Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Cotejo inevitável: impossível refletir sobre qualquer fenômeno ou fato político em qualquer parte do mundo sem utilizar como referência o grande espetáculo estreado na última segunda em Denver, Colorado, com reprise marcada para a próxima, em Minneapolis, Minnesota.
Uma semana depois do feérico show de disciplina e rigor exibido na Olimpíada de Pequim, o processo democrático americano exibe-se diante da platéia mundial com igual esmero, porém acrescido dos ingredientes da sua cultura em dosagens máximas: sonho, retórica, profissionalismo, civismo, ingenuidade, fervor, música. Os chineses, tão artistas, contentaram-se em oferecer lantejoulas tecnológicas. Os americanos, tão materialistas e supostamente tão decadentes, entregaram grandes quantidades de emoção.
Por uma série de fatores, alguns até casuais, o momento americano ganhou uma dimensão palpitante, prenhe de significados e remissões. Ao aceitar sua indicação como candidato à presidência dos EUA, Barack Obama lembrou Franklin Roosevelt e John Kennedy e foi catapultado para o plano da história. Pode não ganhar a eleição em novembro, mas garantiu o seu lugar na galeria de heróis que construíram o American dream, sonho americano.
Ao longo da jornada das primárias e agora na convenção do Partido Democrata ficou evidente para nós que o carisma de políticos enfezados cuspindo perdigotos para todos os lados é completamente diferente do carisma refinado, penetrante, capaz de atuar nas esferas da razão e do sentimento e nelas permanecer. Carisma é dom e não afetação, independe da maquiagem, gravatas, covinhas no rosto, pode ser potencializado por estrategistas e marqueteiros, mas precisa ser traduzido em energia. Energia capaz de levar seus ouvintes e interlocutores a acreditar que vivem uma situação grandiosa, estelar.
Também no Brasil participamos de uma disputa eleitoral, preliminar é verdade, mas destinada a influir decisivamente na próxima quando será escolhido o sucessor do presidente Lula. Também vivemos um momento especialíssimo, favorecidos por um inédito ciclo de estabilidade e continuidade. Os últimos 15 anos são únicos na história da nossa República, comparados com igual período na vizinha Argentina oferecem um estimulante contraste.
O problema é a nossa incapacidade de enxergar o futuro no presente. Entronizamos o porvir como uma era remota, grandiloqüente – talvez influenciados pelas profecias de Stefan Zweig – sem perceber que o futuro faz-se agora, é hoje.
Convivemos com os pequenos deslizes, aceitamos os ínfimos senões certos de que não terão importância nem influência e passarão despercebidos. Não avaliamos os efeitos da acumulação e da inércia, desconsideramos os efeitos da soma e da multiplicação mesmo quando se trata de microscópicas partículas. A complacência com as pequenas malignidades é capaz de produzir, com incrível rapidez e letalidade, tremendas brechas na estrutura de uma sociedade.
Os EUA saíram da derrota no Vietnã relativamente ilesos, engoliram o orgulho ferido sem avaliar-se, preferiram entregar-se ao pragmatismo. Premiados pela debacle soviética não imaginaram que o retorno do bumerangue seria tão catastrófico. Em apenas oito anos, a vergonhosa vitória eleitoral de George W. Bush, a incompetência na prevenção e combate ao terrorismo, o desapego aos valores morais da democracia e o fundamentalismo religioso converteram a superpotência num império arruinado.
A festa em Denver tem algo de catarse coletiva. We, the People, Nós, o Povo – preâmbulo da Constituição Americana – incorporou-se à proclamação de Obama, “Yes, we can”. “Sim, podemos”. Sempre no plural, carisma é isso.
Num mundo com tantos espelhos é um desperdício não espelhar-se. Aprende-se muito com as comparações, mesmo quando desfavoráveis.
» Alberto Dines é jornalista.
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Cotejo inevitável: impossível refletir sobre qualquer fenômeno ou fato político em qualquer parte do mundo sem utilizar como referência o grande espetáculo estreado na última segunda em Denver, Colorado, com reprise marcada para a próxima, em Minneapolis, Minnesota.
Uma semana depois do feérico show de disciplina e rigor exibido na Olimpíada de Pequim, o processo democrático americano exibe-se diante da platéia mundial com igual esmero, porém acrescido dos ingredientes da sua cultura em dosagens máximas: sonho, retórica, profissionalismo, civismo, ingenuidade, fervor, música. Os chineses, tão artistas, contentaram-se em oferecer lantejoulas tecnológicas. Os americanos, tão materialistas e supostamente tão decadentes, entregaram grandes quantidades de emoção.
Por uma série de fatores, alguns até casuais, o momento americano ganhou uma dimensão palpitante, prenhe de significados e remissões. Ao aceitar sua indicação como candidato à presidência dos EUA, Barack Obama lembrou Franklin Roosevelt e John Kennedy e foi catapultado para o plano da história. Pode não ganhar a eleição em novembro, mas garantiu o seu lugar na galeria de heróis que construíram o American dream, sonho americano.
Ao longo da jornada das primárias e agora na convenção do Partido Democrata ficou evidente para nós que o carisma de políticos enfezados cuspindo perdigotos para todos os lados é completamente diferente do carisma refinado, penetrante, capaz de atuar nas esferas da razão e do sentimento e nelas permanecer. Carisma é dom e não afetação, independe da maquiagem, gravatas, covinhas no rosto, pode ser potencializado por estrategistas e marqueteiros, mas precisa ser traduzido em energia. Energia capaz de levar seus ouvintes e interlocutores a acreditar que vivem uma situação grandiosa, estelar.
Também no Brasil participamos de uma disputa eleitoral, preliminar é verdade, mas destinada a influir decisivamente na próxima quando será escolhido o sucessor do presidente Lula. Também vivemos um momento especialíssimo, favorecidos por um inédito ciclo de estabilidade e continuidade. Os últimos 15 anos são únicos na história da nossa República, comparados com igual período na vizinha Argentina oferecem um estimulante contraste.
O problema é a nossa incapacidade de enxergar o futuro no presente. Entronizamos o porvir como uma era remota, grandiloqüente – talvez influenciados pelas profecias de Stefan Zweig – sem perceber que o futuro faz-se agora, é hoje.
Convivemos com os pequenos deslizes, aceitamos os ínfimos senões certos de que não terão importância nem influência e passarão despercebidos. Não avaliamos os efeitos da acumulação e da inércia, desconsideramos os efeitos da soma e da multiplicação mesmo quando se trata de microscópicas partículas. A complacência com as pequenas malignidades é capaz de produzir, com incrível rapidez e letalidade, tremendas brechas na estrutura de uma sociedade.
Os EUA saíram da derrota no Vietnã relativamente ilesos, engoliram o orgulho ferido sem avaliar-se, preferiram entregar-se ao pragmatismo. Premiados pela debacle soviética não imaginaram que o retorno do bumerangue seria tão catastrófico. Em apenas oito anos, a vergonhosa vitória eleitoral de George W. Bush, a incompetência na prevenção e combate ao terrorismo, o desapego aos valores morais da democracia e o fundamentalismo religioso converteram a superpotência num império arruinado.
A festa em Denver tem algo de catarse coletiva. We, the People, Nós, o Povo – preâmbulo da Constituição Americana – incorporou-se à proclamação de Obama, “Yes, we can”. “Sim, podemos”. Sempre no plural, carisma é isso.
Num mundo com tantos espelhos é um desperdício não espelhar-se. Aprende-se muito com as comparações, mesmo quando desfavoráveis.
» Alberto Dines é jornalista.
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