Vinte dias antes de o papa Francisco desembarcar no Rio, um ato ecumênico reuniu cinco mil pessoas na Maré, um ajuntamento de favelas espremido entre a Avenida Brasil e a Baía da Guanabara.
Homenageava as dez vítimas de uma operação policial que, na semana anterior, havia entrado na Maré em busca de bandidos lá refugiados depois de arrastão na Avenida Brasil.
À frente da passeata que precedeu o ato estendia-se uma faixa: "A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela". Entre os mortos da operação policial havia dois jovens sem ficha criminal e um sargento do Bope.
Foi mais fácil arranjar helicópteros que um padre para a favela
Várias denominações religiosas evangélicas, além de uma congregação judaica, se fizeram representar. Dias antes os pentecostais haviam marchado pela paz.
Na noite em que abriu a Jornada Mundial da Juventude, o arcebispo do Rio, dom Orani Tempesta, fez menção à chacina da Candelária, dez anos atrás, quando a polícia abriu fogo contra 70 pessoas abrigadas na marquise da igreja e matou oito. Mas a Igreja está muito distante daquela que, em 1968, celebrou, naquela mesma Candelária, um dos atos simbólicos da resistência à ditadura, pela morte do estudante Edson Luiz.
Contactada por Jailson de Souza e Silva, geógrafo da Universidade Federal Fluminense e coordenador da ONG Observatório de Favelas, a Arquidiocese do Rio informou que marcaria presença no ato da Maré. Nenhum padre, no entanto, apareceria por lá. Anunciou-se uma missa em memória das vítimas, mas a celebração tampouco aconteceu.
No dia em que o papa chegou ao Rio Jailson estava na ala dos manifestantes. Ex-militante da pastoral da juventude e do PT, abandonou ambos. Foi às ruas reclamar a ausência dos católicos na Maré.
A desmobilização do clero católico em torno da chacina da Maré só compete com a do governo estadual. É no asfalto, mais especificamente em frente à casa do governador, onde as balas são de borracha, que estão concentradas as atenções do Palácio da Guanabara.
Na primeira visita de um papa ao Brasil, a de João Paulo II em 1980, o Brasil tinha 90% de católicos. Hoje tem 60%. Nesse período, houve 1,1 milhão de assassinatos no país. A Igreja aposta na renovação de um papa que carrega sua própria mala e fala para ser entendido, mas a distância entre o clero e a tragédia social do país não tem como ser encurtada por um único Francisco por mais senso de marketing que se tenha.
A mesma Igreja que não foi capaz de deslocar um padre para a Maré conseguiu arregimentar, por obra e graça de seus devotos mais endinheirados, uma frota de helicópteros para o deslocamento de cardeais durante a visita do papa.
Não por acaso a Igreja Católica cresce entre os mais brancos e mais ricos. Os ventos de popularização se limitam aos grupos carismáticos que lideram o catolicismo televisivo mas não fazem sombra ao domínio dos pentecostais no ramo.
As vocações que têm surgido para a Igreja derivam, em grande parte, das correntes que buscam saídas miraculosas para fiéis em showmissas não muito diferentes das celebrações pentecostais.
Isso talvez explique o fato de que alguns dos maiores entusiastas da ordenação de padres casados estarem situados na ala favorável a um maior engajamento social da Igreja, como d. Demétrio Valetini (Jales) e d. Angélico Bernardino (Blumenau).
Nos quatro pronunciamentos que já fez desde que chegou ao Brasil o papa não tocou no tema, e é improvável que ainda o faça, mas parecem ser grandes as expectativas, nessa ala da Igreja, que o papa ao menos interrompa a política de alocações, iniciada no pontificado de João Paulo II e continuada sob Bento XVI. Desde então bispos e padres mais pastorais têm sido realocados em paróquias de maior poder aquisitivo, deixando aquelas mais carentes em mãos de clérigos menos engajados.
As pastorais católicas não perderam sua clientela apenas para o pentecostalismo. A concorrência também veio da ampliação dos programas sociais e do acesso ao consumo.
As manifestações que circundam a visita do papa sinalizam, em parte, para o esgotamento do modelo de expansão do consumo que não é acompanhado por políticas públicas de expansão das oportunidades. Como a Igreja Católica está mais aparelhada para atuar na crise do que na afluência, é natural que seu discurso busque rima com o clima de insatisfação.
Nas boas vindas que deu ao papa, a presidente Dilma Rousseff pecou pela pretensão de propor parcerias com a Igreja na globalização de políticas sociais. Só faltou dizer que inexistem médicos onde também escasseiam padres. Francisco não tirou os olhos arregalados da presidente, mas a resposta só viria no discurso de ontem.
Na chegada, ao dizer que não trazia ouro ou prata, imagem cara ao continente saqueado, se limitaria a anunciar que não estava ali para disputar a sociedade de consumo. Pela singeleza, foi um discurso ainda mais político que o de ontem na Varginha, quando citou a corrupção. Só lá respondeu à oferta de parceria da presidente. Ao elogiar os programas de combate à miséria, limitou-se a dizer que a Igreja os encoraja.
Das parcerias cuidam as pastorais, que disputam palmo a palmo com os evangélicos a gestão de programas sociais. Financiados por recursos públicos esses programas se destinam a cuidar de assentados da reforma agrária a drogados.
Para consumo externo, um papa que circula perto das multidões e é avesso a ostentações mostra uma Igreja tentando sair da defensiva. Tem na pedagogia do exemplo seu principal capital político.
Não é menor o impacto de sua performance para o clero. No National Catholic Reporter, maior jornal da poderosa comunidade católica dos Estados Unidos, os cardeais americanos se dizem inconformados com a despreocupação do papa com a segurança. Trouxeram comitivas menores do que pretendiam porque os fiéis de suas dioceses não se dispuseram a encarar os manifestantes da selva.
O cardeal de Nova York, Timothy Dolan, disse ao repórter John Allen Jr. que passou a repensar o aparato de que dispõe ao observar Francisco abrindo portas e morando sem luxo.
No clero brasileiro a visita de Francisco será seguida de uma intensa disputa de rumos pelo que se entende como recado do papa. Se na próxima chacina aparecer algum padre, é sinal de que alguma mudança terá havido.
Fonte: Valor Econômico
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