O bom caçador sabe: para abater uma ave que voa a 50, 60 ou 100 quilômetros por hora, precisa atirar bem à frente, levando em conta sua velocidade e o tempo a ser gasto pelo projétil até o alvo. A imagem pode não ser ecologicamente correta, mas é frequentemente usada na esfera política para expressar a ideia de que há governantes que sabem muito bem calcular a "decalagem", que é a distância entre a posição prevista de um ponto móvel e o lugar onde se encontra a pessoa que deseja atingi-la. Lula, por exemplo, demonstra ser exímio atirador. Prova disso são os tiros que tem dado para atingir em cheio o alvo de seu treinamento, as urnas de outubro de 2010. Sua meta, sobejamente anunciada em palanque, é fazer a ministra Dilma Rousseff dar continuidade ao seu governo. Passou a disparar para todos os lados, arriscando-se a ser denunciado como caçador sorrateiro, do tipo que antecipa a temporada de caça. Sem se incomodar com críticas, conseguiu posicionar a "mãe do PAC", no quesito conhecimento, poucos metros atrás do governador de São Paulo, José Serra, o mais conhecido do eleitorado.
Em política, a aptidão de um governante para antever resultados é uma qualidade rara. Luiz Inácio a possui. Praticamente sozinho, bancou o nome da chefe da Casa Civil, colocando-a no centro da arena petista. Arredou outros contendores. Limpou a área. Calculou bem a ponto de não deixar dúvidas. Sua escolhida entrará na fase de pré-campanha em condições competitivas, eis que, neste momento, ultrapassa o índice de 20% de intenção de votos, fato auspicioso quando se leva em consideração o perfil pouco charmoso: gerente mandona, inflexível, pouco chegada às massas. O fato extraordinário nessa operação de alavancagem do nome de Dilma Rousseff é que o presidente da República comanda, a olhos vistos, uma estridente campanha sem ouvir um pio - quanto menos um puxão de orelhas - dos tribunais eleitorais. Quando uma pré-candidata fiscaliza obras em Estados, discursa para multidões em eventos festivos, recebe homenagens de autoridades municipais, ouve perorações entusiásticas de Lula sobre sua pessoa, está praticando, na verdade, uma liturgia eleitoreira. Mas os três macaquinhos (não falei, não vi, não ouvi) comandam o espetáculo.
Eis a verdade. O plebiscito, que muitos temem, sobre um terceiro mandato está em curso. Dilma, ora bolas, é a sombra de Lula, a encarnação da rerreeleição. Será mostrada como espelho de um dos governos com elogiável desempenho nos campos social e econômico. Do alto de uma popularidade que chega aos 82% e pilotando uma administração maciçamente aprovada, Lula costurou uma gigantesca rede com pelo menos dez laços. Dois deles envolvem praticamente toda a base da pirâmide social: o programa Bolsa-Família, que atinge 46 milhões de pessoas, e o programa Minha Casa, Minha Vida, voltado para a construção de 1 milhão de moradias populares, que começarão a ser distribuídas em meados de 2010. Os programas de cunho assistencial, lembre-se, empurraram cerca de 20 milhões de pessoas das classes D e E para a classe C, engrossando o meio da pirâmide, onde os contingentes médios, agora perfazendo 52% da população, passaram a liderar o ranking social no País. Parcelas da base e do meio social são laçadas, também, pelo Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (terceiro laço), que recebe uma injeção de R$ 13 bilhões. Considerando que 84% dos imóveis no Brasil estão na área rural, dá para calcular o alcance desse poderoso laço.
Os contingentes carentes passaram a usufruir, ainda, a redução do IPI para geladeiras e fogões (quarto laço), enquanto as classes médias reforçam os índices de satisfação com a redução do IPI na aquisição de carros e motos. Sob essa teia de ações se vislumbra, ainda, um País obreiro, puxado pela locomotiva do PAC (quinto laço), com um orçamento de R$ 21 bilhões, no qual estão cadastradas cerca de 11 mil obras. Mesmo com o calendário atrasado - 15% de obras concluídas em dois anos -, a imagem de um território retalhado por canteiros de obras se infiltrará na consciência popular, empurrada pela cantilena governamental.
E há laços de cunho simbólico. Dois deles merecem destaque: o pré-sal e o programa do etanol brasileiro, dos quais se pinça a fisionomia do Brasil potência, presente no concerto das grandes nações, autossuficiente em matéria de combustível. O alcance psicológico é a elevação da autoestima. Chegamos, agora, ao oitavo laço, juros entrando na casa de um dígito. Significa a volta da confiança do setor produtivo e a retomada de investimentos.
Sob o signo do controle do monstro inflacionário, os laços se imbricam em alguns espaços. Significa dizer que os programas proporcionam resultados positivos para todas as classes sociais. Ademais, eles recebem o empuxo da mais potente tuba de ressonância que já se viu por estas plagas. São 5.297 veículos de comunicação capturados pela propaganda governamental (nono laço), força tão arrebatadora quanto a de um sistema autoritário. É de arrepiar: a estrutura da comunicação lulista cresceu 961% de 2003 até hoje. O último laço, fechando a rede, é a aura envolvente do presidente, que gera efeitos catárticos nos segmentos mais periféricos. Lula sabe que o poder se impregna da paixão dos atores. Por isso trabalha todo o tempo com a teia das emoções. O que se vê como resultado de tudo isso? Um ambiente social impregnado de segurança. A população não se defronta com sérias ameaças. Catástrofes foram afastadas.
Neste ponto, cabe inserir a questão: se o clima é de conforto, por que tentar mudá-lo? Essa interrogação colocará qualquer candidato oposicionista no corredor polonês do plebiscito maquiavelicamente tramado por Lula. O plebiscito: "Se vocês querem mudar o que fizemos, votem na oposição. Se aprovam o que fazemos, votem em minha candidata."
Para desarmar a engenharia lulista, só mesmo o imponderável. Que ninguém sabe de onde virá. Ou mesmo se virá.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político e de comunicação
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