Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O país atravessa um momento talvez peculiar de sua história institucional. Um dinamismo que pode ser visto como promissor e criativo, por certos aspectos, mostra nele outra face, em que se vê preocupante fluidez nas relações entre os poderes. O instrumento das medidas provisórias à disposição do Executivo e os dispositivos que lhe aumentam o poder de iniciativa e controle em relação à agenda do Congresso; um Judiciário marcado pela adesão explícita e afirmativa a uma postura ativista; um Legislativo acossado por denúncias, amplamente paralisado com respeito ao exercício de suas atribuições próprias, confrontado com o ativismo do Judiciário e a invasão do Executivo - e a tatear (como ocorre com os demais poderes, às vezes estouvadamente) em busca de ampliar ou recuperar espaços.
A reinterpretação agora proposta por Michel Temer quanto aos efeitos das medidas provisórias sobre o trancamento da pauta do Congresso é o episódio mais recente da fluidez mencionada.
Tudo somado, ela é certamente defensável do ponto de vista do anseio por relações equilibradas entre Executivo e Legislativo, e, a julgar pelo que noticiava a imprensa dias atrás, parece contar com receptividade entre os ministros do STF. É estranho, porém, como notaram constitucionalistas citados em matéria do Valor e atentos às disposições explícitas da Constituição, que se tenha pura e simplesmente nova leitura de um dispositivo legal pelos próprios órgãos legislativos que aprovaram há alguns anos a emenda constitucional cuja intenção era evidentemente contrária à leitura de agora. Desse ponto de vista, a suposta receptividade à ideia por parte de um STF ativista pode ela própria ser tomada como indício do que tem de precário o quadro geral.
Essa precariedade se mostra de maneira mais vívida na confusão envolvida nas recentes cassações pelo TSE de governadores eleitos em 2006. Por certo, nesse caso estamos longe da invencionice estapafúrdia de decisões como, por exemplo, a que impôs há algum tempo a "verticalização" das eleições: acham-se em vigor normas que têm sua justificação e que respaldam as decisões. Mas é evidente o que há de insatisfatório numa situação em que as normas em vigor e os instrumentos deficientes de que dispõe a Justiça eleitoral redundam numa espécie de "samba da Justiça doida", em que governadores eleitos em 2006 e empossados em 2007 são cassados em 2009 e o cargo é transferido, sem mais, aos derrotados na eleição, eles mesmos, em vários casos, submetidos a acusações e processos semelhantes aos dos cassados... Não será com a Justiça eleitoral substituindo-se aos eleitores, e de forma tão canhestra, que os vícios do processo de eleição serão sanados.
Mas talvez mereça destaque a manifestação pública do ministro Gilmar Mendes de há algumas semanas - mais uma. A propósito de críticas feitas anteriormente ao governo pela transferência de recursos públicos ao MST e de comentários de Lula no sentido de que ele falaria a título pessoal, Gilmar Mendes fez questão de esclarecer que falava como chefe do Judiciário e atento às responsabilidades políticas e institucionais que a posição envolveria.
É claro que o Judiciário tem responsabilidades institucionais, o que traz tais responsabilidades, naturalmente, também para o presidente do STF. Reclamar responsabilidades políticas para o Judiciário e seu chefe, porém, é algo bem mais complicado e exposto a confusões. O papel por excelência do Judiciário, num sistema constitucional baseado na separação de poderes, é o da revisão judicial, em que um princípio de "responsabilidade horizontal", para usar expressão de Guillermo O"Donnell, permite que um Judiciário que se supõe politicamente independente e imparcial atue como instância de controle dos demais poderes. Esse desiderato de independência e imparcialidade políticas é o que torna defensável que os membros do Judiciário não sejam escolhidos em eleições em que competissemm pelo voto popular, mas sim por meio de procedimentos capazes de permitir atenção maior para aspectos de qualificação "técnica" e de capacitação para aquilo que o próprio Gilmar Mendes tem designado como a "representação argumentativa" que supostamente caberia ao Judiciário, ao STF em particular.
O controle e a responsabilização do governo feitos em termos "horizontais", com base destacadamente na revisão judicial, podem mesmo ser vistos como forma importante de suprir as deficiências na "responsabilidade vertical", expressão com que O"Donnell designa a relação democrática do governo com o eleitorado em geral. E cabe assinalar, ainda, algo que tem sido salientado em discussões recentes sobre as chamadas "democracias iliberais" (Fareed Zakaria), em que o recurso a eleições, desacompanhado de garantias adequadas dos direitos civis ou liberais, levaria a autoritarismos com respaldo popular. Daí se tem pretendido extrair o argumento de que seria preciso estender a outros setores ou entidades da aparelhagem estatal o princípio, afirmado quanto ao Judiciário, de tratar de neutralizar sua exposição aos setores politicamente sensíveis do governo: um exemplo importante se tem com a pretensão de assegurar autonomia para os bancos centrais.
Sem dúvida, não há razão para acreditar, mesmo na vigência de orientações em princípio marcadas pela ideia de isenção política, que o que se observa na atuação do Judiciário moderno em países diversos justifique a leitura de que essa isenção prevaleça de maneira irrestrita: o que se observa é com frequência a Justiça contaminada pelo jogo político-partidário. De todo modo, não há como negar as complicações com que se choca o reclamo de responsabilidade "política" para o Judiciário e seu chefe. Pretenderá o ministro cancelar a invocação da "representação argumentativa" e sugerir que venhamos a ter eleições para o Judiciário?
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O país atravessa um momento talvez peculiar de sua história institucional. Um dinamismo que pode ser visto como promissor e criativo, por certos aspectos, mostra nele outra face, em que se vê preocupante fluidez nas relações entre os poderes. O instrumento das medidas provisórias à disposição do Executivo e os dispositivos que lhe aumentam o poder de iniciativa e controle em relação à agenda do Congresso; um Judiciário marcado pela adesão explícita e afirmativa a uma postura ativista; um Legislativo acossado por denúncias, amplamente paralisado com respeito ao exercício de suas atribuições próprias, confrontado com o ativismo do Judiciário e a invasão do Executivo - e a tatear (como ocorre com os demais poderes, às vezes estouvadamente) em busca de ampliar ou recuperar espaços.
A reinterpretação agora proposta por Michel Temer quanto aos efeitos das medidas provisórias sobre o trancamento da pauta do Congresso é o episódio mais recente da fluidez mencionada.
Tudo somado, ela é certamente defensável do ponto de vista do anseio por relações equilibradas entre Executivo e Legislativo, e, a julgar pelo que noticiava a imprensa dias atrás, parece contar com receptividade entre os ministros do STF. É estranho, porém, como notaram constitucionalistas citados em matéria do Valor e atentos às disposições explícitas da Constituição, que se tenha pura e simplesmente nova leitura de um dispositivo legal pelos próprios órgãos legislativos que aprovaram há alguns anos a emenda constitucional cuja intenção era evidentemente contrária à leitura de agora. Desse ponto de vista, a suposta receptividade à ideia por parte de um STF ativista pode ela própria ser tomada como indício do que tem de precário o quadro geral.
Essa precariedade se mostra de maneira mais vívida na confusão envolvida nas recentes cassações pelo TSE de governadores eleitos em 2006. Por certo, nesse caso estamos longe da invencionice estapafúrdia de decisões como, por exemplo, a que impôs há algum tempo a "verticalização" das eleições: acham-se em vigor normas que têm sua justificação e que respaldam as decisões. Mas é evidente o que há de insatisfatório numa situação em que as normas em vigor e os instrumentos deficientes de que dispõe a Justiça eleitoral redundam numa espécie de "samba da Justiça doida", em que governadores eleitos em 2006 e empossados em 2007 são cassados em 2009 e o cargo é transferido, sem mais, aos derrotados na eleição, eles mesmos, em vários casos, submetidos a acusações e processos semelhantes aos dos cassados... Não será com a Justiça eleitoral substituindo-se aos eleitores, e de forma tão canhestra, que os vícios do processo de eleição serão sanados.
Mas talvez mereça destaque a manifestação pública do ministro Gilmar Mendes de há algumas semanas - mais uma. A propósito de críticas feitas anteriormente ao governo pela transferência de recursos públicos ao MST e de comentários de Lula no sentido de que ele falaria a título pessoal, Gilmar Mendes fez questão de esclarecer que falava como chefe do Judiciário e atento às responsabilidades políticas e institucionais que a posição envolveria.
É claro que o Judiciário tem responsabilidades institucionais, o que traz tais responsabilidades, naturalmente, também para o presidente do STF. Reclamar responsabilidades políticas para o Judiciário e seu chefe, porém, é algo bem mais complicado e exposto a confusões. O papel por excelência do Judiciário, num sistema constitucional baseado na separação de poderes, é o da revisão judicial, em que um princípio de "responsabilidade horizontal", para usar expressão de Guillermo O"Donnell, permite que um Judiciário que se supõe politicamente independente e imparcial atue como instância de controle dos demais poderes. Esse desiderato de independência e imparcialidade políticas é o que torna defensável que os membros do Judiciário não sejam escolhidos em eleições em que competissemm pelo voto popular, mas sim por meio de procedimentos capazes de permitir atenção maior para aspectos de qualificação "técnica" e de capacitação para aquilo que o próprio Gilmar Mendes tem designado como a "representação argumentativa" que supostamente caberia ao Judiciário, ao STF em particular.
O controle e a responsabilização do governo feitos em termos "horizontais", com base destacadamente na revisão judicial, podem mesmo ser vistos como forma importante de suprir as deficiências na "responsabilidade vertical", expressão com que O"Donnell designa a relação democrática do governo com o eleitorado em geral. E cabe assinalar, ainda, algo que tem sido salientado em discussões recentes sobre as chamadas "democracias iliberais" (Fareed Zakaria), em que o recurso a eleições, desacompanhado de garantias adequadas dos direitos civis ou liberais, levaria a autoritarismos com respaldo popular. Daí se tem pretendido extrair o argumento de que seria preciso estender a outros setores ou entidades da aparelhagem estatal o princípio, afirmado quanto ao Judiciário, de tratar de neutralizar sua exposição aos setores politicamente sensíveis do governo: um exemplo importante se tem com a pretensão de assegurar autonomia para os bancos centrais.
Sem dúvida, não há razão para acreditar, mesmo na vigência de orientações em princípio marcadas pela ideia de isenção política, que o que se observa na atuação do Judiciário moderno em países diversos justifique a leitura de que essa isenção prevaleça de maneira irrestrita: o que se observa é com frequência a Justiça contaminada pelo jogo político-partidário. De todo modo, não há como negar as complicações com que se choca o reclamo de responsabilidade "política" para o Judiciário e seu chefe. Pretenderá o ministro cancelar a invocação da "representação argumentativa" e sugerir que venhamos a ter eleições para o Judiciário?
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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