José Nêumanne
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido um contumaz crítico da hipocrisia nacional. Volta e meia ele acusa de hipocrisia todos quantos ousam destoar da cantiga de uma nota só do coro dos conformados acomodados e, de certa forma, acumpliciados. Uma recente dissertação de Sua Excelência a respeito de seu tema favorito foi quando, sem ter sido chamado, defendeu o uso de passagens pagas pelo bolso furado da viúva para parlamentares andarem de avião para cima e para baixo, desde que não ultrapassem, advertiu, as fronteiras pátrias. Ele próprio, quando deputado, não tinha fornecido passagens de sua cota a dirigentes sindicais? Excelente historiador de si mesmo, o presidente deu uma lição da versão moderna que o PT acresceu à tristemente célebre lei Artur Bernardes, cunhada na República Velha, em uso até hoje, segundo a qual se deve legar tudo aos amigos e aos inimigos, o rigor da lei. Fosse ele leiteiro, viajariam os leiteiros. Não sendo...
Não será novidade se Sua Excelência houver usado a palavra pensando num sentido diferente do correto, mas é muito provável que ele tenha pensado mesmo em "falsidade" e "dissimulação" para desautorizar os críticos da generosa agência de viagens "Parlamentotur". Afinal, se há uma coisa a que ele não está habituado a usar é carapuça. E, se for dessa forma, ele tinha a obrigação de usar suas tropas de choque, sempre capazes de resolver todos os problemas governistas no Congresso, para defender com garra e sem pudor o relator conduzido ao cadafalso pelos colegas somente por ter dito em voz alta aquilo que quase todos estes não confessam nem aos próprios botões. Além de impedir a defenestração do deputado Sérgio Moraes (PTB-RS) da relatoria do processo contra o corregedor incorrigível Edmar Moreira (sem partido-MG), o chefe do governo deveria até encomendar a seu devotado ídolo Oscar Niemeyer um memorial na Praça dos Três Poderes para esse representante do povo que teve a coragem de dizer o que sente e o que sabe. Seria um marco indelével na cruzada de Sua Excelência Excelentíssima contra a hipocrisia, que decompõe nossas instituições e esmorece os ânimos dos nobres parlamentares, que lhe têm dado tantas demonstrações de fidelidade.
Ao afirmar e reiterar em discurso na tribuna que está "se lixando para a opinião pública", o ilustre varão gaúcho nada mais fez senão expressar o que todos os seus colegas fazem - embora quase nenhum deles se permita expor a vilania. E - mais que isso - retratou de forma precisa, exata e sem subterfúgios o lema dos parlamentares, que, eleitos para representar a cidadania, deixam-se gostosamente sustentar por ela, mas representam cada vez mais apenas a si mesmos, seus parentes, seus compadres e, no máximo, seus cabos eleitorais. Nossos parlamentares fingem que nos representam, enquanto nós também fingimos que eles nos representam - assim como o volante Vampeta dizia que, quando vestiu a camisa do time mais popular do País, o Flamengo do Rio, o clube fingia que lhe pagava e ele fingia que jogava. Ou seja, Sérgio Moraes não é apenas o mais recente candidato à liderança da majoritária bancada dos amorais na Câmara dos Deputados - ele é o Vampeta dentre os coleguinhas. Pois finge, mas confessa.
Ele também revelou a inutilidade da enxurrada de críticas que seus nobres pares recebem sobre a atuação deles. Em seu raciocínio, que pode ser acusado de tudo menos de falso, dissimulado ou hipócrita, vá lá, o relator que resolveu inocentar o colega antes de investigar foi além, ao lembrar com crueza que ser criticado não implica perder votos. Muito antes pelo contrário: ele mesmo, acusado até de explorar o lenocínio, não apenas foi inocentado cabalmente na Justiça, mas também eleito sete vezes, galgando pelo nobilíssimo e soberaníssimo princípio democrático da consulta popular a escada do sucesso na política. E ainda levou consigo ao píncaro a mulher e a prole. Trata-se de um legítimo representante da elite política civil dirigente nacional. Bom marido, ajuda a mulher a se eleger. Bom pai, faz o mesmo com a descendência. Com a unção das urnas, nem sequer pode ser acusado de prática de nepotismo.
O presidente, que fez de conta que Valdomiro Diniz e os mensaleiros eram personagens fictícios da oposição intransigente e da imprensa que dá azia, age agora com incoerência ao dar as costas a um companheiro que luta com denodo pela extinção da hipocrisia na vida pública nacional. O Legislativo se lixa para a opinião pública quando empurra para baixo do tapete o lixo amoral das cotas de passagens. Craque em aliciar votos, Lula desrespeita a cidadania ao defender essa prática - deveria, então, ser grato ao arauto da surdez cívica pelo serviço.
Decepar a língua do arauto não curará a doença institucional que seu discurso diagnosticou: o divórcio irreparável entre representantes e representados, o Parlamento e a sociedade, a Nação e o Estado Democrático de Direito. O deputado Moraes (mas logo no plural?!) fez o papel de falso boi de piranha: não há risco de vir a perder o mandato, como remotas são as chances de que essa punição recaia sobre o colega que ele tentou ajudar com sua argumentação desastrada por ser franca. Ele apenas será devolvido ao limbo do baixo clero, que não tuge nem muge, ao perder a relatoria, que lhe deu a oportunidade de revelar francamente o que pensa sua grei, que lhe retirou imediatamente o destaque e a palavra, por ter dito o que não devia. Talvez o presidente Lula não saiba - e certamente não há entre seus assessores um que tenha coragem de dizer-lho -, mas a verdade é que, enquanto se usar no Congresso a velha prática do sacrifício do bode expiatório, a crise da representação não será resolvida e a democracia não se consolidará. Mas quem foi que disse que no fundo não é isso mesmo que ele quer? Não é?
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido um contumaz crítico da hipocrisia nacional. Volta e meia ele acusa de hipocrisia todos quantos ousam destoar da cantiga de uma nota só do coro dos conformados acomodados e, de certa forma, acumpliciados. Uma recente dissertação de Sua Excelência a respeito de seu tema favorito foi quando, sem ter sido chamado, defendeu o uso de passagens pagas pelo bolso furado da viúva para parlamentares andarem de avião para cima e para baixo, desde que não ultrapassem, advertiu, as fronteiras pátrias. Ele próprio, quando deputado, não tinha fornecido passagens de sua cota a dirigentes sindicais? Excelente historiador de si mesmo, o presidente deu uma lição da versão moderna que o PT acresceu à tristemente célebre lei Artur Bernardes, cunhada na República Velha, em uso até hoje, segundo a qual se deve legar tudo aos amigos e aos inimigos, o rigor da lei. Fosse ele leiteiro, viajariam os leiteiros. Não sendo...
Não será novidade se Sua Excelência houver usado a palavra pensando num sentido diferente do correto, mas é muito provável que ele tenha pensado mesmo em "falsidade" e "dissimulação" para desautorizar os críticos da generosa agência de viagens "Parlamentotur". Afinal, se há uma coisa a que ele não está habituado a usar é carapuça. E, se for dessa forma, ele tinha a obrigação de usar suas tropas de choque, sempre capazes de resolver todos os problemas governistas no Congresso, para defender com garra e sem pudor o relator conduzido ao cadafalso pelos colegas somente por ter dito em voz alta aquilo que quase todos estes não confessam nem aos próprios botões. Além de impedir a defenestração do deputado Sérgio Moraes (PTB-RS) da relatoria do processo contra o corregedor incorrigível Edmar Moreira (sem partido-MG), o chefe do governo deveria até encomendar a seu devotado ídolo Oscar Niemeyer um memorial na Praça dos Três Poderes para esse representante do povo que teve a coragem de dizer o que sente e o que sabe. Seria um marco indelével na cruzada de Sua Excelência Excelentíssima contra a hipocrisia, que decompõe nossas instituições e esmorece os ânimos dos nobres parlamentares, que lhe têm dado tantas demonstrações de fidelidade.
Ao afirmar e reiterar em discurso na tribuna que está "se lixando para a opinião pública", o ilustre varão gaúcho nada mais fez senão expressar o que todos os seus colegas fazem - embora quase nenhum deles se permita expor a vilania. E - mais que isso - retratou de forma precisa, exata e sem subterfúgios o lema dos parlamentares, que, eleitos para representar a cidadania, deixam-se gostosamente sustentar por ela, mas representam cada vez mais apenas a si mesmos, seus parentes, seus compadres e, no máximo, seus cabos eleitorais. Nossos parlamentares fingem que nos representam, enquanto nós também fingimos que eles nos representam - assim como o volante Vampeta dizia que, quando vestiu a camisa do time mais popular do País, o Flamengo do Rio, o clube fingia que lhe pagava e ele fingia que jogava. Ou seja, Sérgio Moraes não é apenas o mais recente candidato à liderança da majoritária bancada dos amorais na Câmara dos Deputados - ele é o Vampeta dentre os coleguinhas. Pois finge, mas confessa.
Ele também revelou a inutilidade da enxurrada de críticas que seus nobres pares recebem sobre a atuação deles. Em seu raciocínio, que pode ser acusado de tudo menos de falso, dissimulado ou hipócrita, vá lá, o relator que resolveu inocentar o colega antes de investigar foi além, ao lembrar com crueza que ser criticado não implica perder votos. Muito antes pelo contrário: ele mesmo, acusado até de explorar o lenocínio, não apenas foi inocentado cabalmente na Justiça, mas também eleito sete vezes, galgando pelo nobilíssimo e soberaníssimo princípio democrático da consulta popular a escada do sucesso na política. E ainda levou consigo ao píncaro a mulher e a prole. Trata-se de um legítimo representante da elite política civil dirigente nacional. Bom marido, ajuda a mulher a se eleger. Bom pai, faz o mesmo com a descendência. Com a unção das urnas, nem sequer pode ser acusado de prática de nepotismo.
O presidente, que fez de conta que Valdomiro Diniz e os mensaleiros eram personagens fictícios da oposição intransigente e da imprensa que dá azia, age agora com incoerência ao dar as costas a um companheiro que luta com denodo pela extinção da hipocrisia na vida pública nacional. O Legislativo se lixa para a opinião pública quando empurra para baixo do tapete o lixo amoral das cotas de passagens. Craque em aliciar votos, Lula desrespeita a cidadania ao defender essa prática - deveria, então, ser grato ao arauto da surdez cívica pelo serviço.
Decepar a língua do arauto não curará a doença institucional que seu discurso diagnosticou: o divórcio irreparável entre representantes e representados, o Parlamento e a sociedade, a Nação e o Estado Democrático de Direito. O deputado Moraes (mas logo no plural?!) fez o papel de falso boi de piranha: não há risco de vir a perder o mandato, como remotas são as chances de que essa punição recaia sobre o colega que ele tentou ajudar com sua argumentação desastrada por ser franca. Ele apenas será devolvido ao limbo do baixo clero, que não tuge nem muge, ao perder a relatoria, que lhe deu a oportunidade de revelar francamente o que pensa sua grei, que lhe retirou imediatamente o destaque e a palavra, por ter dito o que não devia. Talvez o presidente Lula não saiba - e certamente não há entre seus assessores um que tenha coragem de dizer-lho -, mas a verdade é que, enquanto se usar no Congresso a velha prática do sacrifício do bode expiatório, a crise da representação não será resolvida e a democracia não se consolidará. Mas quem foi que disse que no fundo não é isso mesmo que ele quer? Não é?
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
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