O
negacionismo nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional.
Robert
Zoellick, ex-presidente do Banco Mundial, acaba de publicar o livro America in the World. Nele, com
conhecimento e experiência diplomática, examina o papel da política externa na
construção do poderio dos Estados Unidos no mundo. Um capítulo é dedicado a
Vannevar Bush, por ele qualificado como o “inventor do futuro”.
Bush
dirigiu o Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento nos governos Roosevelt e
Truman. Escreveu Science:
The Endless Frontier, excepcional documento de 1945, que inspirou a
criação da Fapesp. A Vannevar Bush se deve a concepção do sistema americano de
ciência e tecnologia após a 2.ª Guerra Mundial, levando em conta a
interdependência da ciência básica e aplicada e da complementariedade entre os
distintos papéis do governo, de uma comunidade científica e universitária livre
e independente, da indústria e dos empresários privados.
A
implementação das concepções de Bush criou um modelo de inovação que eclipsou o
sistema soviético, estatal. Esse é um dos dados do sucesso americano na
dinâmica da bipolaridade Leste/Oeste. O desafio do presente é a competição entre
o modelo de pesquisa e inovação dos EUA e o que vem sendo construído com
apreciável sucesso pela China.
Bush
antecipou a velocidade com que a cultura científica da pesquisa expande
vertiginosamente as fronteiras do conhecimento e vem trazendo mudanças
significativas em todas as esferas e dimensões, alterando as condições da vida
em escala planetária e impactando a dinâmica da ordem mundial. Henry Kissinger
observou que a era digital colonizou o espaço físico e permitiu a ubiquidade do
funcionamento das redes que operam na instantaneidade dos tempos. Isso vem
induzindo grandes transformações, até na maneira de conduzir a política externa
e de atuar no campo diplomático.
Ciência
e conhecimento são dados de base do cenário mundial do século 21, o que confere
realce especial à afirmação de Bacon “conhecimento é poder”, nela se incluindo
o poder da sociedade de dar rumos aos seus caminhos.
Desde
o Renascimento a ciência é uma atividade internacional que se alimenta do
intercâmbio de ideias e descobertas. Daí as atividades internacionais das
academias científicas, incluída a brasileira, no exercício de uma diplomacia da
ciência.
As
formas como a ciência se insere na pauta internacional e interna levaram a
Royal Society inglesa a elaborar novas formulações que vão além da tradicional
diplomacia da ciência. Daí o destaque dado à ciência na diplomacia e nas políticas públicas em geral e
da ciência em prol da diplomacia.
Essas vertentes são ingredientes de grande relevo para um juízo diplomático
apropriado para identificar as necessidades internas do País e avaliar
possibilidades de melhor inserção internacional.
Dois
itens da pauta interna e internacional são reveladores de um negacionismo do
papel da ciência e do conhecimento nas políticas públicas e na diplomacia do
governo Bolsonaro. O primeiro diz respeito à sua postura no enfrentamento da
crise da covid-19, que fez aflorarem novos riscos para a saúde do mundo. A
gestão desses riscos requer conhecimento e cooperação internacionais. Demanda
as pontes de um multilateralismo permeado pela ciência na diplomacia. Não está
no horizonte de uma diplomacia de confronto, que rejeita o acervo de
realizações da tradição da política externa brasileira e se alinha aos muros
dos unilateralismos excludentes.
O
segundo diz respeito ao meio ambiente, tema global, transversal, que permeia a
vida internacional. Foi o conhecimento que identificou os riscos que põem em
questão a integridade dos ecossistemas, que, no seu conjunto, sustentam a vida
na Terra. Foi o aprofundamento do conhecimento que ampliou o escopo operativo
da gestão de riscos nessa matéria.
O
paradigma do desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92 assinala a
presença internacional ativa do Brasil nesse campo e é um exemplo da ciência na
diplomacia. O desenvolvimento sustentável é o caminho para lidar, com o apoio
do conhecimento, com a interligação economia e meio ambiente.
O
desabrido negacionismo do governo Bolsonaro, por atos e palavras, em relação ao
tema do meio ambiente é uma denegação do prévio acervo de realizações das
políticas públicas brasileiras e de suas instituições de conhecimento. Corrói a
credibilidade internacional do Brasil. Põe em questão a nossa capacidade, como
país, de lidar criativa e construtivamente, pelo conhecimento, com a riqueza da
nossa natureza e com o nosso potencial de crescimento econômico.
Em
síntese, como diz o provérbio, “pior cego é o que não quer ver e pior surdo, o
que não quer ouvir”, manifestado neste governo por um duplo e interconectado
negacionismo: a denegação da importância dos fatos que a ciência e o
conhecimento revelam e a recusa do papel da ciência e do conhecimento como o
caminho para o seu deslinde. É o que nos isola no mundo e compromete a nossa
inserção internacional.
*Professor emérito da USP, ex-presidente da Fapesp (2007-2015), ex-ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002), é membro da Academia Brasileira de Ciências.
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