ano.
Exposto, Neto divulgou nota que beira a hipocrisia, e tentou desviar do assunto
aludindo à operação da PF que escancarou uma tentativa de golpe de Estado no
Brasil. Certamente graves, as revelações da PF não fazem com que as isenções
fiscais concedidas a quem não merece sejam menos escandalosas.
Justiça seja feita a Neto, ele não é o único
influenciador ou artista presente na lista da Receita. Virgínia Fonseca,
conhecida por ostentar a mansão em que vive e bolsas de grife nas redes, também
figura na planilha do Perse, bem como o cantor Gusttavo Lima, aquele que
celebrou seu aniversário em um iate em Mykonos, na Grécia, acompanhado do
ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal (STF). Como se vê, Neto,
apoiador de Lula, e Lima, de Bolsonaro, compartilham da mesma visão de mundo
quando se trata de impostos e desfrutam de isenções fiscais que, em um país
sério, não se aplicariam a personagens ou empresas com elevado nível de renda.
Para além da hipocrisia de influenciadores
nada isentos, a planilha da Receita Federal serve para demonstrar a desfaçatez
do Executivo e a irresponsabilidade do Congresso. O primeiro segue viciado em
gastar, e até o momento ainda não apresentou um plano factível para equilibrar
as contas públicas e colocar o País na rota do crescimento sustentável. A
divulgação dos beneficiários do Perse se presta a alimentar a versão segundo a
qual a culpa é dos outros e que a administração há quase dois anos no poder não
é responsável por nada.
Se há um vencedor neste esquema que
privilegia os mais ricos em detrimento dos mais pobres é o Congresso Nacional.
Tanto Jair Bolsonaro quanto Lula da Silva tentaram acabar com o Perse ou
limitá-lo, o que faria todo o sentido, posto que o programa foi desenhado para
uma situação emergencial. O Congresso, contudo, derrubou o veto de Bolsonaro e
resistiu à tentativa de Lula de pôr fim ao programa.
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