Por Cristian Klein | Valor Econômico
RIO - Especialista em sistemas eleitorais e partidários, o cientista político Jairo Nicolau, da UFRJ, vê com espanto a possibilidade de aprovação do distritão, modelo que passou pela comissão especial de reforma política da Câmara, com votação prevista já hoje no plenário. Em sua opinião, o debate sobre o assunto ganhou doses de incoerência e irracionalidade, em meio à crise política. No espaço de dois meses, diz, atores relevantes como o relator Vicente Cândido (PT-SP) conseguiram transitar da defesa do sistema proporcional de lista fechada - no qual os eleitores só votam em legendas - para o extremo oposto do modelo majoritário que se convencionou chamar no Brasil de distritão - um nome "tosco", diz - no qual a disputa gira em torno das candidaturas individuais, independentemente dos partidos. "Isso mostra que há uma falta de diagnóstico básico", afirma, em entrevista ao Valor.
Para Nicolau, a reforma política avança sem a avaliação dos problemas de representação ou governabilidade e a melhor forma de serem atacados, como acontece em países que fizeram grandes mudanças em sua legislação. A prioridade mais comezinha dos políticos tem sido a de salvar os próprios mandatos, prevendo uma difícil reeleição em 2018, sem maiores preocupações coletivas ou de longo prazo. "É preciso fazer uma reforma que tenha alguma nobreza. Ser um sistema simples é bom, mas não vejo benefício público no distritão. Ele não tem cálculo partidário. Visa apenas a permanência de uma elite contra uma onda de renovação. Toda sua racionalidade é individual", diz.
Mesmo essa lógica, ressalta Nicolau, vai contra os interesses da maioria dos parlamentares. O distritão, afirma, numa comparação com o campeonato brasileiro de futebol, é bom para os políticos que estão na lista dos mais votados nas eleições legislativas e frequentam o grupo de elite que vai para a Libertadores da América. Na Câmara, o G-4 seria formado por uma centena de deputados. Mas a votação da maioria dos 513 titulares, aponta, está mais para os clubes que vão dos remediados em busca de uma vaga na Copa Sul-Americana até aqueles que lutam para escapar da linha do rebaixamento. É nessa "meiuca", uma zona de enorme competitividade, que os deputados terão que concorrer, só que num "mundo em que eles não têm controle". "Não entendo por que estariam dispostos a trocar o sistema atual por outro em que não há benefício particular. É um comportamento irracional", diz.
Nicolau destaca que, pelo distritão, esse grupo de parlamentares abre mão do voto de legenda e dispensa a legião de candidatos menos expressivos cujos votos contribuem para a formação do quociente partidário. Pelo modelo atual, a disputa é mais interna, para ver quem chega à frente da lista partidária ou da coligação, do que externa, com os candidatos de outras agremiações. Nesse sentido, o distritão, diz, "é mais imprevisível". Um dos incentivos para adotar o modelo é que os deputados estariam inclinados a um sistema mais individualista, num momento em que os partidos estão em baixa. "Mas os candidatos já não falam mesmo de seus partidos nas campanhas", rebate Nicolau.
O que lhes faltará são os mecanismos de uma lógica mais coletiva, partidária. É o caso da substituição pelos suplentes, que no distritão será aleatória, lembra o pesquisador. Atualmente, um chefe do Executivo, como o presidente Michel Temer, pode ter em sua equipe 12 parlamentares cujos substitutos são, com boa probabilidade, oriundos de partidos da base aliada. No distritão, a convocação dos suplentes imediatos obedeceria à ordem de votação geral - e não do partido ou da coligação - e poderia reforçar a bancada oposicionista.
Recentemente, Jairo Nicolau fez estudo que simulou uma eleição com o distritão, tendo como base os resultados de 2014. Pela análise, a maioria dos deputados se reelegeria, o que levaria a crer que o distritão não seria tão diferente do modelo atual. Mas Nicolau ressalta que esse tipo de simulação representa uma falácia, pois não leva em conta a diferença dos efeitos psicológicos e mecânicos produzidos pelos dois sistemas. "Não se pode partir da premissa que os atores políticos - eleitores, candidatos, dirigentes partidários - vão se comportar de maneira igual com a adoção do novo modelo", afirma.
Para ficar em um exemplo mais óbvio, Nicolau lembra dos enormes problemas de coordenação enfrentados por países como Japão, Coreia do Sul e Taiwan, que utilizaram o Single Non-Transferable Vote (SNTV). Este é o nome internacional do modelo que se convencionou chamar de distritão no Brasil. Como não permite a transferência de votos entre os candidatos, o SNTV forçava os dirigentes partidários a inventarem expedientes engenhosos para maximizar a votação.
Em primeiro lugar, era necessário estimar qual o melhor número de candidatos a se lançar pelo partido. No Japão, a maioria dos distritos elegia de três a cinco deputados, mas nem sempre o ideal era o limite. O número ótimo variava dependendo do perfil dos candidatos e da agremiação. Para evitar o desperdício de votos em um nome popular, os partidos tinham como estratégia organizar e dividir seus simpatizantes. Pediam, na campanha, que os cidadãos votassem nos candidatos da legenda, de acordo com o sexo ou a data de nascimento do eleitor.
Nicolau afirma que em outros modelos ou mecanismos eleitorais, como a lista fechada, a fórmula de sobras ou a cláusula de desempenho, "a gente sabe quem vai ganhar [ou perder], mas no distritão toda a racionalidade é individual".
Em sua opinião, caso aprovado o SNTV em distritos tão grandes quanto os brasileiros, os políticos "vão ter saudade" do modelo de lista aberta, vigente desde 1945. "Os partidos que dependem de puxadores de voto devem estar desesperados. Imagine o [deputado estadual pelo Psol do Rio de Janeiro, Marcelo] Freixo, com seus 400 mil votos, vendo que isso só vai elegê-lo. Ele não poderá pedir: 'Parem de votar em mim e votem no Jean Wyllys'", diz.
Para ser aprovado, o distritão precisará de três quintos dos votos, em dois turnos, na Câmara e no Senado, por se tratar de emenda constitucional, já que altera o sistema eleitoral proporcional para o majoritário. Tem a oposição de siglas de esquerda ou que contam com voto de legenda, como PT, PDT, PCdoB, PSB, Rede, PV e PPS, e de partidos que contam com puxadores de voto, como PR e PRB.
Outra crítica de Jairo Nicolau é que o distritão tende a tornar as campanhas mais caras - e não mais baratas, como se especula. Hoje, diz, os perfis de votação dos candidatos concentram-se geograficamente ou em correntes de opinião, a partir de uma estratégia dos partidos que procura reduzir a concorrência interna. Mas o distritão legitimará a lógica do "todos contra todos". Para o especialista, as eleições a deputado federal e estadual vão virar um "'senadão", com os candidatos percorrendo todo o Estado. "Vai haver uma corrida armamentista. Não vai ficar mais barato", afirma.
Para Nicolau, se os parlamentares estivessem pensando, partidariamente, um modelo eleitoral que favorecesse um projeto coletivo, a escolha seria por manter a representação proporcional. E se o objetivo fosse aproximar o eleitor de seu representante a opção seria o majoritário tradicional, em pequenos distritos, mas nunca o distritão. "O distritão não responde a nenhum problema", afirma.
Mesmo a fragmentação partidária, Nicolau prevê que não será reduzida. "Por que o sujeito que está hoje no rabo da fila não vai concorrer? Vai para o PTN [hoje Podemos]. Com 35 partidos, o pequeno empresário, o dono da casa de construção, o líder comunitário de Nova Friburgo ou Campos, tem um ponto de fuga", diz.
Sobre outros pontos-chave da reforma política, Nicolau é mais otimista, como a introdução da cláusula de desempenho - exigência inicial de votação nacional mínima de 1,5% na eleição para deputado federal -; o fim das coligações e a criação do fundo eleitoral de R$ 3,6 bilhões, embora critique o volume de recursos. "É preciso algum aporte estatal. Mas bastava aumentar em 80% ou duplicar o fundo partidário no ano eleitoral. O valor é muito alto e não há discussão sobre como vai ser distribuído e como o TSE vai fiscalizar e punir os partidos. Há uma ausência de mecanismos para isso", diz.
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