sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Acordos comerciais com China são passo correto

O Globo

Ao recusar aderir à Nova Rota da Seda, Brasil mostra independência necessária para manter elo ocidental

Com a volta de Donald Trump à Casa Branca, a disputa entre Estados Unidos e China tem tudo para ficar mais acirrada. Trump deverá aumentar as barreiras comerciais a produtos chineses, reforçando o “desacoplamento” das duas maiores economias do mundo. Acabou há muito o tempo em que os dois países acreditavam num mundo de interdependência. Tanto que a política para a China implementada no primeiro mandato de Trump foi mantida sem grandes mudanças por Joe Biden. A partir de janeiro, é provável que o enfrentamento ganhe contornos inéditos. Nesse cenário, o desafio para países como o Brasil será manter o equilíbrio entre os dois polos, em busca do interesse nacional.

A assinatura de 37 acordos entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o líder chinês Xi Jinping foi um passo correto na atual conjuntura. O Brasil firmou cooperações nas áreas de satélites, tecnologia nuclear, comércio (com a abertura do mercado chinês a quatro segmentos agrícolas) e projetos de infraestrutura. Mas, contrariando o interesse de Xi, não aderiu à Nova Rota da Seda, programa de investimento para expandir a influência chinesa no exterior que já gastou US$ 1 trilhão. Pagou um preço por isso: o mercado para carnes continuará restrito. Mesmo assim, isso pode ser negociado com o tempo.

Ao manter distância saudável de nosso maior parceiro comercial, o governo manifestou, corretamente, que não se submeterá a todos os desígnios de Pequim. O Peru não teve esse cuidado. Com dinheiro da Nova Rota da Seda, inaugurou na semana passada um porto de US$ 3,5 bilhões. No início do mês, a general Laura Richardson, então responsável pelo Comando Sul dos Estados Unidos, afirmou que o porto de águas profundas poderá ser usado pela marinha chinesa. Caso a suspeita resulte em sanções, sua atratividade comercial afundará. O Brasil não pode correr nenhum risco dessa natureza.

Em Brasília, os próprios formuladores da política externa percebem os perigos de aderir incondicionalmente aos planos chineses. Quando foi criado em 2001, o termo Bric — Brasil, Rússia, Índia e China — era uma referência a países emergentes. Quando a África do Sul — o “s” — entrou dez anos depois, a ênfase econômica foi mantida. Hoje o Brics tem se transformado em instrumento da política externa chinesa (e russa). Com a entrada do Irã, ficou nítida a inflexão antiocidental. Ao barrar recentemente a entrada da Venezuela, o Brasil fez mais que retaliar Nicolás Maduro. Deixou de fora um ditador e mostrou que ainda partilha valores com as democracias do Ocidente.

Nas próximas semanas, é possível que o Brasil dê um novo passo para fortalecer sua independência no cenário global. O acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul tem chance de se tornar enfim realidade. Na tentativa de resguardar interesses setoriais, protecionistas de lado a lado tentam afundar o projeto. Vencer essa oposição é crucial. E o Brasil terá mostrado que não abandonou o Ocidente.

Paradoxalmente, o próximo governo Trump será um incentivo a esse tipo de multilateralismo. Com os Estados Unidos voltados para dentro, será necessário esforço de integração maior no resto do mundo. Os próprios países europeus consideram maior aproximação da China. Para o Brasil, com larga tradição de equilíbrio em sua diplomacia, o momento pode ser favorável — e os acordos com chineses e europeus são iniciativas na direção certa.

Previdência dos militares precisará passar por nova reforma em breve

O Globo

Mudanças sugeridas no programa de corte de gastos são bem-vindas, mas insuficientes para conter déficit

A necessidade de um programa de corte de gastos trouxe à tona uma discussão bem-vinda sobre o sistema previdenciário dos militares. É esperado que o pacote fiscal apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, traga mudanças nas regras para a reforma — nome dado nas Forças Armadas àquilo que os civis conhecem como aposentadoria. Pelas informações disponíveis, essas mudanças trariam economias estimadas em R$ 6 bilhões anuais ao Orçamento. Mas a discussão deveria ir além da necessidade imediata.

As mesmas forças demográficas que tornam imperativo rever as regras da Previdência civil atuam sobre a militar. Em 2023, as receitas de contribuições previdenciárias dos militares somaram R$ 9,1 bilhões, ante despesas de R$ 58,8 bilhões. O Tribunal de Contas da União (TCU) afirma que a reforma da Previdência de 2019, ao instituir a contribuição obrigatória, contribuiu para reduzir o déficit, mesmo assim foi insuficiente.

É verdade que a carreira dos militares apresenta singularidades que justificam regras diferentes para a saída da ativa. Eles exercem a atividade em dedicação exclusiva, sem limite de horário, estão sujeitos a transferências compulsórias, a códigos rígidos de conduta e podem ser convocados em situações de emergência mesmo na reserva. Por isso foram poupados da maioria das mudanças impostas pela reforma da Previdência de 2019.

Até hoje, não existe idade mínima para passarem à reserva (entre civis, ela é de 65 anos para homens e 62 para mulheres). Mesmo quem é expulso da corporação deixa pensão para os parentes. E a morte de um familiar leva à redistribuição da pensão para os demais. Tudo isso o governo pretende mudar no pacote fiscal.

A ideia é que a idade mínima para passar à reserva seja de 55 anos, com uma regra de transição. Para quem hoje entra na caserna aos 20 anos, não haverá mudança, pois já é obrigado a se reformar com pelo menos 35 anos de serviço. Outra mudança será impor na Marinha e na Aeronáutica o recolhimento de 3,5% do salário ao Fundo de Saúde, como no Exército. Aos parentes de militares expulsos, será garantido apenas o auxílio-reclusão pago pelo INSS. E acabará a “cota de pensão", transferida na morte de um dependente para os demais herdeiros.

Nada disso, contudo, alterará de forma substancial o déficit da Previdência militar. No Orçamento de 2025, as três Forças Armadas têm um custo de R$ 133 bilhões. Desse total, apenas R$ 12,8 bilhões são para investimentos. Os R$ 120,2 bilhões restantes destinam-se à remuneração dos militares da ativa e da reserva. Como a demografia é implacável, haverá pressão cada vez maior sobre esses gastos. Será preciso implementar mudanças mais amplas, assim como nas regras da Previdência dos civis. Os efeitos da reforma de 2019 se esgotarão nos próximos dois anos, pois a população tem envelhecido mais rápido do que se previa. É preciso discutir desde já uma nova reforma da Previdência — incluindo a militar.

Reforma deveria disciplinar e reduzir os gastos tributários

Valor Econômico

O descontrole a que se chegou é nefasto: os recursos dos quais os governos abrem mão seriam suficientes para cobrir todos os déficits primários incorridos na última década e ainda sobraria dinheiro

Enquanto os governos buscam de todas as maneiras como aumentar a arrecadação, União e Estados abdicarão este ano de mais de R$ 700 bilhões em receitas decorrentes de gastos tributários, abatimento ou isenção de impostos para incentivar setores, regiões e empresas do país. Os números são de estudo feito em parceria entre FGV, Conselho em Políticas Econômicas (Council on Economic Policies) e Instituto Alemão para o Desenvolvimento e a Sustentabilidade (Idos), com o apoio da Samambaia.org. Pela primeira vez, é feita uma estimativa dos gastos dos Estados - 1,5% a 2% do PIB, com viés de alta, segundo os autores.

A União, de acordo com a Receita Federal, deixará de receber R$ 544,4 bilhões, ou 4,4% do PIB, em 2024, enquanto o governo Lula terá de comprimir o orçamento do ano para chegar a um déficit permitido de R$ 28,8 bilhões. Da maneira como as contas públicas são tratadas por todos os governos, não só os petistas, é mais fácil que a máquina do Estado seja paralisada por falta de dinheiro do que colocar fim a esses benefícios. No governo Bolsonaro, foi aprovada a Emenda Constitucional 109/2021, para reduzir a 2% do PIB os gastos tributários em até 8 anos, sem mexer nos principais programas, como Simples e Zona Franca de Manaus (ZFM). Ninguém mais tocou no assunto até o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, voltar a mencionar como esses recursos estão fazendo falta agora.

Entre os pontos de destaque do estudo está o fato de que a maioria dos programas em que o Estado abre mão de impostos não tem data para acabar. Dos 128 gastos tributários listados, 95 continuarão vigentes até 2073, como os benefícios à ZFM, por exemplo. Depois de entrarem no orçamento, perpetuam-se por inércia, sem que se tomem cuidados elementares, a começar pela avaliação de resultados.

Até mesmo esta providência simples não se concretiza por dois problemas: não há padrões para calcular seus impactos financeiros e sequer obrigação de que sejam divulgados de forma clara. “No caso dos governos estaduais, há disparidades na forma de contabilizar os subsídios entre Estados e também mudanças ao longo do tempo em um mesmo Estado”, avalia o estudo. Ele aponta que o Estado em que os gastos tributários representam maior porcentagem da arrecadação própria é o Amazonas (62%), em função da ZFM, seguido por Santa Catarina (47%), Mato Grosso (38%), Goiás (33%) e SP (30%).

Apenas em 2019 foi criado o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (Cmap), para averiguar o desempenho das renúncias fiscais, e 34 relatórios foram desde então concluídos. Não tiveram o menor efeito prático e, pela disposição geral do atual governo e do Congresso, exceto os Ministérios da Fazenda e Planejamento, nada será feito para mudar o status quo.

Em tese, os gastos tributários visam a atender objetivos econômicos e sociais que melhorem a vida de amplas camadas da população e promover desenvolvimento regional. Mas o padrão delas contraria a intenção - dois terços contemplam o Sudeste (47,2%) e o Sul (16,97%), segundo o relatório da Receita sobre o Projeto de Lei Orçamentária de 2025. São as regiões mais ricas do país.

Com 22,2% do total, o Simples é o maior abatedouro de impostos da lista de gastos tributários. Sua reformulação em 2007, no segundo governo de Lula, marca, não por acaso, o início de uma curva mais acentuada do aumento das renúncias de arrecadação. O Simples tem vários problemas de desenho. Ele serviu para que executivos e funcionários com alta remuneração nas empresas se transformassem em pessoas jurídicas e pagassem bem menos impostos do que se permanecessem assalariados. Gastos com agroindústria (15,25%) e abatimentos do IRPF (10,46%) vêm a seguir.

Um exemplo de incentivo com impostos que se tornou anacrônico é o destinado aos combustíveis fósseis, de R$ 81,74 bilhões em 2023 (incluindo o Repetro, regime especial para importação de equipamentos do setor de óleo e gás), quantia mais de quatro vezes superior aos estímulos tributários concedidos às energias renováveis (R$ 18 bilhões), segundo o estudo da FGV.

As benesses tributárias terão repercussão na reforma que está em vias de conclusão. A reforma fechará uma importante brecha que permitia a guerra fiscal entre Estados. Mas a um custo: criou-se um fundo de compensação de benefícios fiscais para os Estados, que receberá dotações a partir do ano que vem, de R$ 8 bilhões, crescendo R$ 8 bilhões a cada ano até 2028. Em 2029 o valor é de R$ 32 bilhões, decrescendo R$ 8 bilhões anuais até 2032 - ou R$ 160 bilhões.

A reforma tributária deveria disciplinar essas regalias tributárias, estabelecendo obrigatoriedade de avaliação de desempenho, com metodologias universalmente aceitas para isso, regras comuns para concessão e prazos de validade determinados. O descontrole a que se chegou é nefasto: os recursos dos quais os governos abrem mão seriam suficientes para cobrir todos os déficits primários incorridos na última década e ainda sobraria dinheiro. Com Executivos cada vez mais fracos e sem maioria no Congresso, o desperdício de recursos com benefícios opacos e perenes prosseguirá, com a ameaça de uma crise fiscal sempre rondando no horizonte. Há dinheiro, mas ele está onde não deveria estar.

Oportunidades nas relações com a China e o mundo

Folha de S. Paulo

Gigante asiático pode ampliar aportes com volta de Trump nos EUA; para ser atrativo, Brasil precisa de estabilidade e menos custos

encontro desta semana entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o líder da ChinaXi Jinping, joga alguma luz adicional sobre as oportunidades nas relações econômicas entre o Brasil e a ditadura comunista que responde pelo segundo maior PIB do planeta.

Os chineses ainda detêm uma participação relativamente pequena, mas em crescimento rápido do investimento estrangeiro existente aqui —de 1% do total no começo da década passada, foi a 5% em 2022, dado mais recente, atrás de Estados Unidos (29%), Espanha, Reino Unido e França (todos com 6%).

Em particular desde o acirramento do conflito econômico com os EUA, em 2018, o capital do gigante asiático procura cada vez mais países emergentes.

Com a volta de Donald Trump à Casa Branca, tal tendência pode se acentuar. Embora a operação seja diplomaticamente complicada, o Brasil terá a chance de se esgueirar entre os tiros trocados pelas duas potências.

O fluxo total de investimento direto estrangeiro aqui equivaleu a 3,2% do PIB nos últimos 12 meses. Trata-se de nível não exuberante, mas suficiente para cobrir o déficit nas transações de bens e serviços com o exterior, que chegou a 2,1% do PIB.

Esse déficit está em alta, em parte por causa do aquecimento da demanda interna e das remessas maiores de lucros e juros, além da novidade dos gastos com "streaming", aplicativos e até apostas online.

O preço das exportações —das commodities— cai. O país importa mais insumos industriais e produtos manufaturados, como veículos (aliás, na maioria chineses, neste ano). Um eventual superaquecimento da economia elevaria o déficit externo e demandaria mais cobertura por meio de investimentos diretos.

Peso ainda mais relevante tem o comércio externo. A soma de importações e exportações brasileiras, que equivalia a algo em torno de 15% do PIB no início do século, chegou perto de 20% na década passada e a até 30% no ano excepcional de 2023, estando ora em 27%. Boa parte dessa mudança benfazeja se deveu ao aumento do consumo chinês.

Será muito difícil mudar tão cedo o padrão de comércio com a China —a troca de commodities por bens industrializados. O risco, de fato, é que sobrevenha inundação ainda maior de produtos do país asiático, barateados devido a excedentes grandes.

Já o perfil do investimento no Brasil é passível de mudança. Concentrado até aqui em eletricidade e petróleo, pode se dirigir mais a infraestrutura e a manufaturas, como a de veículos.

Para que receba mais aportes, de quaisquer outros países, o Brasil precisa de mais que habilidade na política externa. O essencial é estabilidade econômica com crescimento regular, menos custos para produzir e incentivo adequado à transformação tecnológica. Crescer com auxílio do capital externo depende de ordem e inovação domésticas.

Projetos frágeis para segurança surgem a reboque de crises

Folha de S. Paulo

Propostas do governo Lula pouco avançam no Congresso; cumpre instituir política nacional que vise integrar objetivos, diretrizes e metas

Projetos federais de segurança pública costumam reagir a crises episódicas, são suscetíveis a descontinuidades conforme o governo de turno e, não raro, apresentam resultados apenas pontuais.

Falta ao país uma política nacional sólida que vise integrar princípios, objetivos e diretrizes, a ser encampada com o mínimo de uniformidade pelos estados para reprimir o indiscutível avanço do crime organizado.

A inabilidade em lidar com o tema —segunda principal preocupação dos brasileiros, só atrás da saúde, de acordo com pesquisa Datafolha de 2023— é reconhecida pela própria esquerda, que observa o domínio dessa agenda entre as forças conservadoras, nas quais grassam vieses populistas.

No cenário atual, em que coexistem 72 facções criminosas e algumas delas rompem fronteiras regionais e internacionais, causa espécie constatar que propostas em curso, apresentadas pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tendem a ser limitadas ou de alcance duvidoso.

Talvez até por isso pelo menos dez delas dormitam no Congresso ou no próprio Planalto. Atribui-se a morosidade na tramitação à gestão federal: apesar de lançá-las em eventos pomposos, não demonstra empenho em aprová-las para evitar supostos ruídos com a pauta econômica.

Não faltaram crises episódicas neste governo, como a invasão das sedes dos Poderes em 8 de janeiro de 2023, queimadas intencionais, escalada da violência no Rio de Janeiro e na Bahia e ataques solitários a escolas.

Quanto a este último caso, a Câmara aprovou tornar esses atentados crimes hediondos, o que está longe de ser medida eficaz.

Outros projetos soam vagos, como agilizar a investigação de delitos contra a vida de crianças e adolescentes, ou no mínimo duvidosos, como criar uma Guarda para proteger prédios federais.

Em tese, o que mais se aproxima de um esboço de política de Estado para o setor é a PEC da Segurança, há meses na gaveta do Executivo e já alvo de críticas de governadores oposicionistas, que temem perder suas autonomias.

A bem-vinda busca por uma concertação republicana entre União, estados e mesmo municípios não impõe, necessariamente, mudanças constitucionais.

O diálogo com os estados começou tardiamente e é contaminado por implicações ideológicas e eleitoreiras, mas há tempo para dar início a um plano de ação de longo prazo que priorize investimentos em prevenção e a articulação de políticas conjuntas.

O crime organizado já demonstra integração mais assertiva.

Tentativa de golpe com nome e sobrenome

O Estado de S. Paulo

Embora já esperado, o indiciamento de Bolsonaro e de seus principais assessores pela PF dá contornos dramáticos às revelações de que o País esteve supostamente à beira da ruptura

A Polícia Federal (PF) indiciou ontem 37 pessoas por uma suposta tentativa de um golpe de Estado a fim de impedir a posse do presidente Lula da Silva, legitimamente eleito em 2022. Somadas, as penas máximas cominadas à miríade de crimes que compuseram essa desabrida sedição chegam a 30 anos de prisão.

Entre os indiciados estão muitos ex-ocupantes de altos cargos da República durante o governo de Jair Bolsonaro, o que torna ocioso apontar a gravidade e o ineditismo da conclusão dessa minuciosa investigação policial. Basta dizer que, além do próprio Bolsonaro, que obviamente seria o maior beneficiário do eventual sucesso de um golpe, terão de prestar contas à Justiça os generais da reserva Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que foram os principais assessores do então presidente no Palácio do Planalto.

Embora já fosse esperado, dado o andamento das investigações da PF, o indiciamento da alta cúpula do governo Bolsonaro e do próprio ex-presidente mostra que a trama golpista, se realmente houve, provavelmente não se circunscreveu a um punhado de oficiais de segundo escalão em conluio com agentes policiais. A ser verdade o que a PF diz ter descoberto, o País esteve à beira da ruptura e esse movimento contou, na hipótese benevolente, com a omissão de Bolsonaro, já que parece ser impossível que nem ele nem os generais que o assessoravam não tivessem conhecimento do complô. Tudo ganha contornos ainda mais dramáticos quando se imagina a hipótese menos benevolente: a de que Bolsonaro não só sabia, como jamais desestimulou a sedição, o que comprovaria de vez seu já notório golpismo.

Outro que se vê mais uma vez enredado por uma espessa teia criminosa é o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, um habitué de inquéritos policiais. O deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que chefiou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo Bolsonaro, e Anderson Torres, que foi ministro da Justiça naquela gestão, também estão entre os indiciados por suspeita de participação na intentona.

Agora que essa suposta tentativa de golpe passou a ter, oficialmente, nome e sobrenome, cabe ao Ministério Público e ao Poder Judiciário processar e julgar cada um dos acusados, na medida exata de sua responsabilidade. Os que forem considerados culpados, sem distinção, devem ser punidos com todo o rigor da lei, pois é este, e somente este, o instrumento de que dispõe o Estado Democrático de Direito para repelir os ataques de seus inimigos e desencorajar audácia semelhante no futuro.

As investigações mostram que o planejamento do suposto golpe foi realizado durante reuniões com oficiais da cúpula das Forças Armadas. É estupefaciente. Conclui-se que só não foi concluído porque o Alto Comando do Exército, em sua maioria, assim não quis. Há provas documentais da conspiração. Não há perdão possível para quem se lança em uma empreitada delinquente como essa. Se já era inaceitável falar em anistia para os que tramaram acintosamente contra a Constituição antes que esse suposto complô fosse revelado em contornos tão vívidos, espera-se que agora ninguém mais ouse condescender com quem, por meio da força bruta, tentou subverter a soberania da vontade popular.

Ficou claro a partir do relatório de indiciamento de Bolsonaro et caterva que a dicotomia entre legalidade e ilegalidade, natural para qualquer cidadão decente, jamais fez parte do léxico dos militares golpistas. Para essa turma, imperava uma mentalidade absolutamente distorcida que opõe “moralidade” à “imoralidade”, sendo “imoral”, para essa súcia de sediciosos, dar posse ao “vagabundo”, como se referiu ao presidente Lula da Silva o general reformado Mário Fernandes, preso no dia 19 passado por suspeita de ter tramado o seu assassinato com outros “kids pretos”, como são conhecidos os militares das Forças Especiais do Exército.

O indiciamento pela PF é apenas o primeiro passo para que o golpismo que grassou neste país com espantosa naturalidade tenha uma resposta institucional à altura da ameaça que representou.

O Congresso vira as costas ao País

O Estado de S. Paulo

Senadores rejeitam destinação obrigatória de metade das emendas parlamentares à Saúde e impossibilidade de bloqueio dos recursos; Câmara deve seguir na mesma toada antirrepublicana

Sem surpresas, o Senado aprovou o projeto que regulamenta o pagamento de emendas parlamentares rejeitando a possibilidade de o Executivo bloquear o dinheiro em caso de necessidade de ajuste fiscal. Os senadores também eliminaram a obrigatoriedade de destinar metade do valor das emendas para a Saúde. E, assim, segue em curso uma nova versão do orçamento secreto, talvez um tanto menos obscuro, mas nem por isso mais democrático e republicano.

A indefectível aprovação do novo texto pela Câmara dos Deputados deverá coroar o esforço do Congresso em manter o que os parlamentares já consideram um direito adquirido: capturar fatia expressiva do Orçamento da União que, de acordo com recente estudo do Insper, já corresponde a 24% das despesas discricionárias do governo federal. O pagamento das emendas está suspenso desde agosto por decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, que apontou falta de transparência e rastreabilidade nas transações.

Os congressistas têm pressa em destravar os recursos com os quais vão abastecer suas paróquias eleitorais, mas não demonstram o mesmo empenho em reduzir sua apropriação do Orçamento e tampouco disposição para elucidar em detalhes os objetivos, destinos e justificativas das propostas que fazem para alterar o Orçamento público. As emendas que, principalmente nos últimos quatro anos, fizeram de deputados e senadores os senhores de boa parte dos recursos federais distribuídos pelo País viraram uma espécie de trincheira parlamentar.

Nesse caso, todo o esforço para acelerar o trâmite no Legislativo parece que se torna válido. Na noite em que o texto-base do Projeto 175/2024 estava sendo votado, os senadores demoraram a deixar o plenário, mesmo diante dos estrondos que vinham da Praça dos Três Poderes, onde um homem detonara explosivos que trazia junto ao corpo. Apesar do desprendimento dos parlamentares, a sessão só pôde ser concluída cinco dias depois, com a votação dos destaques, na qual o recado para o Planalto, que havia pedido para incluir a possibilidade de bloqueio, foi explícito: não há negociação possível em relação às emendas.

Mas não é ao governo Lula da Silva, ou a qualquer outro que ocupe o Palácio do Planalto, que o Legislativo está virando as costas. Senadores e deputados estão negando ao País uma reparação do arresto que engendraram ao erário mantido por todos os contribuintes brasileiros. O estudo do Insper mostrou que, do início de 2021 até agora as emendas parlamentares consumiram R$ 131,7 bilhões do Orçamento em seus quatro modelos: de bancada, de comissão, individuais e de relator, que deu origem ao famigerado “orçamento secreto”, denunciado por este jornal.

O relator do projeto passou a liberar valores no Orçamento a pedido de deputados e senadores sem identificá-los, numa distribuição de dinheiro público movida por negociatas políticas, sem nenhuma observância de critérios de utilidade pública. Como já dissemos neste espaço, ainda que pudessem ser escrutinadas com transparência e direcionadas a políticas públicas para melhorar a realidade dos municípios supostamente atendidos por seus autores, as emendas já seriam uma excrescência pela evidente afronta ao princípio republicano da separação de Poderes.

O projeto ora em análise no Congresso é uma tentativa de resolver o impasse sobre o pagamento das emendas impositivas, das quais fazem parte as chamadas “emendas Pix”, as mesmas que já bancaram micaretas, festas juninas e corridas de carro Brasil afora e que receberam esse sugestivo nome porque permitem o envio direto do dinheiro para o caixa de municípios e Estados, sem necessidade de projeto ou justificativa. São emendas que, neste ano, somam R$ 8 bilhões.

O escárnio com o qual os congressistas tratam os recursos públicos e os cidadãos que contribuem para manter ativa a máquina pública envergonha o Poder Legislativo. Caberia aqui um apelo para que a Câmara dos Deputados trate com mais seriedade a avaliação do projeto de regulamentação das emendas. Debalde, ao que tudo indica.

Isenção para quem não precisa

O Estado de S. Paulo

Divulgação de dados do Perse escancara um Brasil viciado em incentivos fiscais para os mais ricos

A Receita Federal acaba de divulgar que 11.877 empresas se encontram atualmente habilitadas no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), originalmente criado em 2021 para socorrer de forma emergencial o setor de eventos, duramente atingido pelo isolamento social provocado pela pandemia de covid-19.

Estendido até 2026, o Perse, revela a lista da Receita, vem beneficiando influenciadores abastados, artistas renomados e grandes empresas, ou seja, um programa outrora concebido para apoiar pessoas que, por conta de uma emergência sanitária, de um dia para o outro se viram sem trabalho foi mantido pelo Congresso, e vem garantindo isenções fiscais aos mais ricos, em mais uma demonstração do quanto o Brasil penaliza os mais pobres.

Na lista de beneficiados pelo Perse aparecem personalidades como o influenciador Felipe Neto, notório por publicações nas quais critica “elites” e “empresas” que não pagam impostos, embora ele mesmo tenha se beneficiado de R$ 14 milhões em isenções fiscais até agosto deste ano. Exposto, Neto divulgou nota que beira a hipocrisia, e tentou desviar do assunto aludindo à operação da PF que escancarou uma tentativa de golpe de Estado no Brasil. Certamente graves, as revelações da PF não fazem com que as isenções fiscais concedidas a quem não merece sejam menos escandalosas.

Justiça seja feita a Neto, ele não é o único influenciador ou artista presente na lista da Receita. Virgínia Fonseca, conhecida por ostentar a mansão em que vive e bolsas de grife nas redes, também figura na planilha do Perse, bem como o cantor Gusttavo Lima, aquele que celebrou seu aniversário em um iate em Mykonos, na Grécia, acompanhado do ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal (STF). Como se vê, Neto, apoiador de Lula, e Lima, de Bolsonaro, compartilham da mesma visão de mundo quando se trata de impostos e desfrutam de isenções fiscais que, em um país sério, não se aplicariam a personagens ou empresas com elevado nível de renda.

Para além da hipocrisia de influenciadores nada isentos, a planilha da Receita Federal serve para demonstrar a desfaçatez do Executivo e a irresponsabilidade do Congresso. O primeiro segue viciado em gastar, e até o momento ainda não apresentou um plano factível para equilibrar as contas públicas e colocar o País na rota do crescimento sustentável. A divulgação dos beneficiários do Perse se presta a alimentar a versão segundo a qual a culpa é dos outros e que a administração há quase dois anos no poder não é responsável por nada.

Se há um vencedor neste esquema que privilegia os mais ricos em detrimento dos mais pobres é o Congresso Nacional. Tanto Jair Bolsonaro quanto Lula da Silva tentaram acabar com o Perse ou limitá-lo, o que faria todo o sentido, posto que o programa foi desenhado para uma situação emergencial. O Congresso, contudo, derrubou o veto de Bolsonaro e resistiu à tentativa de Lula de pôr fim ao programa.


 

 

 

 

 

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