As histórias de alguns dos mais antigos e reverenciados mestres da música pernambucana estarão no filme 'Sete Corações'
Carlos Eduardo Oliveira
Que ecoem os clarins. No Dia do Frevo, 9 de julho, coincidentemente um sábado de Zé Pereira, data em que o ritmo invade Pernambuco, não faltam expectativas em torno do filme que promete resgatar o legado de alguns dos maiores mestres de toda a história do gênero 100% pernambucano.
Dirigido pela cineasta Andrea Ferraz, da Ateliê Produções, do Recife, o documentário Sete Corações é um tributo que reúne, pela primeira vez, os grandes compositores remanescentes do frevo. Todos grandes músicos, maestros, arranjadores, senhores de idade, regentes da magnitude, beleza e dignidade musical que as grandes orquestras de frevo apresentam ao vivo. Por outro lado, talentos que raramente romperam as fronteiras geográficas de seu estado natal. E que, a 14 mãos, compuseram na frente das câmeras um simbólico e inédito frevo que batiza o longa.
Semelhanças com um eventual Buena Vista Social Club do frevo existem, mas são mera coincidência. "Admito a semelhança, mas não foi uma referência buscada", conta a diretora. Isso porque, durante a construção do roteiro (assinado por Andrea, Gabriel Mascaro e Erik Laurence), o que se imaginou para contar a história e amarrar a narrativa foi a construção de um frevo coletivo. Rodado no início de 2011, o filme acompanha o processo de construção dessa música instrumental inédita, que de certa forma sintetiza a longa carreira do grupo, até o dia em que é apresentada no Marco Zero recifense, com uma orquestra de mais de 200 músicos - isso no último dia do carnaval daquele ano, sob a regência dos sete bambas.
"A abordagem foi determinada por eles mesmos, na medida em que nos permitiam entrar em suas vidas", diz a diretora. Andrea conta que, a certa altura, sentiu que tinha que guardar prudente distanciamento do que acontecia durante as filmagens. "Minha relação com o frevo é, certamente, a relação da maioria dos pernambucanos. Cresci ouvindo frevo no carnaval. Se a gente imaginar que as vidas são construídas a partir das memórias individuais e coletivas, posso dizer que o frevo é parte de mim. Por isso, inclusive, a escolha por um montador paulista para finalizá-lo".
Olhar 'estrangeiro'
A opção nasceu da percepção de que o filme precisa de um "olhar estrangeiro" de alguém que não escutava frevo e não conhecia os mestres. "Esse olhar, acredito, vai trazer para o filme uma possibilidade de leveza, limpeza e afastamento saudáveis." Após o descarte de mais de cem horas de material bruto, a obra está em processo final de edição e montagem, e deve estrear no Festival de Brasília, em setembro.
O grande idealizador do projeto, entretanto, é Spok (Inaldo Cavalcante de Albuquerque, na carteira de identidade), entusiasta, pesquisador e estudioso do frevo, não por coincidência líder da celebrada Spok Frevo Orquestra - que injetou sangue novo no gênero com o clássico CD Passo de Anjo, de 2004. "Sou 1.000% discípulo desses mestres", crava o músico. "Eles são minha inspiração, minha vida musical reúne um pedaço de cada um, e ainda fui abençoado por conviver e tocar com eles." Sua paixão pelo carnaval e pelo frevo vem de criança, coisa de família. "Meu pai e minha mãe eram muito fãs de carnaval. Lembro de discos de Nelson Ferreira e Capiba tocando sem parar na vitrola de casa, era esse o universo que eu ouvia. Além disso, meu tio organizava shows de orquestras de frevo e meu pai, irmão dele, sempre me levava para assistir."
Com um DNA musical impregnado pelo ritmo, Spok diz que sempre se sentiu incomodado com a pouca visibilidade dos grandes criadores do frevo. Mas o ‘kick off’ do projeto só surgiu tempos atrás, quando assistia à TV e acompanhou entristecido a notícia de que dois dos músicos estavam internados em UTIs. "Na mesma tarde, vi na TV um documentário sobre Quincy Jones e, por coincidência, na sequência, revi o Buena Vista Social Club. O estalo foi imediato e até assustei", diz. O susto veio da percepção de que o material de registro desses maestros e sobretudo dos que vieram antes deles - nomes como Felinho, Zumba, Nelson Ferreira e do grande Capiba - era pior do que imaginava: mais que diminuto, era praticamente inexistente. A total ausência de memória o fez alimentar o desejo de homenagear seus oráculos que ainda estão vivos e que, à semelhança dos craques falecidos, integram o panteão do frevo de Pernambuco: os maestros Menezes, Duda, Clóvis, Guedes, Nunes, Ademir e Edson.
Inicialmente a intenção era produzir documentários de 30 minutos sobre cada mestre, para a TV. Mas a associação com a Ateliê Produções (e a captação de recursos pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura - Funcultura) fez o projeto tomar maior vulto. Foi de Spok a sugestão de um frevo escrito em conjunto.
À medida que as filmagens avançavam e depoimentos emocionados se sucediam, Spok diz ter chorado em vários momentos. Para satisfação do músico, Sete Corações, o frevo, foi composto em pouquíssimo tempo na sala de sua casa. "Surgiu na hora, em tempo recorde. Um começou, passou sua parte para o outro e quando vi estava pronto, sem que eles usassem nenhum instrumento", revela. "E ainda houve o desafio da criação coletiva, algo pouco comum no frevo. Ainda guardo com carinho os originais dele."
Por parte dos maestros, o documentário foi recebido como um provável tsunami de vida no frevo, daqui para frente. "É importante e oportuno (o filme)", lembra maestro Guedes, sintetizando o pensamento do grupo. "O frevo vive um momento em que merece reviver suas origens. Ele estava passando por um período de exclusão do carnaval de Pernambuco, principalmente pela falta do frevo de rua e o frevo dos clubes, que quase não são mais vistos", lamenta.
Alguns dos mestres estarão em ação nos próximos dias de folia, caso de maestro Duda, sempre presente no carnaval com sua enorme orquestra formada por dezenas de familiares e parentes - os ensaios acontecem em estacionamentos alugados. Seus colegas de geração, por outro lado, vivem problemas de saúde por conta da idade e não estarão em cena.
Embaixador informal do frevo contemporâneo, Spok não se dá por vencido e diz que ainda concretizará a segunda parte do projeto - a realização de um grande show de arena e a gravação de um DVD com todos os sete leões do frevo. "É meu sonho. Toda homenagem para esse grandes talentos brasileiros ainda é pouca." As filmagens incluem cenas de um show realizado no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, em 2009, com Spok e seis dos mestres em cena. Sete Corações pode ser considerado, desde já, um dos mais importantes trabalhos de resgate de memória e arqueologia musical do País.
Fonte : O Estado de S. Paulo
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