domingo, 30 de novembro de 2008

A conta da ocupação irracional


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Catástrofes como a de Santa Catarina exigem medidas na regulamentação da propriedade e uso do solo

Os dados da tragédia de Santa Catarina põem nossa consciência diante de um conjunto grande de problemas e contradições que não se limitam aos sofrimentos vividos pela população do Vale do Itajaí, do Sul e do Sudeste do País. Eles se tornam visíveis a partir das desconstruções interpretativas que a tragédia promove por si mesma e das revelações que fazem. Não estou me referindo aos comentários e reações que expõem um certo tipo de mentalidade, aquém dos fatos, como os do presidente Luiz Inácio à vista da inundação: “Temos de pedir a Deus para parar de chover”. Isso pode mostrar que ele crê em Deus. Mas mostra que não crê no governo que preside quando em face de desastres assim.

Governos devem estar permanentemente preparados para enfrentar desastres naturais previsíveis como esse, com a prontidão, a urgência e o volume de recursos necessários para aliviar o imenso sofrimento das vítimas dessas tragédias. Medidas preventivas não evitam as turbulências da natureza, mas podem disciplinar e organizar a relação do homem com ela, atenuando efeitos adversos.

Não é a primeira vez que o Vale do Itajaí sofre inundações de grandes proporções. Já existe, portanto, uma experiência acumulada de desastres ambientais na região como existe, também, em relação a outras regiões do País. É, igualmente, inútil o governador do Estado de Santa Catarina declarar que o episódio comprova os efeitos do aquecimento global e das mudanças climáticas, sugerindo que quem for lá poderá ver para crer. Encontrar um álibi para a situação dramática do milhão e meio de afetados pelas enchentes e escorregamentos, para os 27.404 desabrigados e para os 51.252 desalojados e também para a tragédia de mais de uma centena de mortos e desaparecidos indica uma deplorável pobreza de perspectiva.

Estou me referindo, isso sim, à insuficiência de políticas públicas que os desastres revelam, à urgência de medidas de governo para adaptar o País à realidade das mudanças climáticas globais que já nos afetam e vão afetar muito mais. Cientistas brasileiros vêm trabalhando há anos na pesquisa e no estudo dessas mudanças e na previsão de seus efeitos ambientais, agrícolas e demográficos. É destes dias a notícia de um seminário sobre o alargamento das áreas impróprias para a agricultura no Nordeste, nos próximos anos, devido à mudança climática, e o deslocamento de populações que provocará em direção ao Sudeste e ao Centro-Oeste. Será necessário prever os deslocamentos populacionais, criar alternativas de assentamento e de habitação, além de toda a infra-estrutura necessária ao funcionamento de uma sociedade. O Brasil que conhecemos e os recursos instalados que temos não são compatíveis com essa catástrofe prevista, nem tem o País um projeto sólido para enfrentar esse futuro relativamente próximo.

Um certo voluntarismo político, pretensamente fundado em necessidades e demandas sociais, está cada vez mais distante da realidade política e social que se anuncia no cenário de desastres previsíveis. Áreas de risco e áreas de preservação são invadidas, loteadas, ocupadas em nome de interesses e conveniências privados e, não raro, em nome de direitos sociais. Em regiões como a de São Paulo, as chamadas áreas de mananciais são ocupadas, comprometendo a água disponível, de qualidade já problemática, ameaçando a saúde da maioria. Áreas montanhosas e de encosta, como em Petrópolis, são ocupadas, expondo os moradores aos riscos de escorregamentos. Mansões são construídas em encostas próximas do mar em diferentes pontos do litoral, com riscos semelhantes. Em grandes cidades, terras marginais aos rios e pertencentes ao seu fluxo variável foram ocupadas, em conflito com o regime da própria natureza, colocando em risco um sem-número de pessoas. Existem leis que, supostamente, protegem os cidadãos, dizendo-lhes o que é permitido e o que é proibido. Mas existe também o menosprezo pela lei e a burla da lei, até com a cumplicidade dos que deveriam cuidar de seu cumprimento.

Os desastres climáticos e ambientais, cada vez mais freqüentes, agravados pela superocupação irracional do solo nas cidades, pedem uma revisão do direito fundiário urbano e uma igualmente profunda mudança na política urbana, com interdição definitiva das áreas de risco, o que implica a revisão e regulamentação do direito de propriedade. Desde, ao menos, a proclamação da República nossas cidades, sobretudo as grandes e as mais dinâmicas, têm sido notoriamente governadas pela especulação imobiliária e pelo uso inescrupuloso do solo.

Nosso direito de propriedade passou a ser regulado entre nós pelas intenções ocultas da Lei de Terras de 1850, cujo objetivo não era modernizar esse direito. Mas, sim, torná-lo inacessível à maioria do povo brasileiro, coagido desse modo a uma longa servidão temporária no trabalho agrícola, cujo prêmio poderia ser um dia a propriedade da terra. Em decorrência, todos os abusos imagináveis têm acontecido no campo e na cidade. Nos anos 60, a necessidade urgente de uma reforma fundiária, inspirada em valores sociais, teve como resposta a violência da ditadura. Acossada pelo risco da convulsão social e política, a própria ditadura fez mudanças no direito de propriedade, em parte restituindo ao Estado o domínio sobre o território, para atenuar o caráter absoluto desse direito, sobrepondo o social ao privado. O regime, porém, não se propôs a estender semelhante reformulação ao direito territorial urbano, deixando as terras das cidades ao deus-dará do mercado desregulamentado e da especulação. Áreas rebarbativas e inseguras do solo urbano foram ocupadas pelos desvalidos do êxodo rural, e ocupadas caoticamente. Não só enchentes em grandes cidades, mas os freqüentes incêndios em favelas nos dizem quanto essa economia fundiária é anti-social e antipolítica. A catástrofe ambiental já em andamento pede urgentes providências na regulamentação da propriedade e do uso do solo urbano em nome da vida e da civilização.

*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

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